para Ricardo Kubrusly
“Num destes dias de grande calor, Pedro mal passa pela porta da cantina da universidade, hesita, diminui as passadas emaranhado na dúvida: – Entro para tomar um refrigerante, relaxando a dieta que venho mantendo com tanto sacrifício, ou me dou direito a uma exceção, até para compensar o tanto que já suei hoje? Pára, reflete por meio segundo, decide, se volta e entra na cantina.
Lá está seu Amaro, o concessionário, vascaíno doente, que vendo Pedro, não resiste a provocá-lo: – Vão ou não vão convocar o “homem” para a Seleção? Estamos precisando de alguém para botar a bola para dentro do gol. Pedro se liga automático na conversa que, aliás, vem de longe, e sabemos todos, para nunca acabar: – Faz gol um dia, no outro não joga porque foi expulso por indisciplina. É um mal exemplo para o grupo. Seu Amaro retruca: – Isto é jogo de futebol e não concurso de boas maneiras; só diz isto quem tem inveja do “homem”. Pedro chega a engatilhar o contra-argumento, mas se dá conta a que viera, e corta abrupto – Por favor, seu Amaro, me dê o refrigerante mais gelado que tiver. Ao que este responde: – Gelado, gelado mesmo, só o grapette; acabei de colocar o guaraná na geladeira e a coca o fornecedor não entregou. Pode ser, diz Pedro, já perguntando pelo preço. – Um Real e vinte para você que é bom freguês, aliás, o mesmo preço afixado bem visível na parede. Pedro vê que tem um e trinta mais duas notas de 10, no entanto prefere pagar com uma destas últimas para não ficar sem dinheiro trocado na hora de pegar o ônibus que logo mais irá levá-lo de volta para casa. Entrega a nota de 10 e já calcula o troco que vai receber – 8 e 80 centavos. Seu Amaro faz os cálculos na máquina registradora que aponta aquele mesmo resultado. Entrega o troco a Pedro que apenas confere as notas recebidas, uma de 5 e três de 1 e, por preguiça, dá tão só uma olhada meio na diagonal nas moedas de centavos sem chegar de fato a somá-las e mete tudo no bolso.
Pedro pega a garrafa e o copo já sobre o balcão, senta numa das mesinhas da cantina, se serve pela metade da garrafa, toma uma primeira golada e desliga, esticando ao máximo as pernas entre as cadeiras. A mão esquerda se põe a percutir sobre a mesa, como se fora ela um pandeiro imaginário e cantarola o Feitiço da Vila de Noel Rosa, bem baixinho para que ninguém por perto perceba sua calamitosa desafinação. E fica, por uns dez minutos, meio ali mesmo, meio perdido pelas copas das árvores e o azul limpo do céu que vê através da janela, até terminar o seu refrigerante. Levanta-se de repente e se vai porta afora.”
Aqui estão visivelmente operantes em Pedro os quatro modos básicos de pensar e mais alguma coisa de enorme importância. A cada um desses modos corresponde um saber específico que a tradição nomeou lógica. Lógica em geral é o saber sobre o conjunto desses modos e como se distinguem e se articulam entre si.
Lógica da identidade (I), transcendental ou do mesmo. A dúvida e a decisão de Pedro é um pensar solitário, há o mesmo e não há outro; exercício de pura liberdade, em que pese existirem prós e contra, ainda assim é preciso decidir; trata-se do pensar da autodeterminação. Opera assim quando se decide a entrar na cantina, a cortar a conversa com seu Amaro e o momento de sua partida.
Notícia pretensamente técnica: o primeiro a identificar este modo de pensar, e portanto sua lógica correspondente, foi Parmênides. Ela foi retomada por Descartes inaugurando a modernidade filosófica, depois por Kant/Fichte e finalmente, já em época de crise, por Husserl, sempre visando o sujeito da ciência. Este último a denomina lógica transcendental em explícita contraposição à lógica clássica.
Lógica dialética (I/D), síntese do pensar da identidade e da diferença. Pensar síntese do pensar do mesmo e do outro. Ocorre quando Pedro tenta fazer prevalecer sua opinião, mas se obrigando a levar em conta os argumentos presentes e já admissíveis futuros de seu interlocutor. Trata-se de um pensar estratégico, por excelência.
Notícia pretensamente técnica: o primeiro a identificar este modo de pensar, e portanto sua lógica correspondente, foi Platão, no intuito de visar a idéia. Na modernidade ela foi retomada, já então para visar a História, primeiro, em versão idealista, por Hegel e, depois, em versão materialista, por Marx.
Lógica clássica (D/D) ou da dupla diferença. É quando Pedro faz conta de quanto deve dar e quanto deve receber de troco. O resultado é o mesmo encontrado pela máquina registradora. Pode-se ver isto como se fora um diálogo do mesmo e do outro, em que o primeiro abdica de qualquer intencionalidade e desejo, e assim se faz apenas um outro do outro, mero calculador, impessoal; por isso podemos denominá-la lógica da dupla diferença, lógica do “diálogo convencionado”, de dois já se dando por mortos, sem qualquer laivo de interioridade.
Notícia pretensamente técnica: o primeiro a identificar este modo de pensar, e portanto sua lógica correspondente, foi Aristóteles. Como o reconhecimento da descoberta tem sido unânime e praticamente contínuo ninguém mais temos para citar; é comum lembrar Leibniz, Frege e Bertrand Russell/Whitehead, aqueles que, muito tempo depois, deram início ao processo de sua absolutização, ou seja, à sua axiomatização com o conseqüente apagamento total de seus antecedentes genéticos. Até hoje acreditaríamos que isto fosse possível, não fora o astuto Gödel...
Lógica da diferença (D) ou do outro. Quando Pedro era adolescente, a primeira fábrica de grapette no Rio se instalou em Vila Isabel, próximo à casa onde residira uma namorada de Noel Rosa. Morando nas proximidades, aquele acontecimento contingente ficara para sempre associado na cabeça de Pedro ao herói maior de seu bairro. Quando sentou e se descontraiu para tomar seu refrigerante, o outro (o inconsciente) se apossou de sua mente, que menos cantou do que foi cantado pelo samba paradigmático de Noel.
Notícia pretensamente técnica: é difícil dizer aqui quem primeiro identificou este modo de pensar, pois, estaríamos nos referindo ao logos pré-socrático em pessoa. Poderíamos, sem dúvida, aproveitar para homenagear Heráclito. Na modernidade ela foi retomada por Pascal, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e agora é todo mundo, pois virou moda. O maior mérito, entretanto, estaria com Freud, que identifica sem ambigüidade sonho e pensamento inconsciente e, sobretudo, com Lacan, que a nomeou, com bastante pertinência, lógica do significante. Dei uma mãozinha com a publicação de A Lógica da Diferença, mas acho que não seria o caso de cobrar por isso.
Deve-se observar que em nenhuma ocasião Pedro pensou impropriamente: não imaginou, não argumentou nem decidiu por si quanto seria o troco; não calculou seus argumentos polêmicos futebolísticos, e muito menos, o que deveria cantar; não dialogou com a música de Noel. Pensou sempre adequadamente, tal como se tivesse na cabeça um pensamento administrador capaz de definir qual daqueles modos de pensar deveria, a cada ocasião, sair e entrar em cena. Obviamente este pensamento teria que ser, no mínimo, uma síntese dos modos anteriores, ou seja:
Lógica hiperdialética (I/D/D), síntese da identidade e de duas diferenças ortogonais ou independentes. Lógica síntese das lógicas da identidade (transcendental), da diferença, dialética e clássica (da dupla diferença).
Sem notícia técnica por razões óbvias: ainda não tenho suficiente cara de pau para explicar “por que escrevo tão boa lógica”.
E, por experiência vivida, minha e de todos nós, sabemos que, humanamente, não existem outros modos de pensar que não sejam estes mesmo reiterados ou ás vezes, em regime cooperativo; outras vezes, infelizmente, por stress ou debilidade constitutiva, um deles impera discricionária e irreversivelmente sobre os outros ou competem de maneira anárquica entre si. Por “coincidência”, também de nenhum outro grande pensador temos notícia para poder com justiça incluí-lo em novas notas técnicas.
E tudo sopesado então me indago: não seria bem mais prático tomar uma lógica já pronta e funcionado, esperando apenas por seu reconhecimento cultural, do que esperar sentado e casmurro que um Deus teutônico venha nos salvar?
L. S. Coelho de Sampaio
Rio de Janeiro, 12/10/2002
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
NIETZSCHE, F. Ecce homo – Como alguém se torna o que é. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
SAMPAIO, L. S. C. de. A lógica da diferença, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2001
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