6.10.17

O inevitável exercício cotidiano de todas as lógicas

para Ricardo Kubrusly

“Num destes dias de grande calor, Pedro mal passa pela porta da cantina da universidade, hesita, diminui as passadas emaranhado na dúvida: – Entro para tomar um refrigerante, relaxando a dieta que venho mantendo com tanto sacrifício, ou me dou direito a uma exceção, até para compensar o tanto que já suei hoje? Pára, reflete por meio segundo, decide, se volta e entra na cantina.

Lá está seu Amaro, o concessionário, vascaíno doente, que vendo Pedro, não resiste a provocá-lo: – Vão ou não vão convocar o “homem” para a Seleção? Estamos precisando de alguém para botar a bola para dentro do gol. Pedro se liga automático na conversa que, aliás, vem de longe, e sabemos todos, para nunca acabar: – Faz gol um dia, no outro não joga porque foi expulso por indisciplina. É um mal exemplo para o grupo. Seu Amaro retruca: – Isto é jogo de futebol e não concurso de boas maneiras; só diz isto quem tem inveja do “homem”. Pedro chega a engatilhar o contra-argumento, mas se dá conta a que viera, e corta abrupto – Por favor, seu Amaro, me dê o refrigerante mais gelado que tiver. Ao que este responde: – Gelado, gelado mesmo, só o grapette; acabei de colocar o guaraná na geladeira e a coca o fornecedor não entregou. Pode ser, diz Pedro, já perguntando pelo preço. – Um Real e vinte para você que é bom freguês, aliás, o mesmo preço afixado bem visível na parede. Pedro vê que tem um e trinta mais duas notas de 10, no entanto prefere pagar com uma destas últimas para não ficar sem dinheiro trocado na hora de pegar o ônibus que logo mais irá levá-lo de volta para casa. Entrega a nota de 10 e já calcula o troco que vai receber – 8 e 80 centavos. Seu Amaro faz os cálculos na máquina registradora que aponta aquele mesmo resultado. Entrega o troco a Pedro que apenas confere as notas recebidas, uma de 5 e três de 1 e, por preguiça, dá tão só uma olhada meio na diagonal nas moedas de centavos sem chegar de fato a somá-las e mete tudo no bolso.

Pedro pega a garrafa e o copo já sobre o balcão, senta numa das mesinhas da cantina, se serve pela metade da garrafa, toma uma primeira golada e desliga, esticando ao máximo as pernas entre as cadeiras. A mão esquerda se põe a percutir sobre a mesa, como se fora ela um pandeiro imaginário e cantarola o Feitiço da Vila de Noel Rosa, bem baixinho para que ninguém por perto perceba sua calamitosa desafinação. E fica, por uns dez minutos, meio ali mesmo, meio perdido pelas copas das árvores e o azul limpo do céu que vê através da janela, até terminar o seu refrigerante. Levanta-se de repente e se vai porta afora.”

Aqui estão visivelmente operantes em Pedro os quatro modos básicos de pensar e mais alguma coisa de enorme importância. A cada um desses modos corresponde um saber específico que a tradição nomeou lógica. Lógica em geral é o saber sobre o conjunto desses modos e como se distinguem e se articulam entre si.

Lógica da identidade (I), transcendental ou do mesmo. A dúvida e a decisão de Pedro é um pensar solitário, há o mesmo e não há outro; exercício de pura liberdade, em que pese existirem prós e contra, ainda assim é preciso decidir; trata-se do pensar da autodeterminação. Opera assim quando se decide a entrar na cantina, a cortar a conversa com seu Amaro e o momento de sua partida.

Notícia pretensamente técnica: o primeiro a identificar este modo de pensar, e portanto sua lógica correspondente, foi Parmênides. Ela foi retomada por Descartes inaugurando a modernidade filosófica, depois por Kant/Fichte e finalmente, já em época de crise, por Husserl, sempre visando o sujeito da ciência. Este último a denomina lógica transcendental em explícita contraposição à lógica clássica.

Lógica dialética (I/D), síntese do pensar da identidade e da diferença. Pensar síntese do pensar do mesmo e do outro. Ocorre quando Pedro tenta fazer prevalecer sua opinião, mas se obrigando a levar em conta os argumentos presentes e já admissíveis futuros de seu interlocutor. Trata-se de um pensar estratégico, por excelência.

Notícia pretensamente técnica: o primeiro a identificar este modo de pensar, e portanto sua lógica correspondente, foi Platão, no intuito de visar a idéia. Na modernidade ela foi retomada, já então para visar a História, primeiro, em versão idealista, por Hegel e, depois, em versão materialista, por Marx.

Lógica clássica (D/D) ou da dupla diferença. É quando Pedro faz conta de quanto deve dar e quanto deve receber de troco. O resultado é o mesmo encontrado pela máquina registradora. Pode-se ver isto como se fora um diálogo do mesmo e do outro, em que o primeiro abdica de qualquer intencionalidade e desejo, e assim se faz apenas um outro do outro, mero calculador, impessoal; por isso podemos denominá-la lógica da dupla diferença, lógica do “diálogo convencionado”, de dois já se dando por mortos, sem qualquer laivo de interioridade.

Notícia pretensamente técnica: o primeiro a identificar este modo de pensar, e portanto sua lógica correspondente, foi Aristóteles. Como o reconhecimento da descoberta tem sido unânime e praticamente contínuo ninguém mais temos para citar; é comum lembrar Leibniz, Frege e Bertrand Russell/Whitehead, aqueles que, muito tempo depois, deram início ao processo de sua absolutização, ou seja, à sua axiomatização com o conseqüente apagamento total de seus antecedentes genéticos. Até hoje acreditaríamos que isto fosse possível, não fora o astuto Gödel...

Lógica da diferença (D) ou do outro. Quando Pedro era adolescente, a primeira fábrica de grapette no Rio se instalou em Vila Isabel, próximo à casa onde residira uma namorada de Noel Rosa. Morando nas proximidades, aquele acontecimento contingente ficara para sempre associado na cabeça de Pedro ao herói maior de seu bairro. Quando sentou e se descontraiu para tomar seu refrigerante, o outro (o inconsciente) se apossou de sua mente, que menos cantou do que foi cantado pelo samba paradigmático de Noel.

Notícia pretensamente técnica: é difícil dizer aqui quem primeiro identificou este modo de pensar, pois, estaríamos nos referindo ao logos pré-socrático em pessoa. Poderíamos, sem dúvida, aproveitar para homenagear Heráclito. Na modernidade ela foi retomada por Pascal, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e agora é todo mundo, pois virou moda. O maior mérito, entretanto, estaria com Freud, que identifica sem ambigüidade sonho e pensamento inconsciente e, sobretudo, com Lacan, que a nomeou, com bastante pertinência, lógica do significante. Dei uma mãozinha com a publicação de A Lógica da Diferença, mas acho que não seria o caso de cobrar por isso.

Deve-se observar que em nenhuma ocasião Pedro pensou impropriamente: não imaginou, não argumentou nem decidiu por si quanto seria o troco; não calculou seus argumentos polêmicos futebolísticos, e muito menos, o que deveria cantar; não dialogou com a música de Noel. Pensou sempre adequadamente, tal como se tivesse na cabeça um pensamento administrador capaz de definir qual daqueles modos de pensar deveria, a cada ocasião, sair e entrar em cena. Obviamente este pensamento teria que ser, no mínimo, uma síntese dos modos anteriores, ou seja:

Lógica hiperdialética (I/D/D), síntese da identidade e de duas diferenças ortogonais ou independentes. Lógica síntese das lógicas da identidade (transcendental), da diferença, dialética e clássica (da dupla diferença).

Sem notícia técnica por razões óbvias: ainda não tenho suficiente cara de pau para explicar “por que escrevo tão boa lógica”.

E, por experiência vivida, minha e de todos nós, sabemos que, humanamente, não existem outros modos de pensar que não sejam estes mesmo reiterados ou ás vezes, em regime cooperativo; outras vezes, infelizmente, por stress ou debilidade constitutiva, um deles impera discricionária e irreversivelmente sobre os outros ou competem de maneira anárquica entre si. Por “coincidência”, também de nenhum outro grande pensador temos notícia para poder com justiça incluí-lo em novas notas técnicas.

E tudo sopesado então me indago: não seria bem mais prático tomar uma lógica já pronta e funcionado, esperando apenas por seu reconhecimento cultural, do que esperar sentado e casmurro que um Deus teutônico venha nos salvar?

L. S. Coelho de Sampaio
Rio de Janeiro, 12/10/2002


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

NIETZSCHE, F. Ecce homo – Como alguém se torna o que é. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
SAMPAIO, L. S. C. de. A lógica da diferença, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2001


Nenhum comentário:

Postar um comentário