30.10.17

Assédio (sexual) aos fundamentos da matemática

Apresentação

1. As lógicas e a realidade multifária; fossem tudo, onde estaria a matemática?

2. Uma primeira vez, a questão da matematicidade da matemática

3. A matematicidade surpreendida em sua própria casa, nua, na passagem dos semigrupos aos monóides

4. Finitos e transfinitos lembrando o peixe em meu aquário - bem posto mas obtuso - apenas nada, como fosse seu paralelepípedo de vidro a medida exata do absoluto

5. Os níveis hierárquicos lógico formais e onde se engataria aí a matemática

6. A matemática como salva-vidas universal psíquico, pois tudo está aí bem dito em razão da decidida abstinência semântica - só por isso (ela) jamais afunda

Boa parte de nossas reflexões mais profundas em diferentes campos do saber tiveram origem pedagógica, isto é, no exercício da arte dramática de aprender que  nem sempre sabemos bem o que temos à vera para ensinar. Instados a explicar certas coisas, por vezes aparentemente muito simples, aceitávamos o desafio com muito gosto, como até hoje, e o tentávamos - tendo por suposto, primeiro, que detínhamos o tal saber, segundo, que este era sólido, altamente consistente, insuceptível que à força de um simples sopro se desmanchasse no ar. Ilusão! Explicar para outros sempre traz e produz novidade, pois nos põe numa bem particular relação, na qual cabe-nos, como agravante, a posição de quem é suposto saber. Em psicanálise, isto talvez seja mais fácil, porque devemos apenas lá figurar (as vezes mesmo conferindo as contas da farmácia ou dormindo!) sem necessariamente estar; contudo, em sala de aula, por exemplo, não comparecendo, seremos provavelmente indiciados e malhados como impostores.

É bem verdade que alguns alunos não estão nem aí, e até prefeririam que assim sempre fosse, interessados não em aprender alguma coisa, mas tão apenas em nos tomar o lugar e, nestes tempos bicudos, também a remuneração, mesmo que sabidamente parca. Não são a maioria. Como em geral damos aulas de graça, estamos de certo modo seguros, um pouco à margem desta desagradável circunstância.

Não foram poucas as vezes em que estancamos logo aos primeiros passos: não estávamos sabendo bem o que ensinávamos, em razão de que tudo aquilo não fazia lá grande sentido. E quanto mais próximos estivéssemos dos fundamentos de um determinado saber, mais fundo e a miúde isto acontecia.

Em Matemática, nos é de boa memória o dia em que se deu um destes eventos: amigos, gente da área das "humanas", vieram á nossa casa e perguntaram o que era um grupo matemático? Para que podiam eles querer uma coisa destas tão rija e cristalina, tão pouco fumê?!

Tinhamos aprendido desde Erlangen, há muito, em geometria a que isto servira e tínhamos funda convicção da importáncia crucial dessa teoria para a ordenação hoje do mundo da fisica. Fomos logo ao assunto; era certo que sabíamos bem e de cor quais os axiomas que amarravam a definição de grupo [mito, mas, tentando esboçar, meio de improviso, uma estratégia pedagógica, começaram também as dúvidas. Por que eram exatamente aqueles quatro os axiomas? Por que deveria ser aquela sua ordem expositiva? Que estrutura, do ponto de vista construtivo, a devia imediatamente preceder, isto é, de onde logicamente provinham os grupos? Por que, justo no universo onde impera a elegáncia formal, se deixava à solta um axioma redundante: existência de elemento neutro à esquerda e à direita, quando apenas estivesse tal neutralidade assegurada de um dos lados - garantida como estava a existência em geral do elemento inverso -, facilmente, demonstrava-se valer para o outro?

Quando passamos à Física, ao invés de alívio - pois fiávamo-nos bitolada e ingenuamente na força de seu comprometimento empírico -, qual nada, as coisas até pioravam: as confusões estão já nos a p rio ri. E o que é ainda mais grave: em última instáncia, era justamente destes que ela se irradiava. Só para ilustrar: era uma vez, um feixe de 4 forças governando o mundo; aí, uma trinca de fisicos de gênio abiscoita o prêmio Nobel da especialidade unificando duas delas (eletromagnética e fraca) em apenas uma (eletrofraca), tendo como preço, malgrado, a "descoberta" de outra força até então desconhecida (de Higgs). Todos os livros mencionam e enaltecem o sucedido, mas, com a cara de pau que Deus lhes deu, continuam ainda contando como quatro as benditas forças. Seriam ainda as quatro de partida?

Então, nada teria acontecido. Bem, poderiam ser as quatro iniciais, que com a referida unificação passaram a 3, mas que, com a "descoberta" da nova força de Higgs, teriam voltado a somar 4. Neste caso, a unificação buscada, de fato, acontecera, mas infortunadamente como tal fora vã. No entanto, fosse qual fosse o caso, continuavam sendo 4. Devia toda gente, entrementes, observar que algo inédito e muito sério acontecera: pela primeira vez na história, a natureza, contando apenas com as próprias forças, revidara um ataque desferido pela cultura ocidental. Até hoje a maioria dos teóricos da física transmudados em matemáticos replicados, operando em espaços de 4, 5, 10, 11 e até 23 dimensões, dando torções no vácuo - como outrora espertalhões davam nós em pingos dágua?! - com suas potentíssimas geometrias diferenciais, teorias de espaços fibrados, hoje na moda, teorias de cordas e membranas, não conseguem, entrementes, em matéria de forças, contar de 1 a 4, ou de 1 a 6. Como poderímos explicar isto para nossos alunos, já com as cabeças tomada pelos tenebrosos espectros que em geral chegam antes da dita física?

Em Lógica, não precisávamos mais que abrir a própria boca para duvidar do que ouvíamos. Como, pode, por exemplo, uma lógica estar morta, esquartejada, ter suas partes em formal(izadas) - vejam, por exemplo, o caso das "lógicas" paraconsistentes e paracompletas - e ainda assim andarem por aí vagando, até baixando em cavalos, mulas e computadores, assustando muita gente crédula e pacata?

E a psicanálise, então? Acabando com o dualismo corpo/mente pela introdução da pulsão bifronte; ou, em muitos casos, dando como ganho a troca da unidade consciente de proveniência e semelhança divina, pela briga de duas ou mais intencionalidades endiabradas?! E um dia, defrontamo-nos com catexias, "unidades" de energia, não mensuráveis, nem conversíveis em calor, afora, o caso de senhoras adentrando a menopausa? E a antropologia estrutural, que nos quer fazer crer que com apenas duas diferenças, uma sexual e outra clânica, se pode produzir um homem. Com a dupla diferença, isso é, com a capacidade operatória lógico-formal pode-se bem fazer um computador, mas jamais se chegará a fazer um gato, muito menos, um homem e uma cultura!

Teríamos exemplos contundentes para todos os gostos: na biologia, na psicologia "científica", na filosofia etc., mas devemos nos conter, e nos concentrar na matemática, que é aqui nosso objetivo.

O fato mais interessante é que todo esforços para dirimir ou esclarecer este tipo de questão, fosse qual fosse o saber considerado, levava sempre à lógica. E em particular, sendo o assunto a própria lógica, onde mais poderiam conduzir senão a ela mesma? Não se pode olvidar que a lógica é o único saber que se vê, por natureza, obrigado a dar conta de si mesmo. Isto pode não ser cobrado de toda e qualquer lógica, mas pelo menos uma delas precisará satisfazer tal imperativo, o que significa dizer que entre elas uma haverá necessariamente transcendental.

Nosso propósito aqui é a Matemática, mas por tudo que dissemos, por questão de coerência, teremos que antes colocar na mesa nossos pressupostos lógicos mais duros e a tanto vamos dedicar por inteiro o capítulo 1.

Que é a lógica? Que realidades pensam as diferentes lógicas? Que papel joga aí a linguagem? Sem que esclareçamos cuidadosamente como se articulam lógica e a matemática, não poderemos pretender ir muito longe.

O capítulo 2 irá mostrar como a matemática deriva logicamente da linguagem natural deixando vivos e operantes apenas modos diferenciais de pensar e, ainda, como esta mesma precedência determina diretamente a clivagem fundamental das alternativas possíveis em filosofia da matemática - formalistas e intuicionistas - com exclusão de qualquer outra.
A matemática, no seu afã de auto-suficiência, não escapa de ter que escamotear a questão ontológica - por que há números, conjuntos etc. e não tão apenas Nada? - e o faz transformando seu elemento identitário ou nulo em ente espacial, simétrico à direita e à esquerda, tanto faz consideremos o âmbito, conjuntista (simétrico como as faces de Janos) ou categorista (simétricos como Gêmeos univitelinos), o que será examinado em detalhes no capítulo 3.

Saindo da esfera dos zeros, vazios, indepotentes e automorfismos, viajamos em busca de seus antípodas, embora já os sabendo inexistentes, posto que a matemática não é terra esférica. Vamos aos infinitos ou transfinitos, para constatar que estes, comparados ao absoluto de nosso dia a dia, são apenas pobres diabos.

Que esta transmutação de valores (quê valores?!) - infinitos por cima, absoluto por embaixo - só acontece por força da introdução de um eixo espúrio, malgrado tente ele se passar pelo mais puro - o eixo (sexual), que vai da ambigüidade à máxima limpeza formal. a quinto capítulo retorna à lógica, especificamente à lógica clássica ou da dupla diferença e a seus níveis de estratificação - nível proposicional, do cálculo de predicados, cálculo de classes - para então poder melhor precisar e compreender como a lógica se articula à matemática e demonstrar como é inviável, por princípio, o projeto sexo-logicista russelliano.

Finalizando, o capítiulo 6 se esforça por mostrar que a matemática não raro se transforma em salvavidas- psíquico onde se agarra em desespero gente a perigo de se ver tragada de volta à temível obscuridade do útero que as expeliu um dia. Se ele pôde põ-Io para fora, por que não lhe pode subtrair a existência pondo-o de volta para dentro? E esta obsessão pela limpeza? Que o assédio à matemática tenha lá seu caráter sexual, não é invencionice nossa; é, na verdade, uma insistência sintomática, presente tanto num modesto operador de computadores eletrônicos como nos maiores vultos históricos da grande matemática.

Para que o leitor possa por si só construir uma visão de conjunto do trabalho aqui desenvolvido, arrolamos a seguir, sucintamente, a lista das principais teses que aqui são postas a molestar:

a) A linguagem é, de origem, necessariamente um ente entre, a priori, a lógica, e a posteriori, a matemática;

b) A matemática deriva da linguagem natural pela neutralização ou mumificação de seus poderes totalizantes ou identitários - autoreferente, histórico e ilimitadamente conotativo (ou metafórico);

c) Na matemática, somente duas posições filosóficas justificam-se - o formalismo, que insiste em recalcar o pensamento simples diferencial e os intuicionistas que o toleram, tendo-o como tão inevitáveis como os chistes e os sonhos; os primeiros, tendem ao platonismo, os demais, ao solipsismo ou ao gregarismo corporativista:

d) Toda estrutura matemática necessitando subtrair-se à pergunta pela origem admite um elemento neutro ou nulo, dotado de simetria espacial, isto é, capaz de operar indiferentemente à direita e à esquerda, que, por isto mesmo, não é nem representa o Nada;

e) Da tese anterior derivam dois tipos de matemática: a conjuntista, que se faz simetrizando o elemento neutro - zero, conjunto vazio, operação identidade etc. - e a, que se faz duplicando-os sempre, um à direita e outro à esquerda - automorfismos;

f) Toda estrutura matemática infinita se independentiza do absoluto, conquanto que por isso se veja obrigada a pagar o alto preço da incompletude; em matemática da infinitude, depois de Gõdel, o cobertor ficou curto: se for consistente, será necessariamente incompleto e, vice versa, o que se considera ainda pior desastre;

g) A escada dos transfinitos cantorianos não parte da Terra nem chega ao Céu, como a sonhada escada de Jacó; na verdade é uma escada apenas dos transdiscretos, unindo nada a coisa alguma, mas que serve bem ao cálculo de todas as coisas deste e doutos mundos possíveis. Como pode o capitalismo viver vários séculos sem isto? E o neo-Iiberalismo, sem a equivalência cantoriana, discriminando cada tostão dos pobres finitos, e ignorando os bilhões e bilhões dos ricos transfinitos?

h) Todo infinito é sintático e de nível lógico clássico (dupla diferença), e portanto necessariamente "menor" que o Absoluto de nível lógico hiperdíalético; é a substituição delirante da escala lógica pela escala da pureza (grau de ambigüidade), de evidente conotação sexual, que enseja se inverta a ordem natural do mundo;

i) É esta mesma troca de eixos que faz da matemática, indevidamente, linguagem dos deuses; a física
(matemática), tão típica da Modernidade, por simples ressonância lógica, referenda tal pressuposição; por isso, é desta, até com certa coerência, que toda gente hoje espera a dádiva da vida eterna;

j) Todo elemento nulo é uma dissimulação do Nada sendo seu lugar determinado pelo ser-um e seu "conteúdo", retroativamente, dado pelo ser-outro-doum, permitindo articular em profundidade a problemática matemática à crucial problemática filosófica da diferença ontológicajôntica, tão enfatizada por Heidegger;

1) A problemática teológica está para além da matemática, tem a ver com o Absoluto e nada com infinitos bons ou maus, quantitativos ou qualitativos; mas antes, temos contas a ajustar com o real; Alain Badiou, discípulo, está equivocado - ontologia não é matemática; Lacan, seu mestre na matéria, correto, quando faz o real começar imediatamente após o esgotamento das formalidades; é assim, pelo menos, para os seres humanos;

m) O logicismo russelliano é uma impossibilidade, posto que a matemática deriva da linguagem e não diretamente da lógica; ademais, toda a problemática da consistência/ completude só é inteligível a partir da lógica da singela diferença; restringindo-se a lógica da matemática ao que se faz aparente, isto é, à lógica clássica ou da dupla diferença, aquela problemática perde sua "racionalidade profunda";

n) A assunção emocional irrestrita da lógica formal, logo, da matemática, é sintoma evidente de uma neurose obsessiva;

o) Mas, há bem mais: por se constituir na lógica mais elevada antes de se alcançar a hiperdialética (lógica característica do ser humano na plenitude), a lógica formal ou a matemática pode se constituir numa espécie de salva-histeria ou mesmo salva-psicose, um suporte "externo" (prótese superegóica) a que se pode agarrar o ser humano para não ser tragado de volta para uma lógica menor; o caso mais freqüente, pareceria ser a defesa contra os estados maníaco depressivo e paranóico (este, nem tanto, porque aqui a lógica da simples diferença já se vê capaz de manipular a lógica da dupla diferença, que é, por paradoxal que pareça, produto de sua própria autodiferenciação.

Quando a matemática, sem que se saiba ainda bem porque, de repente, não mais sustenta o indivíduo, este pode cair em trágica depressão ou partir afinal "decidido" para a perversão sexual.

por Luiz Sergio Coelho de Sampaio, 2001

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