17.10.17

Entrevista à Lucila Guedes, junho de 2002

[ENTREVISTA CONCEDIDA EM JUNHO DE 2002 Á JORNALISTA LUCILA GUEDES DO JORNAL DA AEITA (Associação dos Ex-alunos do ITA) E PUBLICADA COM PEQUENOS CORTES E ALTERAÇÕES NO NÙMERO 56 , DO REFERIDO PERIÓDICO]


LG - Conte um pouco sua história antes de entrar no ITA: onde o senhor nasceu, onde morou e porque procurou o ITA (se sempre quis o curso ou foi mais obra do acaso).

S - Sou natural do Rio de Janeiro, do bairro de Vila Isabel, filho de família relativamente pobre de dinheiro, mas não de valores mais ou menos sofisticados. Se explica: meus pais eram ambos membros de ramos decadente de sua respectivas famílias. Estudei no Colégio Militar, pagando uma pequenina mensalidade. Para tanto meu pai, todo o ano ia ao Distrito Policial do bairro para obter um certificado de “miserabilidade em face da Lei”. Eu achava o máximo: era o único ali a possuir este título oficial com carimbos e estampilhas. Bem, um dos meus colegas no último ano era filho do Brigadeiro Teles(ou Telles?) Ribeiro, comandante do CTA, e convidou alguns colegas para visitarem o ITA, entre eles, eu. Por isso, cerca de 10% da minha turma fez exame para o ITA e creio que 4 passaram para o primeiro ano, eu inclusive, e outros 3 para o preparatório. Achei o exame um barato: não precisava “saber” nada; era só raciocinar. Fazia eu ainda exames para a E. N. de Engenharia, quando recebi a notícia da aprovação para o ITA; parei no meio, porque as vantagens financeiras eram patentes e decisivas no meu caso. Acertei no que vi e ainda bem mais no que não vi.

LG - Qual foi o curso escolhido no ITA e quando se formou?

S - Eu, como filósofo avant la letttre, tendia sempre para o mais teórico ou abstrato, por isso fui para a eletrônica. Elétrons não se viam, eram mutantes, onda e partícula, girando de um jeito ou de cabeça para baixo num espaço abstrato, sempre em disparada; tínhamos que agarrá-los não com as mãos, mas pelo pensamento.

LG - Qual foi sua trajetória após se formar? Como aconteceu de o senhor se dedicar à filosofia. Me falou por telefone que antes também trabalhou na bolsa de valores?

S - É um pouco complicado, mas vamos sintetizar ao máximo. Primeiramente, uma bolsa do Governo Francês – de Vila Isabel a São José dos Campos e daí a Paris em tão poucos anos; foi a glória. Na volta, engenheiro na Diretoria de Rotas Aéreas, depois, “calculista” na Comissão Nacional de Planejamento (embrião do Ministério do Planejamento, na época chefiada pelo Celso Furtado). Fiz, junto com um ou dois colegas iteanos, uma pós-graduação em análise de sistema, o primeiro curso desta natureza realizado no Brasil. Concomitantemente, fui diretor de uma empresa de estudos econômicos e organização empresarial, onde fazia de tudo. Lá pelos fins dos anos 70 assumi a diretoria técnica da BVRJ. Graduei-me em economia, mas apenas para evitar problemas com algum Conselho Regional da área econômico-financeira. Fundei e dirigi o IBMEC e junto com Ronaldo Nobre, também iteano “desviado de função”, mais novo, criamos a ABAMEC-Rio. Em 1972 fomos demitidos da BVRJ e do IBMEC a bem da tranqüilidade da roubalheira que então assolava o País; que novidade! Proibidos de trabalhar na área pelas autoridades financeiras (exclua-se, neste particular, apenas o Ministro da Fazenda de então, Delfin Neto). Num encontro casual, fui convidado por um iteano meu contemporâneo – Ovídio Barradas – para ser diretor financeiro da TELERJ (hoje TELEMAR). Fiquei 4 meses esperando que o SNI decidisse se eu era ou não agente da KGB. O general Siqueira, presidente da Empresa, um bom baiano, depois de muito esperar perdeu a paciência e falou com o Delfin, seu amigo, que “quebrou o galho”: em 24 horas fui declarado inocente, apto pois a assumir a Diretoria Financeira da TELERJ. Um ano depois fui para a diretoria Financeira da EMBRATEL; cinco anos após assumi a vice-presidência desta mesma Empresa. Liderei a luta pela implantação da RENPAC, do Ciranda e do Cirandão, as duas últimas, redes teleinformacionais que já faziam tudo que faz a Internet hoje. Em 85, começa a desmontagem da Empresa e sou demitido por ter atrapalhado (apenas o que pude, acho que relativamente pouco) a mutreta armada em Brasília para a compra do primeiro satélite brasileiro. Em licença de saúde, sofri o diabo por 3 anos. Retornei em 1988 e me concedem o dever de não fazer nada. De 1988 a 1992 escrevo cerca de 1800 páginas, sobre filosofia, especialmente lógica, em geral, de onde, depois de depuradas e reelaboradas têm saído os meus escritos publicados. Me aposentei em 1995 depois de passar por sério problema de saúde (mistura quase mortal de cigarro e um pequeno amor à madástria).

A filosofia, antes de ser uma atividade profissional, sempre foi para mim um modo de viver e ver o mundo. No íntimo, nunca passei para o lado da filosofia, sempre estive por lá. Para fixar um marco, diria que o meu primeiro escrito, bastante matemático, entretanto, já com laivos filosóficos foi feito nos meses em que eu esperava a decisão do SNI. Mostrei este pequeno opúsculo ao Professor Almir de Andrade (que escrevia discursos para Getúlio e depois para Juscelino, por isso ganhou um cartório e comprou tudo de livros), homem de rara sabedoria e caráter. Passados alguns anos ele estava envolvido na criação da Academia Brasileira de Filosofia e me mandou um recado: se eu queria ser membro da dita cuja. Aceitei, meio atônito. Afora os parentes, os amigos íntimos e irrestritos, só ele conhecia meus pendores filosóficos... de certo modo, ainda por desabrocharem. Ele achou por bem apostar e assim eu ingressei oficialmente no ramo, na Academia Brasileira de Filosofia, ao lado do próprio Almir de Andrade, Gerd Bornheim, Emmanuel Carneiro Leão, Miguel Reale e outros medalhões. Daí por diante, minha grande tarefa era não desapontar o amigo Almir de Andrade (para quem não sabe, pai do Roberto Bonfim, ator em tudo que é novela da TV Globo)

LG - Sua vocação (filosofia) foi notada antes, durante o curso ou foi depois? Se teve início antes, qual foi seu objetivo em fazer o curso do ITA? Se depois, o que o senhor pensou sobre a profissão que atuaria? Por que e quando preferiu deixá-la?

S - Como lhe disse, filosofia era para mim um tipo de atitude diante da vida e do mundo. Sempre procurei fuçar o lado mais recôndito das coisas. Uma espécie de preguiça mental: saber o estritamente fundamental e depois deduzir o resto. Você não percebeu que eu já achara um barato o exame de admissão ao ITA? Dali, eu pressentira: o curso do ITA serviria para tudo. Sem demérito para os contadores, você já imaginou um iteano que viesse a se dedicar a tais misteres. E também, agora com demérito mesmo, os economistas que afundam hoje o País, passando antes pelo ITA? Não seria maravilhoso, todo mundo iteano, a grande maioria em “desvio de profissão”. Sei que teríamos, como sempre aconteceu, escabrosas exceções, mas na média, estaríamos hoje certamente muito bem.

A bem dizer, eu não larguei a profissão de engenheiro de eletrônica do ITA, apenas exerci suas potencialidades um pouco conforme as circunstância e a idade

LG - O senhor é aposentado, como me contou. Mas continua a dar aulas? Como é sua atuação no momento ?

S - Eu fui aposentado por motivos de saúde. Mas, dar aulas e escrever, para mim, já não é mais trabalho, mas uma terapia altamente eficaz. Nunca fui comunista, mas, ironicamente, hoje recebo de acordo com as minhas moderadas necessidades e trabalho duro, pelo menos 8 horas por dia, conforme as minhas possibilidades, recebendo apenas para pagar o taxi e o monte de xerox que distribuo aos alunos. Dar aulas com regularidade – obviamente, com uma moderada carga horária semanal –, foi o melhor remédio que achei para regularizar a minha tendência hipertensiva. Embora eu tenha alunos de 17 a 65 anos, a maioria é de jovens e estes, em geral, são bastante generosos, de sorte que o contato com eles retarda bastante o envelhecimento mental e se não melhora, pelo menos, não piora a saúde.


LG - Mesmo tendo mudado de profissão, o senhor faz parte de um grupo da população que pode se considerar privilegiado, já que o ITA é uma das melhores faculdades do Brasil e mais de 50% de seus ex-alunos ocupam cargos de diretores, gerentes e presidentes de empresas. Como o senhor pensa, como iteano, o que isso muda em sua profissão e o que o senhor carrega do ITA até hoje?

S - Me considero um privilegiado sob múltiplos aspectos. Do ponto de vista da formação bastaria lembrar minha passagem pelo Colégio Militar e pelo ITA. Fui certamente um dos mais jovens iteanos a ocupar cargos de direção.

O ITA foi fundamental para a minha formação em geral. Toda gente cita apenas o nível do ensino, mas não é só. Professores precisam se dar ao respeito, além da competência técnica, devem ser exemplares sob outros aspectos, como no respeito ao outro, no senso de justiça, na seriedade intelectual, no amor ao Brasil, etc... Creio que proporcionalmente, o ITA, por alguma circunstância histórica, teve sua cota de exemplaridade docente bem acima da média. Acima, pairava o Brigadeiro Montenegro, um brasileiro de verdade; já no ITA, tínhamos professores como Walaushek, Chen To Tai, Leônidas Hegenberg e muitos outros, que os aqui lembrados, certamente bem representam.



LG - É possível aplicar alguns conceitos de sua profissão atuando como professor de filosofia?

S - Muito mais do que se poderia, a princípio, imaginar. A grande filosofia sempre esteve em sério diálogo com o saber científico. Assim foi entre os pensadores gregos; bastaria citar o interesse dos pitagóricos pela matemática, as concepções atomistas de Leucipo e Demócrito, o apreço platônico pelo rigor metodológico da geometria e a contribuição seminal de Aristóteles para a lógica formal. Na modernidade, o diálogo entre filosofia e ciência se mantém ainda mais vivo com Descartes, Pascal, Bacon, Kant, Hegel, Husserl. Só recentemente, pode-se dizer, aconteceu o divórcio e com isso a filosofia se apequenou, foi habitar os desvãos da cultura. A familiaridade com a ciência, não com a última novidade técnica, mas com seus fundamentos é essencial, para que a filosofia se revigore. O tipo de ensino que se dava no ITA à minha época, por se preocupar com os fundamento e rigor em quase todas as matérias ensinadas – e espero que ainda assim seja – foi uma contribuição essencia1 para a força, rigor e consistência geral do meu pensamento filosófico.

Na atualidade, diagnostica-se que impera o chamado “pensamento único”, que na aparência, seria um pensamento meramente interesseiro ou ideológico. A verdade é que a lógica tem por “objeto” justamente o pensamento. Tão apenas por isso, somos obrigados a concluir que se impera um pensamento único é que por trás impera uma lógica única, no caso, a lógica formal, lógica do cálculo de todas as coisas deste e doutros mundos. Isto posto, como pensar qualquer coisa de novo sem antes compreender bem o que é a lógica? Acho que comecei a compreender boa parte disso no ITA [SE ACHAR POR BEM, PODE PARAR AQUI,MAS, A MEU VER, O QUE SEGUE É O MAIOR ELOGIO QUE SE PODERIA FAZER AO NOSSO ITA], mesmo que alguns professores e especialmente os reitores da época, não soubessem bem o “tamanho” da ESCOLA que circunstancialmente dirigiam. Mais isto é Brasil, somos nós. Caso eles soubessem um pouquinho sobre isso, o ITA não seria apenas a melhor escola superior do Brasil; seria a melhor do mundo.


LG - Em sua profissão, como as pessoas viam o senhor como professor de filosofia e engenheiro? Isso sempre foi curioso para elas ou natural? Como o senhor encara isso?

S - È curioso, mas nos ambientes filosóficos que presentemente freqüento, uma graduação em engenharia eletrônica do ITA, ainda infunde mais “terror” do que muito doutorado em filosofia. Mas a coisa é bem mais séria e profunda. Dá para você me acompanhar: o grande problema da humanidade e logo da filosofia hoje é fazer ressurgir o pensamento e a vontade utópicos; em palavras mais simples, fazer renascer o sentido e a esperança na vida. Isto implica que a filosofia venha assumir a função de crítica radical da cultura. Que cultura? A cultura moderna, em cujo cerne está a ciência, particularmente, a física, que não é um saber como os outros, mas, sim, um saber desejante, um saber desmesurado que se propõe explicar tudo valendo-se de apenas três grandezas – tempo, espaço e matéria, daí, os nossos famigerados sistemas de medida cgs, mks. Seja lá o que for, basta-nos três letras, todas as demais grandezas podendo ser expressas em função apenas daquelas três. Algo semelhante ao que foi a filosofia, saber desejante dos gregos: explicar tudo a partir apenas do Um, isto é, do Ser. Deste modo, para se tornar realmente crítica da cultura, a filosofia está hoje obrigada a se confrontar com a ciência, não para substituir o método científico em sua seara, mas para pensar a ciência em sua profunda significação sócio-cultural. Se o filósofo não conseguir dialogar com o cientista, ainda que em nível filosófico, aquela pretensão da filosofia – qual seja, a de abrir caminho para a utopia, para a vontade de um mundo melhor – estará irremediavelmente comprometida. E todos nós, sem salvação. Você pode agora imaginar o quanto as aulas de geometria e lógica (ainda que formal), com o professor Hegenberg, os seminários de applaied mathematics , com o professor Murnaghan, os cursos de física, com o professor Spangenberg e tantos mais me ajudaram e continuam a fazê-lo até hoje?


LG - O senhor tem quantos livros publicados? Escreva um pouco sobre eles, do que tratam.

S - Tenho três livros publicados– Lógica ressuscitada - Sete ensaios, A lógica da diferença, e Filosofia da cultura - Brasil, luxo ou originalidade –; tenho outros três como participante e mais uma dezena que circulam em cópias xerox por aí a fora. Acredito ter conseguido, nestes três livros, reunir um bom número de resultados sobre a lógica e áreas adjacentes, todos eles formando uma trama de razoável grau de coerência. O epicentro do meu labor filosófico está pois na lógica. Fiz um mapeamento geral das lógicas da tradição; caracterizei-as por princípios estritamente operatórios e homogêneos; valendo-me de um formalismo de êxito já consagrado na mecânica quântica, associei valores de verdade a valores próprios destes operadores; dei contornos precisos ao que denomino lógica da diferença (incorporando definitivamente o pensar inconsciente ao universo das lógicas); por fim, desvelei uma nova lógica, a hiperdialética, síntese das lógicas da identidade e de duas diferenças independentes e irredutíveis, lógica imprescindível para que se possa dar conta das coisas e dos processos humanos em sua real complexidade, vale dizer, para além do cientificismo ora reinante. Após este ingente trabalho de esclarecimento e síntese no terreno da lógica, formulei uma precisa antropologia filosófica (um passo além da concepção estruturalista lévi-straussiana) e redesenhei uma conseqüente história da cultura, em cujo prolongamento se abre, ancho e luminoso, o espaço para a emergência de um novo pensamento utópico; há certamente um lugar de vida e esperança para lá da cultura cínica científica moderna. Acho que consegui a decifrar um pouquinho mais a alma brasileira. Bem, toda essa renovação da lógica tem efeitos profundos sobre os fundamentos de praticamente todos os saberes estabelecidos: na matemática, na física, na cosmologia, na antropologia, na psicologia, na economia, mesmo na teologia (que começa agora onde justamente se esgota a hiperdialética mundana). Acho que chega, senão vão me acusar de estar mais para camelô do que filósofo. Gostaria de finalizar agradecendo-lhe o trato delicado e a objetividade das questões, e à direção da AEITA em se interessar pelas minhas respostas.

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