16.11.17

Resumo, arrazoado, do mais essencial na obra lógico-filosófica de Luiz Sergio Coelho de Sampaio, feito por esforço própio

Com três livros - Lógica ressuscitada - Sete ensaios (1), A lógica da diferença (2), e Filosofia da cultura - Brasil, luxo ou originalidade (3) - e mais uma dezena de outros escritos menores ou de cunho "aplicado" acreditamos ter conseguido reunir um bom número de resultados sobre a lógica e áreas adjacentes, todos eles formando uma trama de elevado grau de coerência. Poderíamos assim resumi-los:

a) a fixação de uma noção precisa do que é a lógica: um saber sistemático tanto quanto possível sobre os diferentes modos de pensar, efetivos ou abstratamente concebíveis; a lógica não é saber empírico, mas não é também "saber" normativo o que vai implicar que exista pelo menos uma lógica transcendental (dando conta de si mesma), entretanto, nem todas o são; a lógica considerada como teoria normativa da inferência correta é um caso bem particular, que, apenas por interesses ideológicos, vem assumindo ares de universalidade, sem que isto encontre qualquer respaldo conceitual e mesmo histórico;

b) a cada lógica corresponde um modo específico de ser, porém, qualquer lógica pode re-visar o ante-visado por ela mesma ou por outras lógicas e assim fazer proliferar modos derivados de ser; paralelamente, a verdade pode recuperar o seu estatuto originário onto-lógico, como reivindicado por Heidegger, refinado por Lacan e completado por nós - toda verdade é verdade de um modo de pensar (ou referida a uma lógica) correlato, portanto, a um modo de ser (4);

c) as lógicas formam uma estrutura pré-linguística, a fortiori, pré-matemática aberta (5), gerada por apenas duas lógicas fundamentais - da identidade (ou do mesmo) e da diferença (ou do outro) - através de uma única operação sintética (síntese dialética generalizada) que pode ser indefinidamente reiterada, e que, de certa maneira, generaliza a tão afamada aufheben hegeliana;

d) liquida-se com a bagunça nos fundamentos, onde justamente ela é mais danosa: cada uma das lógicas, agora, fica completamente caracterizada por apenas um principio, todos eles homogeneamente definidos e que podem por isso ganhar uma forma operatória unívoca e também homogênea; toma-se de empréstimo, com surpreendente naturalidade, o formalismo da mecânica quântica para fazer corresponder ao referido operador estados e valores próprios numéricos; estes últimos irão se t constituir em representações fidedignas dos valores de verdade da lógica correspondente (6); com isso, a trama relacional das lógicas se intensifica, trazendo por conseqüência uma intensificação ampliada da trama relacional dos modos de ser; até as velhas modalidades aléticas - necessário, contingente, impossível e possível - são agora reconhecidas,
corretamente, como modos efetivos de ser (lógico)F);

e) todas as lógicas presentes na tradição filosófica - o logos heraclítico, a dialética conceitual platônica, a lógica aristotélica, a lógica transcendental kantiana/fichteana, a dialética histórica hegeliana, a lógica transcendental de Husserl, etc. -, sem exceção, encontram guarida nesse "conjunto" (8) de lógicas, inclusive, modos aparentemente esdrúxulos, como a lógica lacaniana do significante ou que se pretenderam i-lógicos, como a razão do coração em Pascal ou a "lógica" da contradição em Kierkegaard; aqui uma solene constatação a posteriori: só se consegue pensar grande coisa se se desvela, concomitantemente, seu modo específico de ser visado; por isso, todos os grandes pensadores, pelo menos no Ocidente, foram grandes inovadores da lógica;

f) o campo das "novas lógicas mate matizadas" , hoje se multiplicando (9), fica claramente trissecado: há a lógica clássica (do terceiro excluído ou, melhor dito, da dupla diferença), com todo o direito, formalizada à extrema unção; há também estruturas formais que pretenderiam se constituir em modos desviantes de pensar, mas que na verdade são no todo ou em parte lógicas efetivas, formadoras ou subsumidas pela lógica clássica, que, pela própria violência da formalização tornam-se irreconhecíveis, perdem sua alma e suas vísceras e são transformadas em autênticas múmias ("lógicas" paraconsistentes e paracompletas, por exemplo); há, por fim, o campo ilimitado das estruturas matemáticas "puras' que podem estar até muito bem fantasiadas e ainda melhor funcionando nas operações de cálculo do mundo, mas nada têm a ver com a lógica propriamente dita ("lógica" probabilística, "lógica" fuzzy, por exemplo);

g) as lógicas identitárias ou sintéticas (10) formam estruturas hierarquizadas (umas subsumindo as outras), cada uma delas definindo um nível onto-lógico, o que enseja uma correspondente hierarquização dos entes; a posição do homem pode ser assim precisamente definida, permitindo-lhe reassumir sua posição impar no pináculo do mundo (ou da Criação?!); renova-se assim a antropologia filosófica em bases bastante sólidas, inclusive, incorporando as conquistas da moderna antropologia estrutural;

h) por extensão são definidas estruturas lógicas epistemo-lógicas e praxiológicas dando conta, respectivamente, da complexidade do saber e do agir em cada um desses níveis onto-lógicos; mostra-se que as "ciências, do homem" enquanto tal estão além da capacidade lógica humana, o que é, sem dúvida, uma limitação, mas também a vivência imediata e grave de uma falta, de que algo lhe poderia efetivamente transcender; essa vivência, ainda que não tematizada, já é e será sempre o real suporte da religiosidade autêntica;

i) abre-se a possibilidade de uma nova e sistemática crítica dos fundamentos dos múltiplos saberes: já podemos contar com alguns resultados altamente relevantes pelo menos no âmbito da matemática (11), da fisica (12), da semiologia, da antropologia, da história da cultura, da economia, do conhecimento da doença mental e do processo de desenvolvimento cognitivo e emocional da criança, nas "ciências" da administração;

j) contra o conluio do pragmatismo anglo-saxão e o pós-modernismo continental, a conceituação do homem como ente hiperdialético (13) permite a volta à Grade Narrativa; especificamente, permite a retomada do projeto hegeliano de uma fenomenologia do espírito, num nível bem mais ancho e elevado, que a torna agora capaz de abarcar a cultura científica atual; desvelam-se as noções cruciais de desejo e fingimento de uma cultura, lançando-se assim uma larga ponte por onde hoje só com dificuldade se transita -do ser-pessoal ao ser-coletivo e vice-versa; consolida-se destarte a noção de história hiperdialética qüinqüitária em contraposição à história dialética trinitária hegeliano/marxista e à história "unária" (judaica), esta última que se pode agora considerar como o degrau zero da dialeticidade; a Grande História é a história hiperdialética da cultura;

1) retifica-se (14) e depois descreve-se com rigor e detalhes a gênese e as fases da Modernidade; aponta-se a dominação de gênero como sua essência mais profunda; a Caça as Bruxas não é mais o último episódio da Idade das Trevas, mas o primeiro da Modernidade; torna-se evidente o trànsito do capitalismo produtivista, brutamontes, ao capitalismo consumista ou de marketing, etnocida; demonstra-se cabalmente - através de uma critica profunda do marxismo, das ideologias de inspiração romântica e freudiana, das concepções heideggerianas, como também frankfurtianas -, porque o século XXfoi um século perdido; no entanto, em que pese a força, a grana e nuvens de incenso à volta do "pensamento único", não chegamos ao fim da História; evidencia-se que o mito, a filosofia e a ciência, tentando, respectivamente, corromper, "peitar" e abolir os deuses, esgotam as possibilidades culturais niilistas; pode-se agora enxergar claro para além da Modernidade e, a partir de então, recuperar o pensamento e a vontade utópicos;

m) afinal, nós brasileiros passamos a ter uma idéia bastante precisa de qual o nosso lugar presente na história (da cultura) e qual possa ser o nosso melhor destino (15); concluí-se que o Brasil não é Belíndia, como interpretado pela elite intelectual; seu dualismo não representa atraso, mas persistente recusa a ingressar na Modernidade; ela é, fundamentalmente, um guardar-se para algo maior; logo, temos a opção entre o luxo (lixo)ou a originalidade;

n) as possibilidades formais de lógicas trans-humanas (mais complexas que a hiperdialética humana) apontam a direção e o sentido corretos para a renovação radical da teologia (pela primeira vez se conseguiria escapar realmente à idolatria, ou seja, perguntarmo-nos por um Absoluto logicamente além, e não, como até hoje, aquém do homem, isto é, das "classes sacerdotais"); ensejar-se-ia então a oportunidade de uma teologia natural altamente consistente, competente, inclusive, para manter um vigoroso e profícuo diálogo com a teologia revelada;

o) estariam postas também as bases de uma revolução pedagógica capaz de proporcionar uma democratização do saber, de ampliar e universalizar a capacidade de resistir às manipulações ideológico/ marqueteiras, isto que é uma condição necessária para a consolidação de uma política à altura da nova cultura hiperdialética que já se anuncia.

Ora, quando eventualmente chegamos a um grande resultado, de modo geral, temos a sensação de que ele é mais ou menos óbvio. Descobrimos então uma plêiade de pensadores de hoje e de ontem, muitas vezes até artistas e poetas que haviam chegado cada um a seu modo, bem perto dele (é aí, em geral, que pescamos nossas epígrafes), e ficamos boquiabertos que outro qualquer por aí não nos tivesse há muito precedido na descoberta. Em conseqüência, só nos sentimos de fato um pouco mais tranqüilos quando conseguimos encontrar alguma razão, a maioria das vezes insignificante (ou seja, de ordem significante (16)) e contingente, pela qual este último não foi deveras o caso. Considerando não um, mas um amplo conjunto de resultados densamente articulados, como parece ser o caso acima recenseado, então tudo que dissemos se intensifica dramaticamente. Explicar porque tais descobertas, ao menos em parte, não vieram à luz anteriormente, torna-se muitas vezes um problema até mais difícil e angustiante que a dura luta que nos levara àqueles resultados. O presente escrito deveria ser também explícito sobre estas coisas, contudo, confessamos que elas ainda não nos são até hoje inteiramente claras.


A pesar disso, temos duas observações que nos parecem pontos de referência bastante sólidos para no futuro poder completar este trabalho resumo: primeiro, que a desorientação lógica (ou da lógica) promovida pelos ideólogos da Modernidade foi muito mais longe do que eles mesmos poderiam imaginar, na medida em que a resistência intelectual a ela tem sido até hoje praticamente nenhuma; segundo, a falta de sensibilidade para a questão da equivalência de ser e pensar, ainda que como simples objetivo, inaugurada por Parmênides, em nível transcendental, continuada por Hegel, em nível dialético, e que teria uma continuação obrigatória, depois da Modernidade científica, em nível hiperdialético, pois este é precisamente o nível lógico constitutivo do ser humano (17).Porque não se percebeu isto?!


Notas

1. SAMPAlO, L. S. C. de, Lógica ressuscitada - Sete ensaios. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2000

2. .Lógica da diferença. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2001

3. .Filosofi da cultura - Brasil, luxo ou originalidade. Rio de Janeiro, Ágora da Ilha, 2002.

4. Na modernidade, a questão do estatuto da verdade é levantado por Heidegger, contrapondo a alétheia grega e a adaequatio moderna. Esta problemática é ampliada por Lacan propondo uma estrutura onde aparecem 4 verdades: total, parcial, total e parcial, nenhuma nem outra. Nós a ampliamos ainda mais para incluir, ademais, a verdade hiperdialética qüinqüitária e os desdobramentos das verdades nos planos fenomênico, objetivo e subjetivo. BARBOSA,Marcelo C. As lógicas - As lógicas ressuscitadas segundo Luiz Sergio Coelho de Sampaia, São Paulo, Makron Books, 1998. pp.61-63

5. As lógicas traduzem as potencialidades operatórias do cérebro humano, ou seja, elas constituem as estruturas a priori do espírito humano, sendo portanto anteriores à linguagem e portanto também à matemática. Elas podem ser descritas numa retórica formal, mas que não propriamente matemática: dizemos então que elas formam um semi-monoide (fechado, associativo e, à diferença dos monóides, dispondo de um elemento neutro apenas de um dos lados) livre gerado pelas lógicas da identidade I e da diferença, D, reiteradamente articuladas pela operação de síntese dialética generalizada, /.Teríamos então as seguintes seqüência de lógicas: I, D, I/D, D/D, I/D/D, D/D/D, I/D/D/D, D/D/D/D.... Na tradição, I é denominada lógica transcendental; D, não tem um nome universalmente aceito, mas podemos identifica-la com a lógica lacaniana do significante; I/D é a nossa bem conhecida lógica dialética e D/D a lógica clássica ou do terceiro excluído. Nós denominamos I/D/D hiperdialética qüinqüitária e as demais não têm até hoje nome próprio.

6. Não se deve fazer corresponder arbitrariamente valores de verdade a números, como faz a álgebra de Boole. Isto foi Da verdade, um desastre, embora algo de importância menor em termos de computação.

7. Não a um lógico profissional, mas ao astuto Lacan coube abrir o caminho para esta compreensão das modalidades, esta sim, acorde com as conjecturas aristotélicas acerca do futuro contingente. Na verdade, Lacan procede apenas a amarração das modalidades aos seus famigerados matemas. Como já havíamos demonstrado a correspondência dos maternas às lógica, facilmente se estabelece a correspondência das modalidades às lógicas.

8. As lógicas formam uma multiplicidade que, no entanto, não pode ser considerado propriamente um conjunto no sentido rigoroso do termo, pois a lógica fundamental I não goza das propriedades que fariam dela o "conjunto vazio" do ser-lógico.

9. Imitando o processo de relativização da geometria, os lógicos empreenderam a relativização dos princípios da lógica clássica, para produzirem "novas lógicas". Hoje proliferam os sistemas "lógicos" não clássicos, a maioria dos quais não passa de pura especulação formal sem qualquer sentido propriamente lógico. O mais ridículo é que estes "cientistas" estão sempre prontos a desqualificar como propriamente lógicas a dialética hegeliana ou a lógica lacaniana do significante.

10. Lógicas identitárias ou sintéticas são aquelas em que se dá a presença irredutível da lógica da identidade, ou seja em que esta aparece em primeiro lugar. São elas: I, I/O, I/D/d, I/D/D/O, .... A estrutura I define o mundo fenomênico, I/O o mundo objetivo, I/D/O, o mundo subjetivo.

11. Demonstra-se exatamente como a matemática deriva da linguagem natural pela "mumificação" dos poderes lógico-identitários da primeira. A posterior "mumificação" do poder referencial, significante ou simplesmente lógico diferencial da linguagem natural é o que separa as duas grandes correntes filosóficas em matemática - intuicionistas e formalistas.

12.Demonstra-se que as forças da natureza são 6 e não 4, e que os seus mediadores correlatos, em conjunto com a classe dos férmions e o vácuo formam o octeto irredutível dos entes físicos. Ademais, revitaliza-se o principio antrópico em bases significantes, ou seja, demonstra-se que as partículas elementares são por si legíveis. Significantes das lógicas: elas são, em suma, o ADN do espírito humano.

13. Os animais cordados, possuidores de SNC, são capazes de operar com símbolos essencialmente convencionais, portanto, chegam ao nível dialético (I/O). O homem, por operar com regras convencionais ou com a gramática, alcança a capacidade lógico-formal (D/O), que associada à capacidade lógicodialêtica animal, lhe permite operar a nível do discurso, ou seja, hiperdialeticamente (1/ D/ O).

14.Referimo-nos especificamente á Inquisição, em particular, ao episódio da Caça às Bruxas, que deve ser considerado o capítulo inicial e fundador da Modernidade e não o derradeiro da "Idade das Trevas".

15. Tenta-se mostrar que o Brasil, por sua história, é o candidato mais apto a desvelar a nova cultura hiperdialétíca. No entanto, ele pode falar, e outros, como a Índia podem toma-lhe o lugar. Há ainda a possibilidade de que a nova cultura resulte de um novo cisma na cultura judaica, em especial na sua diáspora ocidental, hoje dividida entre o tradicionalismo mudo e oportunismo berrante que veio se associar, viabilizando-a, à cultura científica anglo-saxônica.

16.Boa parte das vezes nos deparamos com um obstáculo meramente significante, que jamais pode ser um erro ou acerto, mas uma pura e simples infelicidade designativa. Um exemplo óbvio é a designação tradicional das lógicas que quase impede que bem compreendamos sua cerrada rede interrelacional.

17. A operação com símbolos convencionais exige a capacidade lógico-dialética (I/D), conforme posto por Platão em seu diálogo Parmênides e, a gramática ou legalidade convencional, exige a capacidade lógico-clássica, equivalente à capacidade de operar com a dupla diferença (D/D). Portanto, a capacidade discursiva exige a conjugação destas duas capacidades, que poderia ser chamada hiperdialética (representada por I/D/D, posto que esta expressão contém, concomitantemente, I/O e D/D)

30.10.17

Assédio (sexual) aos fundamentos da matemática

Apresentação

1. As lógicas e a realidade multifária; fossem tudo, onde estaria a matemática?

2. Uma primeira vez, a questão da matematicidade da matemática

3. A matematicidade surpreendida em sua própria casa, nua, na passagem dos semigrupos aos monóides

4. Finitos e transfinitos lembrando o peixe em meu aquário - bem posto mas obtuso - apenas nada, como fosse seu paralelepípedo de vidro a medida exata do absoluto

5. Os níveis hierárquicos lógico formais e onde se engataria aí a matemática

6. A matemática como salva-vidas universal psíquico, pois tudo está aí bem dito em razão da decidida abstinência semântica - só por isso (ela) jamais afunda

Boa parte de nossas reflexões mais profundas em diferentes campos do saber tiveram origem pedagógica, isto é, no exercício da arte dramática de aprender que  nem sempre sabemos bem o que temos à vera para ensinar. Instados a explicar certas coisas, por vezes aparentemente muito simples, aceitávamos o desafio com muito gosto, como até hoje, e o tentávamos - tendo por suposto, primeiro, que detínhamos o tal saber, segundo, que este era sólido, altamente consistente, insuceptível que à força de um simples sopro se desmanchasse no ar. Ilusão! Explicar para outros sempre traz e produz novidade, pois nos põe numa bem particular relação, na qual cabe-nos, como agravante, a posição de quem é suposto saber. Em psicanálise, isto talvez seja mais fácil, porque devemos apenas lá figurar (as vezes mesmo conferindo as contas da farmácia ou dormindo!) sem necessariamente estar; contudo, em sala de aula, por exemplo, não comparecendo, seremos provavelmente indiciados e malhados como impostores.

É bem verdade que alguns alunos não estão nem aí, e até prefeririam que assim sempre fosse, interessados não em aprender alguma coisa, mas tão apenas em nos tomar o lugar e, nestes tempos bicudos, também a remuneração, mesmo que sabidamente parca. Não são a maioria. Como em geral damos aulas de graça, estamos de certo modo seguros, um pouco à margem desta desagradável circunstância.

Não foram poucas as vezes em que estancamos logo aos primeiros passos: não estávamos sabendo bem o que ensinávamos, em razão de que tudo aquilo não fazia lá grande sentido. E quanto mais próximos estivéssemos dos fundamentos de um determinado saber, mais fundo e a miúde isto acontecia.

Em Matemática, nos é de boa memória o dia em que se deu um destes eventos: amigos, gente da área das "humanas", vieram á nossa casa e perguntaram o que era um grupo matemático? Para que podiam eles querer uma coisa destas tão rija e cristalina, tão pouco fumê?!

Tinhamos aprendido desde Erlangen, há muito, em geometria a que isto servira e tínhamos funda convicção da importáncia crucial dessa teoria para a ordenação hoje do mundo da fisica. Fomos logo ao assunto; era certo que sabíamos bem e de cor quais os axiomas que amarravam a definição de grupo [mito, mas, tentando esboçar, meio de improviso, uma estratégia pedagógica, começaram também as dúvidas. Por que eram exatamente aqueles quatro os axiomas? Por que deveria ser aquela sua ordem expositiva? Que estrutura, do ponto de vista construtivo, a devia imediatamente preceder, isto é, de onde logicamente provinham os grupos? Por que, justo no universo onde impera a elegáncia formal, se deixava à solta um axioma redundante: existência de elemento neutro à esquerda e à direita, quando apenas estivesse tal neutralidade assegurada de um dos lados - garantida como estava a existência em geral do elemento inverso -, facilmente, demonstrava-se valer para o outro?

Quando passamos à Física, ao invés de alívio - pois fiávamo-nos bitolada e ingenuamente na força de seu comprometimento empírico -, qual nada, as coisas até pioravam: as confusões estão já nos a p rio ri. E o que é ainda mais grave: em última instáncia, era justamente destes que ela se irradiava. Só para ilustrar: era uma vez, um feixe de 4 forças governando o mundo; aí, uma trinca de fisicos de gênio abiscoita o prêmio Nobel da especialidade unificando duas delas (eletromagnética e fraca) em apenas uma (eletrofraca), tendo como preço, malgrado, a "descoberta" de outra força até então desconhecida (de Higgs). Todos os livros mencionam e enaltecem o sucedido, mas, com a cara de pau que Deus lhes deu, continuam ainda contando como quatro as benditas forças. Seriam ainda as quatro de partida?

Então, nada teria acontecido. Bem, poderiam ser as quatro iniciais, que com a referida unificação passaram a 3, mas que, com a "descoberta" da nova força de Higgs, teriam voltado a somar 4. Neste caso, a unificação buscada, de fato, acontecera, mas infortunadamente como tal fora vã. No entanto, fosse qual fosse o caso, continuavam sendo 4. Devia toda gente, entrementes, observar que algo inédito e muito sério acontecera: pela primeira vez na história, a natureza, contando apenas com as próprias forças, revidara um ataque desferido pela cultura ocidental. Até hoje a maioria dos teóricos da física transmudados em matemáticos replicados, operando em espaços de 4, 5, 10, 11 e até 23 dimensões, dando torções no vácuo - como outrora espertalhões davam nós em pingos dágua?! - com suas potentíssimas geometrias diferenciais, teorias de espaços fibrados, hoje na moda, teorias de cordas e membranas, não conseguem, entrementes, em matéria de forças, contar de 1 a 4, ou de 1 a 6. Como poderímos explicar isto para nossos alunos, já com as cabeças tomada pelos tenebrosos espectros que em geral chegam antes da dita física?

Em Lógica, não precisávamos mais que abrir a própria boca para duvidar do que ouvíamos. Como, pode, por exemplo, uma lógica estar morta, esquartejada, ter suas partes em formal(izadas) - vejam, por exemplo, o caso das "lógicas" paraconsistentes e paracompletas - e ainda assim andarem por aí vagando, até baixando em cavalos, mulas e computadores, assustando muita gente crédula e pacata?

E a psicanálise, então? Acabando com o dualismo corpo/mente pela introdução da pulsão bifronte; ou, em muitos casos, dando como ganho a troca da unidade consciente de proveniência e semelhança divina, pela briga de duas ou mais intencionalidades endiabradas?! E um dia, defrontamo-nos com catexias, "unidades" de energia, não mensuráveis, nem conversíveis em calor, afora, o caso de senhoras adentrando a menopausa? E a antropologia estrutural, que nos quer fazer crer que com apenas duas diferenças, uma sexual e outra clânica, se pode produzir um homem. Com a dupla diferença, isso é, com a capacidade operatória lógico-formal pode-se bem fazer um computador, mas jamais se chegará a fazer um gato, muito menos, um homem e uma cultura!

Teríamos exemplos contundentes para todos os gostos: na biologia, na psicologia "científica", na filosofia etc., mas devemos nos conter, e nos concentrar na matemática, que é aqui nosso objetivo.

O fato mais interessante é que todo esforços para dirimir ou esclarecer este tipo de questão, fosse qual fosse o saber considerado, levava sempre à lógica. E em particular, sendo o assunto a própria lógica, onde mais poderiam conduzir senão a ela mesma? Não se pode olvidar que a lógica é o único saber que se vê, por natureza, obrigado a dar conta de si mesmo. Isto pode não ser cobrado de toda e qualquer lógica, mas pelo menos uma delas precisará satisfazer tal imperativo, o que significa dizer que entre elas uma haverá necessariamente transcendental.

Nosso propósito aqui é a Matemática, mas por tudo que dissemos, por questão de coerência, teremos que antes colocar na mesa nossos pressupostos lógicos mais duros e a tanto vamos dedicar por inteiro o capítulo 1.

Que é a lógica? Que realidades pensam as diferentes lógicas? Que papel joga aí a linguagem? Sem que esclareçamos cuidadosamente como se articulam lógica e a matemática, não poderemos pretender ir muito longe.

O capítulo 2 irá mostrar como a matemática deriva logicamente da linguagem natural deixando vivos e operantes apenas modos diferenciais de pensar e, ainda, como esta mesma precedência determina diretamente a clivagem fundamental das alternativas possíveis em filosofia da matemática - formalistas e intuicionistas - com exclusão de qualquer outra.
A matemática, no seu afã de auto-suficiência, não escapa de ter que escamotear a questão ontológica - por que há números, conjuntos etc. e não tão apenas Nada? - e o faz transformando seu elemento identitário ou nulo em ente espacial, simétrico à direita e à esquerda, tanto faz consideremos o âmbito, conjuntista (simétrico como as faces de Janos) ou categorista (simétricos como Gêmeos univitelinos), o que será examinado em detalhes no capítulo 3.

Saindo da esfera dos zeros, vazios, indepotentes e automorfismos, viajamos em busca de seus antípodas, embora já os sabendo inexistentes, posto que a matemática não é terra esférica. Vamos aos infinitos ou transfinitos, para constatar que estes, comparados ao absoluto de nosso dia a dia, são apenas pobres diabos.

Que esta transmutação de valores (quê valores?!) - infinitos por cima, absoluto por embaixo - só acontece por força da introdução de um eixo espúrio, malgrado tente ele se passar pelo mais puro - o eixo (sexual), que vai da ambigüidade à máxima limpeza formal. a quinto capítulo retorna à lógica, especificamente à lógica clássica ou da dupla diferença e a seus níveis de estratificação - nível proposicional, do cálculo de predicados, cálculo de classes - para então poder melhor precisar e compreender como a lógica se articula à matemática e demonstrar como é inviável, por princípio, o projeto sexo-logicista russelliano.

Finalizando, o capítiulo 6 se esforça por mostrar que a matemática não raro se transforma em salvavidas- psíquico onde se agarra em desespero gente a perigo de se ver tragada de volta à temível obscuridade do útero que as expeliu um dia. Se ele pôde põ-Io para fora, por que não lhe pode subtrair a existência pondo-o de volta para dentro? E esta obsessão pela limpeza? Que o assédio à matemática tenha lá seu caráter sexual, não é invencionice nossa; é, na verdade, uma insistência sintomática, presente tanto num modesto operador de computadores eletrônicos como nos maiores vultos históricos da grande matemática.

Para que o leitor possa por si só construir uma visão de conjunto do trabalho aqui desenvolvido, arrolamos a seguir, sucintamente, a lista das principais teses que aqui são postas a molestar:

a) A linguagem é, de origem, necessariamente um ente entre, a priori, a lógica, e a posteriori, a matemática;

b) A matemática deriva da linguagem natural pela neutralização ou mumificação de seus poderes totalizantes ou identitários - autoreferente, histórico e ilimitadamente conotativo (ou metafórico);

c) Na matemática, somente duas posições filosóficas justificam-se - o formalismo, que insiste em recalcar o pensamento simples diferencial e os intuicionistas que o toleram, tendo-o como tão inevitáveis como os chistes e os sonhos; os primeiros, tendem ao platonismo, os demais, ao solipsismo ou ao gregarismo corporativista:

d) Toda estrutura matemática necessitando subtrair-se à pergunta pela origem admite um elemento neutro ou nulo, dotado de simetria espacial, isto é, capaz de operar indiferentemente à direita e à esquerda, que, por isto mesmo, não é nem representa o Nada;

e) Da tese anterior derivam dois tipos de matemática: a conjuntista, que se faz simetrizando o elemento neutro - zero, conjunto vazio, operação identidade etc. - e a, que se faz duplicando-os sempre, um à direita e outro à esquerda - automorfismos;

f) Toda estrutura matemática infinita se independentiza do absoluto, conquanto que por isso se veja obrigada a pagar o alto preço da incompletude; em matemática da infinitude, depois de Gõdel, o cobertor ficou curto: se for consistente, será necessariamente incompleto e, vice versa, o que se considera ainda pior desastre;

g) A escada dos transfinitos cantorianos não parte da Terra nem chega ao Céu, como a sonhada escada de Jacó; na verdade é uma escada apenas dos transdiscretos, unindo nada a coisa alguma, mas que serve bem ao cálculo de todas as coisas deste e doutos mundos possíveis. Como pode o capitalismo viver vários séculos sem isto? E o neo-Iiberalismo, sem a equivalência cantoriana, discriminando cada tostão dos pobres finitos, e ignorando os bilhões e bilhões dos ricos transfinitos?

h) Todo infinito é sintático e de nível lógico clássico (dupla diferença), e portanto necessariamente "menor" que o Absoluto de nível lógico hiperdíalético; é a substituição delirante da escala lógica pela escala da pureza (grau de ambigüidade), de evidente conotação sexual, que enseja se inverta a ordem natural do mundo;

i) É esta mesma troca de eixos que faz da matemática, indevidamente, linguagem dos deuses; a física
(matemática), tão típica da Modernidade, por simples ressonância lógica, referenda tal pressuposição; por isso, é desta, até com certa coerência, que toda gente hoje espera a dádiva da vida eterna;

j) Todo elemento nulo é uma dissimulação do Nada sendo seu lugar determinado pelo ser-um e seu "conteúdo", retroativamente, dado pelo ser-outro-doum, permitindo articular em profundidade a problemática matemática à crucial problemática filosófica da diferença ontológicajôntica, tão enfatizada por Heidegger;

1) A problemática teológica está para além da matemática, tem a ver com o Absoluto e nada com infinitos bons ou maus, quantitativos ou qualitativos; mas antes, temos contas a ajustar com o real; Alain Badiou, discípulo, está equivocado - ontologia não é matemática; Lacan, seu mestre na matéria, correto, quando faz o real começar imediatamente após o esgotamento das formalidades; é assim, pelo menos, para os seres humanos;

m) O logicismo russelliano é uma impossibilidade, posto que a matemática deriva da linguagem e não diretamente da lógica; ademais, toda a problemática da consistência/ completude só é inteligível a partir da lógica da singela diferença; restringindo-se a lógica da matemática ao que se faz aparente, isto é, à lógica clássica ou da dupla diferença, aquela problemática perde sua "racionalidade profunda";

n) A assunção emocional irrestrita da lógica formal, logo, da matemática, é sintoma evidente de uma neurose obsessiva;

o) Mas, há bem mais: por se constituir na lógica mais elevada antes de se alcançar a hiperdialética (lógica característica do ser humano na plenitude), a lógica formal ou a matemática pode se constituir numa espécie de salva-histeria ou mesmo salva-psicose, um suporte "externo" (prótese superegóica) a que se pode agarrar o ser humano para não ser tragado de volta para uma lógica menor; o caso mais freqüente, pareceria ser a defesa contra os estados maníaco depressivo e paranóico (este, nem tanto, porque aqui a lógica da simples diferença já se vê capaz de manipular a lógica da dupla diferença, que é, por paradoxal que pareça, produto de sua própria autodiferenciação.

Quando a matemática, sem que se saiba ainda bem porque, de repente, não mais sustenta o indivíduo, este pode cair em trágica depressão ou partir afinal "decidido" para a perversão sexual.

por Luiz Sergio Coelho de Sampaio, 2001

A grande tarefa do tempo presente: recuperação do pensamento utópico (depois de passado a limpo o marxismo)


Palestra a ser realizada em Seminários de Sábado no Centro de Cultura sob auspícios da Prefeitura de Petrópolis, 24 de novembro de 2001.

texto na íntegra em formato pdf

Nós não queremos mais continuar representando a farsa da subversão bem comportada, onde incluímos a alegre terceira via, o agir comunicativo, o relativismo invertebrado, o socialismo de braços com a 'eficiência' do mercado, o colonialismo solidário, e outras idiotices por aí. Como tudo isto fica ridículo e deprimente, muito mais ainda depois que a Grande Tarefa já se delineou tão clara (para quem queira de fato enxergar)!

a}A GRANDE TAREFA: Abrir espaço para o retomo do tesão (incluído o pensamento) utópico,

b) o que pressupõe a recuperação do poder crítico sobre a ciência (uma filosofia nova hiperdialética),

c) cuja construção pressupõe a integração do pensamento diferencial (lóg. da psicanálise) à filosofia,

d) e que nos exige uma tomada de posição existencial; então, a formulação de uma estratégia cultural,

e) e, além, fidelidade e responsabilidade engajada com respeito a esta destinação que se assume.

LAMENTO!

Não vimos aqui para agradar, mas para tentar contribuir, um pouquinho que fosse, para mudar o mundo, como sonhava Marx; a enorme dificuldade, temos que confessar, é que faz muito tempo não encontramos alguém que não se tenha deixado converter à CIÊNCIA, que não esteja fechado e convicto à espera da vida eterna por via da biopirotecnia! Por que iriam mudar? Para toda esta gente, o discurso político de 'esquerda' se transformou em apenas um dentre os tantos 'método.' por aí afora de auto-ajuda adaptativa ... Peço que nos perdoem, e assim pensando, nos equivocamos.
Luiz Sergio Coelho de Sampaio

17.10.17

Comentário de José Miguel Wisnik sobre a Lógica da Diferença

Caríssimo Sampaio,

acabei de ler, com grande interesse, a "Lógica da diferença". O livro esclarece o conjunto sistemático das idéias que eu vim conhecendo pouco a pouco, e me impressiona pelo caráter sincrônico-abrangente com que abarca grandes problemáticas históricas ferindo questões agudamente atuais. Não acompanho, evidentemente, as argumentações especificamente lógicas, que permanecem para mim em estado interrogante. Mas extraio um saldo reflexivo muito provocador, concorde ou não com as proposições. Percebo, por exemplo, que a minha relação com a música, tratada n"O som e o sentido", esteve ligada à intuição de lógicas específicas que comandam sistemas composicionais, e que estão ligadas, ao mesmo tempo, ao filosófico, ao religioso, aos mitos, ao ideo-lógico. Assim, a passagem do modal ao tonal, via canto gregoriano, se esclarece como processo de constituição do I/D, assim como a do tonal ao serial envolve o desvelamento de D/2, e as "simultaneidades contemporâneas" os espasmos caótico-criadores de uma outra lógica (que pode vir ou não).

O caráter abstrato, dedutivo, ou propriamente lógico-generalizante do esquema, corre o risco de reducionismo esquematizante quando diretamente aplicado às produções singulares, como as da arte, que contêm outras mediações. Mas pode iluminá-las também, e isso depende sempre, a meu ver da re-dialetização discursiva do método (já que ele guarda algo do D/2, na forma). A propósito, também, e contraditoriamente, o último parágrafo toma uma dimensão messiânico-apocalíptica que permanece obscura, ao mesmo tempo que desvela um recalcado no texto, pela alusão a uma força, não nomeada, supostamente capaz de derrubar o império da diferença, uma vez desvelada a sua lógica. Devo dizer que entendo o espírito da afirmação, e que essa força é a capacidade humana que se realiza na linguagem, intuída como Desígnio. Mas vejo que ela abre também, mais do que fecha, uma imensa discussão, na qual retornam todas as instâncias concretas que o pensamento lógico descarta, recalca ou sublima. Em suma, quero parabenizá-lo pelo imenso trabalho, afirmar o quanto ele abre campo inspirador ao pensamento, e declarar a minha disposição ao diálogo.


José Miguel
2 de Agosto de 2001

Entrevista à Lucila Guedes, junho de 2002

[ENTREVISTA CONCEDIDA EM JUNHO DE 2002 Á JORNALISTA LUCILA GUEDES DO JORNAL DA AEITA (Associação dos Ex-alunos do ITA) E PUBLICADA COM PEQUENOS CORTES E ALTERAÇÕES NO NÙMERO 56 , DO REFERIDO PERIÓDICO]


LG - Conte um pouco sua história antes de entrar no ITA: onde o senhor nasceu, onde morou e porque procurou o ITA (se sempre quis o curso ou foi mais obra do acaso).

S - Sou natural do Rio de Janeiro, do bairro de Vila Isabel, filho de família relativamente pobre de dinheiro, mas não de valores mais ou menos sofisticados. Se explica: meus pais eram ambos membros de ramos decadente de sua respectivas famílias. Estudei no Colégio Militar, pagando uma pequenina mensalidade. Para tanto meu pai, todo o ano ia ao Distrito Policial do bairro para obter um certificado de “miserabilidade em face da Lei”. Eu achava o máximo: era o único ali a possuir este título oficial com carimbos e estampilhas. Bem, um dos meus colegas no último ano era filho do Brigadeiro Teles(ou Telles?) Ribeiro, comandante do CTA, e convidou alguns colegas para visitarem o ITA, entre eles, eu. Por isso, cerca de 10% da minha turma fez exame para o ITA e creio que 4 passaram para o primeiro ano, eu inclusive, e outros 3 para o preparatório. Achei o exame um barato: não precisava “saber” nada; era só raciocinar. Fazia eu ainda exames para a E. N. de Engenharia, quando recebi a notícia da aprovação para o ITA; parei no meio, porque as vantagens financeiras eram patentes e decisivas no meu caso. Acertei no que vi e ainda bem mais no que não vi.

LG - Qual foi o curso escolhido no ITA e quando se formou?

S - Eu, como filósofo avant la letttre, tendia sempre para o mais teórico ou abstrato, por isso fui para a eletrônica. Elétrons não se viam, eram mutantes, onda e partícula, girando de um jeito ou de cabeça para baixo num espaço abstrato, sempre em disparada; tínhamos que agarrá-los não com as mãos, mas pelo pensamento.

LG - Qual foi sua trajetória após se formar? Como aconteceu de o senhor se dedicar à filosofia. Me falou por telefone que antes também trabalhou na bolsa de valores?

S - É um pouco complicado, mas vamos sintetizar ao máximo. Primeiramente, uma bolsa do Governo Francês – de Vila Isabel a São José dos Campos e daí a Paris em tão poucos anos; foi a glória. Na volta, engenheiro na Diretoria de Rotas Aéreas, depois, “calculista” na Comissão Nacional de Planejamento (embrião do Ministério do Planejamento, na época chefiada pelo Celso Furtado). Fiz, junto com um ou dois colegas iteanos, uma pós-graduação em análise de sistema, o primeiro curso desta natureza realizado no Brasil. Concomitantemente, fui diretor de uma empresa de estudos econômicos e organização empresarial, onde fazia de tudo. Lá pelos fins dos anos 70 assumi a diretoria técnica da BVRJ. Graduei-me em economia, mas apenas para evitar problemas com algum Conselho Regional da área econômico-financeira. Fundei e dirigi o IBMEC e junto com Ronaldo Nobre, também iteano “desviado de função”, mais novo, criamos a ABAMEC-Rio. Em 1972 fomos demitidos da BVRJ e do IBMEC a bem da tranqüilidade da roubalheira que então assolava o País; que novidade! Proibidos de trabalhar na área pelas autoridades financeiras (exclua-se, neste particular, apenas o Ministro da Fazenda de então, Delfin Neto). Num encontro casual, fui convidado por um iteano meu contemporâneo – Ovídio Barradas – para ser diretor financeiro da TELERJ (hoje TELEMAR). Fiquei 4 meses esperando que o SNI decidisse se eu era ou não agente da KGB. O general Siqueira, presidente da Empresa, um bom baiano, depois de muito esperar perdeu a paciência e falou com o Delfin, seu amigo, que “quebrou o galho”: em 24 horas fui declarado inocente, apto pois a assumir a Diretoria Financeira da TELERJ. Um ano depois fui para a diretoria Financeira da EMBRATEL; cinco anos após assumi a vice-presidência desta mesma Empresa. Liderei a luta pela implantação da RENPAC, do Ciranda e do Cirandão, as duas últimas, redes teleinformacionais que já faziam tudo que faz a Internet hoje. Em 85, começa a desmontagem da Empresa e sou demitido por ter atrapalhado (apenas o que pude, acho que relativamente pouco) a mutreta armada em Brasília para a compra do primeiro satélite brasileiro. Em licença de saúde, sofri o diabo por 3 anos. Retornei em 1988 e me concedem o dever de não fazer nada. De 1988 a 1992 escrevo cerca de 1800 páginas, sobre filosofia, especialmente lógica, em geral, de onde, depois de depuradas e reelaboradas têm saído os meus escritos publicados. Me aposentei em 1995 depois de passar por sério problema de saúde (mistura quase mortal de cigarro e um pequeno amor à madástria).

A filosofia, antes de ser uma atividade profissional, sempre foi para mim um modo de viver e ver o mundo. No íntimo, nunca passei para o lado da filosofia, sempre estive por lá. Para fixar um marco, diria que o meu primeiro escrito, bastante matemático, entretanto, já com laivos filosóficos foi feito nos meses em que eu esperava a decisão do SNI. Mostrei este pequeno opúsculo ao Professor Almir de Andrade (que escrevia discursos para Getúlio e depois para Juscelino, por isso ganhou um cartório e comprou tudo de livros), homem de rara sabedoria e caráter. Passados alguns anos ele estava envolvido na criação da Academia Brasileira de Filosofia e me mandou um recado: se eu queria ser membro da dita cuja. Aceitei, meio atônito. Afora os parentes, os amigos íntimos e irrestritos, só ele conhecia meus pendores filosóficos... de certo modo, ainda por desabrocharem. Ele achou por bem apostar e assim eu ingressei oficialmente no ramo, na Academia Brasileira de Filosofia, ao lado do próprio Almir de Andrade, Gerd Bornheim, Emmanuel Carneiro Leão, Miguel Reale e outros medalhões. Daí por diante, minha grande tarefa era não desapontar o amigo Almir de Andrade (para quem não sabe, pai do Roberto Bonfim, ator em tudo que é novela da TV Globo)

LG - Sua vocação (filosofia) foi notada antes, durante o curso ou foi depois? Se teve início antes, qual foi seu objetivo em fazer o curso do ITA? Se depois, o que o senhor pensou sobre a profissão que atuaria? Por que e quando preferiu deixá-la?

S - Como lhe disse, filosofia era para mim um tipo de atitude diante da vida e do mundo. Sempre procurei fuçar o lado mais recôndito das coisas. Uma espécie de preguiça mental: saber o estritamente fundamental e depois deduzir o resto. Você não percebeu que eu já achara um barato o exame de admissão ao ITA? Dali, eu pressentira: o curso do ITA serviria para tudo. Sem demérito para os contadores, você já imaginou um iteano que viesse a se dedicar a tais misteres. E também, agora com demérito mesmo, os economistas que afundam hoje o País, passando antes pelo ITA? Não seria maravilhoso, todo mundo iteano, a grande maioria em “desvio de profissão”. Sei que teríamos, como sempre aconteceu, escabrosas exceções, mas na média, estaríamos hoje certamente muito bem.

A bem dizer, eu não larguei a profissão de engenheiro de eletrônica do ITA, apenas exerci suas potencialidades um pouco conforme as circunstância e a idade

LG - O senhor é aposentado, como me contou. Mas continua a dar aulas? Como é sua atuação no momento ?

S - Eu fui aposentado por motivos de saúde. Mas, dar aulas e escrever, para mim, já não é mais trabalho, mas uma terapia altamente eficaz. Nunca fui comunista, mas, ironicamente, hoje recebo de acordo com as minhas moderadas necessidades e trabalho duro, pelo menos 8 horas por dia, conforme as minhas possibilidades, recebendo apenas para pagar o taxi e o monte de xerox que distribuo aos alunos. Dar aulas com regularidade – obviamente, com uma moderada carga horária semanal –, foi o melhor remédio que achei para regularizar a minha tendência hipertensiva. Embora eu tenha alunos de 17 a 65 anos, a maioria é de jovens e estes, em geral, são bastante generosos, de sorte que o contato com eles retarda bastante o envelhecimento mental e se não melhora, pelo menos, não piora a saúde.


LG - Mesmo tendo mudado de profissão, o senhor faz parte de um grupo da população que pode se considerar privilegiado, já que o ITA é uma das melhores faculdades do Brasil e mais de 50% de seus ex-alunos ocupam cargos de diretores, gerentes e presidentes de empresas. Como o senhor pensa, como iteano, o que isso muda em sua profissão e o que o senhor carrega do ITA até hoje?

S - Me considero um privilegiado sob múltiplos aspectos. Do ponto de vista da formação bastaria lembrar minha passagem pelo Colégio Militar e pelo ITA. Fui certamente um dos mais jovens iteanos a ocupar cargos de direção.

O ITA foi fundamental para a minha formação em geral. Toda gente cita apenas o nível do ensino, mas não é só. Professores precisam se dar ao respeito, além da competência técnica, devem ser exemplares sob outros aspectos, como no respeito ao outro, no senso de justiça, na seriedade intelectual, no amor ao Brasil, etc... Creio que proporcionalmente, o ITA, por alguma circunstância histórica, teve sua cota de exemplaridade docente bem acima da média. Acima, pairava o Brigadeiro Montenegro, um brasileiro de verdade; já no ITA, tínhamos professores como Walaushek, Chen To Tai, Leônidas Hegenberg e muitos outros, que os aqui lembrados, certamente bem representam.



LG - É possível aplicar alguns conceitos de sua profissão atuando como professor de filosofia?

S - Muito mais do que se poderia, a princípio, imaginar. A grande filosofia sempre esteve em sério diálogo com o saber científico. Assim foi entre os pensadores gregos; bastaria citar o interesse dos pitagóricos pela matemática, as concepções atomistas de Leucipo e Demócrito, o apreço platônico pelo rigor metodológico da geometria e a contribuição seminal de Aristóteles para a lógica formal. Na modernidade, o diálogo entre filosofia e ciência se mantém ainda mais vivo com Descartes, Pascal, Bacon, Kant, Hegel, Husserl. Só recentemente, pode-se dizer, aconteceu o divórcio e com isso a filosofia se apequenou, foi habitar os desvãos da cultura. A familiaridade com a ciência, não com a última novidade técnica, mas com seus fundamentos é essencial, para que a filosofia se revigore. O tipo de ensino que se dava no ITA à minha época, por se preocupar com os fundamento e rigor em quase todas as matérias ensinadas – e espero que ainda assim seja – foi uma contribuição essencia1 para a força, rigor e consistência geral do meu pensamento filosófico.

Na atualidade, diagnostica-se que impera o chamado “pensamento único”, que na aparência, seria um pensamento meramente interesseiro ou ideológico. A verdade é que a lógica tem por “objeto” justamente o pensamento. Tão apenas por isso, somos obrigados a concluir que se impera um pensamento único é que por trás impera uma lógica única, no caso, a lógica formal, lógica do cálculo de todas as coisas deste e doutros mundos. Isto posto, como pensar qualquer coisa de novo sem antes compreender bem o que é a lógica? Acho que comecei a compreender boa parte disso no ITA [SE ACHAR POR BEM, PODE PARAR AQUI,MAS, A MEU VER, O QUE SEGUE É O MAIOR ELOGIO QUE SE PODERIA FAZER AO NOSSO ITA], mesmo que alguns professores e especialmente os reitores da época, não soubessem bem o “tamanho” da ESCOLA que circunstancialmente dirigiam. Mais isto é Brasil, somos nós. Caso eles soubessem um pouquinho sobre isso, o ITA não seria apenas a melhor escola superior do Brasil; seria a melhor do mundo.


LG - Em sua profissão, como as pessoas viam o senhor como professor de filosofia e engenheiro? Isso sempre foi curioso para elas ou natural? Como o senhor encara isso?

S - È curioso, mas nos ambientes filosóficos que presentemente freqüento, uma graduação em engenharia eletrônica do ITA, ainda infunde mais “terror” do que muito doutorado em filosofia. Mas a coisa é bem mais séria e profunda. Dá para você me acompanhar: o grande problema da humanidade e logo da filosofia hoje é fazer ressurgir o pensamento e a vontade utópicos; em palavras mais simples, fazer renascer o sentido e a esperança na vida. Isto implica que a filosofia venha assumir a função de crítica radical da cultura. Que cultura? A cultura moderna, em cujo cerne está a ciência, particularmente, a física, que não é um saber como os outros, mas, sim, um saber desejante, um saber desmesurado que se propõe explicar tudo valendo-se de apenas três grandezas – tempo, espaço e matéria, daí, os nossos famigerados sistemas de medida cgs, mks. Seja lá o que for, basta-nos três letras, todas as demais grandezas podendo ser expressas em função apenas daquelas três. Algo semelhante ao que foi a filosofia, saber desejante dos gregos: explicar tudo a partir apenas do Um, isto é, do Ser. Deste modo, para se tornar realmente crítica da cultura, a filosofia está hoje obrigada a se confrontar com a ciência, não para substituir o método científico em sua seara, mas para pensar a ciência em sua profunda significação sócio-cultural. Se o filósofo não conseguir dialogar com o cientista, ainda que em nível filosófico, aquela pretensão da filosofia – qual seja, a de abrir caminho para a utopia, para a vontade de um mundo melhor – estará irremediavelmente comprometida. E todos nós, sem salvação. Você pode agora imaginar o quanto as aulas de geometria e lógica (ainda que formal), com o professor Hegenberg, os seminários de applaied mathematics , com o professor Murnaghan, os cursos de física, com o professor Spangenberg e tantos mais me ajudaram e continuam a fazê-lo até hoje?


LG - O senhor tem quantos livros publicados? Escreva um pouco sobre eles, do que tratam.

S - Tenho três livros publicados– Lógica ressuscitada - Sete ensaios, A lógica da diferença, e Filosofia da cultura - Brasil, luxo ou originalidade –; tenho outros três como participante e mais uma dezena que circulam em cópias xerox por aí a fora. Acredito ter conseguido, nestes três livros, reunir um bom número de resultados sobre a lógica e áreas adjacentes, todos eles formando uma trama de razoável grau de coerência. O epicentro do meu labor filosófico está pois na lógica. Fiz um mapeamento geral das lógicas da tradição; caracterizei-as por princípios estritamente operatórios e homogêneos; valendo-me de um formalismo de êxito já consagrado na mecânica quântica, associei valores de verdade a valores próprios destes operadores; dei contornos precisos ao que denomino lógica da diferença (incorporando definitivamente o pensar inconsciente ao universo das lógicas); por fim, desvelei uma nova lógica, a hiperdialética, síntese das lógicas da identidade e de duas diferenças independentes e irredutíveis, lógica imprescindível para que se possa dar conta das coisas e dos processos humanos em sua real complexidade, vale dizer, para além do cientificismo ora reinante. Após este ingente trabalho de esclarecimento e síntese no terreno da lógica, formulei uma precisa antropologia filosófica (um passo além da concepção estruturalista lévi-straussiana) e redesenhei uma conseqüente história da cultura, em cujo prolongamento se abre, ancho e luminoso, o espaço para a emergência de um novo pensamento utópico; há certamente um lugar de vida e esperança para lá da cultura cínica científica moderna. Acho que consegui a decifrar um pouquinho mais a alma brasileira. Bem, toda essa renovação da lógica tem efeitos profundos sobre os fundamentos de praticamente todos os saberes estabelecidos: na matemática, na física, na cosmologia, na antropologia, na psicologia, na economia, mesmo na teologia (que começa agora onde justamente se esgota a hiperdialética mundana). Acho que chega, senão vão me acusar de estar mais para camelô do que filósofo. Gostaria de finalizar agradecendo-lhe o trato delicado e a objetividade das questões, e à direção da AEITA em se interessar pelas minhas respostas.