14.9.17

Tendências da Filosofia Brasileira Contemporânea – os neohegelianos

por Aquiles Côrtes Guimarães


A presente Coleção pretende ser um veículo de divulgação do pensamento filosófico brasileiro contemporâneo, nas suas variadas manifestações. Neste sentido, ela realiza a inadiável tarefa de mostrar ao público um mapeamento sumário daquilo que vem se constituindo em preocupação dominante daqueles que se dedicam à atividade do pensamento entre nós, nas últimas décadas, quer como esforço de elucidação do destinar da nossa cultura na historicidade brasileira, quer como fruto de investigações institucionais levadas a efeito nas Universidades.

A atividade filosófica brasileira é aquela que “suporta” o maior peso na ordem do “encobrimento” do trabalho intelectual, até mesmo em razão da natureza do discurso filosófico, sempre recatado, para não se confundir com os desvarios daqueles que pretendem fazer da reflexão filosófica o lugar da manifestação de narcisismos exacerbados. Raramente um filósofo é ouvido com seriedade, a não ser aqueles que dedidcam a reflexão filosófica às investigações sobre a natureza das instituições político – jurídicas, sempre ouvidos nos momentos de agudização das crises institucionais, como é o caso de Miguel Reale.

Cientistas políticos, sociólogos, antropólogos, economistas e tantos outros “cientistas” estão sempre à disposição da mídia para opinarem sobre temas de suas especialidades. Com o filósofo brasileiro ocorre o contrário. Em princípio, ele detesta a mídia, incapaz de entender um mínimo do seu discurso e quase sempore se refugia nos abrigos dos Congressos, Simpósios e Colóquios em cujos lugares fala para um público especializado. Tudo isso decorre do alto grau de alienação da sociedade, refratária a qualquer tipo de reflexão aprofundada que se coloque a serviço da explicitação das raízes dos seus próprios desencontros. É mais cômodo acreditar nas fórmulas de uma retórica supostamente revestida do caráter de cientificidade do que inquirir sobre a proveniência dos próprios modos de articulação do nosso destinar histórico.

Daí, o generalizado desconhecimento da Filosofia Brasileira entre nós, reforçado pelo desprezo à ordem das idéias e, marcadamente, pelo culto às fabricações literárias combinadas com outras fabricações subalternas que provocam maiores emoções.

Desta forma, a Coleção pretende dar conta ao público daquilo que pensam hoje os brasileiros no campo da reflexão filosófica: o que pensam, como pensam e como se articulam os seus modos de pensar com as categorias até hoje postas à disposição do pensamento na ordem universal das idéias.

O mapeamento da filosofia brasileira contemporânea, do ponto de vista didático, não poderia fugir aos critérios da historiografia filosófica ocidental – pelo menos provisoriamente.

Por essa razão, os pensadores a serem divulgados serão agrupados no velho critério de correntes, desde que as questões mais salientes na meditação de cada um deles se adquem a esse critério, embora com os riscos de protestos do próprio pensador ainda vivo, o que será altamente salutar.

Assim, virão à luz aqueles que poderíamos denominar de neohegelianos, neotomistas, neomarxistas, fenomenólogos e existencialistas neopositivistas, neoanaliticistas e assim por diante.

O denominado culturalismo brasileiro constituir-se-á em objeto de análise autônoma, dado que é reivindicada para essa perspectiva, com fortes argumentos, a condição de portadora da possibilidade de interpretação do espírito da cultura brasileira.

A Coleção Tendências da Filosofia Brasileira Contemporânea se apresenta revesitda de muita modéstia, buscando apenas difundir, em pequenos volumes, aquilo que se produz, em termos de filosofia, no Brasil de hoje.

Iniciamos a Coleção tratando dos neohegelianos. E, dentre estes, apresentando o pensamento de Luiz Sérgio Coelho de Sampaio, numa monografia que resultou de um projeto de pesquisa coordenado pelo Prof. Aquiles Côrtes guimarães, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o apoio do CNPQ e da próprioa Universidade.

A seguir, serão objetos de análise os pensadores abaixo nominados, na mesma perspectiva e ocupando o mesmo espaço editorial: Djacir Menezes, Henrique Claudio de Lima Vaz e Roland Corbisier.

Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Departamento de Filosofia
Programa de Estudos de Filosofia Brasileira


Projeto de Pesquisa: Tendências da Filosofia Brasileira Contemporânea
Relatório parcial – 1994
Autor: Prof. Dr. Aquiles Côrtes Guimarães




Esclarecimentos:

Ao longo do desenvolvimento do projeto temos optado pela busca de uma caracterização daquilo que existe de mais representativo na produção filosófica brasileira contemporânea, indiferente ao fato de ser ela fruto da atividade acadêmica ou do exercício da reflexão fora dos rituais institucionais "legitimadores". A história da filosofia nos ensina que nem sempre títulos e prêmios recomendam filósofos

Para além de qualquer intenção cronística de inspiração provinciana – seria um "desastre" para o relato filosófico – o que nos interessa é o diálogo filosófico assumido pela geração contemporânea no Brasil.

Estamos convencidos de que a filosofia brasileira, antes de ser brasileira tem que ser filosofia, isto é, atividade reflexiva nos horizontes daquilo que os gregos antigos nos legaram como referências de atividade filosófica, ainda não superadas, a despeito de todo o esforço heideggeriano contemporâneo no sentido de reconstituir radicalmente os caminhos da metafísica ocidental.

Tomamos como critério duas premissas: 1. os graus de assimilação dos momentos capitais da filosofia ocidental por parte do filósofo brasileiro, dentro do quadro de tendências especificadas no projeto; 2. os graus de diversidade manifestada pelo filósofo brasileiro em relação aos problemas assumidos pelos seus inspiradores.

Desta forma, escolhemos o caminho não cartesiano na realização do projeto, começando pelo seu último item, referente ao neohegelianismo na filosofia brasileira contemporânea. E nesta perspectiva são analisadas as tendências da obra filosófica de Luiz Sérgio Coelho de Sampaio.

O próximo Autor a ser analisado é Djacir Menezes, cuja obra filosófica, segundo nos parece, reflete a mesma atmosfera neohegeliana.


Prof. Dr. Aquiles Côrtes Guimarães
Rio de Janeiro, novembro de 1994.






SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

I - O NÚCLEO CENTRAL DA FILOSOFIA DE SAMPAIO

II - A LÓGICA E OS MÚLTIPLOS SABERES SEGUNDO SAMPAIO

1. Lógica

2. Lógica e Cultura

3. Lógica e Economia

4. Lógica e Teologia

5. Lógica e Psicanálise

6. Lógica e Física

III - CONCLUSÃO

IV - NOTAS

V - BIBLIOGRAFIA






INTRODUÇÃO

LUIZ SERGIO COELHO DE SAMPAIO nasceu na cidade do Rio de Janeiro, no bairro de Vila Isabel, em 1933. Cursou o Colégio Militar de onde passou ao Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) formando-se em engenharia eletrônica. Bacharelou-se também em economia, e após, realizou pós-graduação em análise de sistemas (ENCE) num dos primeiros cursos desta natureza realizado no País.

Sobre o contacto de Sampaio com a filosofia nada melhor que o seu próprio testemunho que encontramos no seu depoimento para Rumos da filosofia atual no Brasil em auto-retratos:

Até onde pode alcançar a memória, estivesse eu ocupado com este ou aquele interesse ou tarefa, me vejo sempre fuçando-lhe os fundamentos, tentando alargar e entretecer o espaço de sua contextualidade, buscando equilibrar o que pudesse em cima de dois ou três princípios, botando dúvida em todas as certezas, tentando vislumbrar as implicações éticas das intenções e ações em jogo. Nestas circunstâncias, me é hoje quase impossível identificar um salto, uma súbita iluminação, um fato ou uma voz que pudesse assinalar onde, de fato, foi para mim a porta de entrada da Filosofia. Tenho a sensação de ter entrado por qualquer lado. Talvez por uma fresta, como o vento. [RFB-p.3] (1)

É na lógica que o nosso filósofo centra seu interesse, não apenas na lógica formal ou formalizável, mas em todas as lógicas da tradição: na aristotélica ou clássica; na transcendental, seja na versão que lhe é imposta por Kant/Fichte, seja na sua versão fenomenológica husserliana; na dialética, tanto em seu momento simbólico (Platão), quanto em seu momento historicista (Hegel/Marx); na manifestamente dispersa lógica da diferença – expressão esta de significado delimitado e caracterizado pelo próprio Sampaio – e que subsume, entre outras, as lógicas do paradoxo (Kierkegaard), intuicionista (Brower), paraconsistente (N. da Costa) e do significante (Lacan). A partir deste amplo inventário ele nos propõe uma nova lógica, síntese de todas elas, que denomina ora lógica do ser-subjetivo-em-sua-integralidade, ora lógica qüinqüitária, lógica esta ao mesmo tempo em confronto e em continuidade com a lógica dialética trinitária de Hegel.

É ainda do Depoimento acima mencionado que retiramos sua definição suscinta do que venha a ser filosofia:

Resumidamente diríamos, então, que a Filosofia é a etapa superior do processo de auto-desvelamento das estruturas onto-lógicas, epistemo-lógicas e praxio-lógicas em seus múltiplos níveis num horizonte onto-lógico necessariamente transcendente. [RFB-p.7]

Examinando seus trabalhos, vamos encontrar o que Sampaio pretende devam ser as duas grandes funções externas da filosofia na época atual, em especial para nós brasileiros. A primeira, seria a crítica dos fundamentos e da totalidade arquitetônica de cada um dos saberes constituídos. Donde se depreende, em suma, que para ele a filosofia deve ser, enquanto tal, hegeliana, porém, em suas funções externas, abertamente kantiana. A segunda função seria aquela de crítica da cultura. Sampaio justifica tal posição argumentando que a crítica da cultura, pelo menos em seus momentos cruciais, não pode ser deixada a cargo do simples aparelho crítico interno à própria etnologia (ou antropologia) – de resto comum a todo saber que se pretenda rigorosamente científico – e isto em razão de que o etnólogo (ou antropólogo), no caso, estará sendo parte inexorável do objeto em questão. A crítica da cultura – por suposto, não a mera etnografia – excederia, a seu juízo, a própria cientificidade. Na medida em que também para ele o processo social brasileiro não se enquadra numa simples dialética de classes e sim numa dialética de culturas, pode-se bem compreender a ênfase no papel funcional que ele tanto reivindica para a filosofia.

Diga-se, de passagem, que o próprio Sampaio, coerente com suas postulações, vem operando nas duas direções acima mencionadas, como aliás teremos oportunidade de mostrar na parte II deste relatório.

Ainda nesta introdução deveríamos fazer uma especial referência à questão de estilo em Sampaio, que, a primeira vista, parece menos um estilo do que uma desconsertante mistura deles. Não raro defrontamo-nos com extensos e intrincados períodos entremeados, de um lado, com complexas figuras geométricas a exigir do leitor apurado sentido geomético, de outro lado, com um sofisticado simbolismo formal acompanhado de verdadeiras demonstrações matemáticas. Ainda que não renunciemos a esta apreciação, não seria justo deixar de aqui registrar a defesa antecipada que ele faz contra este tipo de crítica e que se encontra no já referido Depoimento. O trecho abaixo foi retirado de sua resposta às perguntas "Pode existir a Filosofia Nacional Brasileira? Ela existe?" formuladas pelo Dr. P. Ladusãns S.J. Explica-se o filósofo:


Levássemos esta questão à consideração de um amplo círculo de cultores da filosofia, aqui ou alhures, por certo a esmagadora maioria responderia que não. Aderimos a esta maioria, porém, apondo um certo mas. Deste é que trataremos daqui por diante. Não podemos esquecer que a filosofia se faz em e pela linguagem, e muito freqüentemente, contra os seus limites vigentes. Diríamos mais: a Filosofia e a poesia são, afora o obrar difuso e inconsciente do povo, as principais responsáveis pelo alargamento e aprofundamento da língua. A Filosofia nasceu falando grego, já falou latim e hoje fala alemão como bem observou Caetano Veloso.

Temos a certeza de que não haverá verdadeira filosofia no Brasil enquanto não conseguirmos, ao menos, balbuciar suas primeiras proposições em português, especificamente, no português do Brasil. Mas não estaríamos aqui diante de um círculo vicioso?! De certo modo, sim, porém, seria possível começar apelando – e isto é uma prerrogativa inalienável de quem começa – e o faríamos escorando nossa linguagem, de um lado, com os recursos expressivos dos desenhos, esquemas, gráficos e coisas que o valham; de outro lado, com alguns recursos do simbolismo matemático para aguçar-lhe a precisão; e até, por baixo e por cima, com tiradas poéticas para espicaçar sua criatividade potencial. [RFB-p.14]

Damos seguimento a este relatório com dois itens; o primeiro, de sentido vertical, em que buscamos explicitar o núcleo central da filosofia de Sampaio; o segundo, em que orientamos nossa exposição num sentido horizontal analisando suas contribuições à lógica bem como à questão da relação desta última com os diferentes saberes hoje já instituídos.



I - O NÚCLEO CENTRAL DA FILOSOFIA DE SAMPAIO

Seja por aquela que constitui sua obra mais fundamental – Noções elementares de lógica, vol. I e II –, seja pela insistência com que o termo lógica ocorre nos títulos e sub-títulos de seus numerosos outros trabalhos, poderíamos ser levados a imaginar que Sampaio pertence a linhagem dos lógicos na acepção moderna e corrente do termo: um obsecado pelas linguagens formais, pelas teorias da dedução ou argumentação rigorosa, em suma, um cultor da lógica matemática, que sabemos hoje uma prestigiada especialidade acadêmica. Pensar assim, alertamos, seria o mais grosseiro dos equívocos: o estilo para-formal, o rigor lógico, os esquemas altamente estruturados estão, sim, bem presentes na sua obra, porém, nunca como um fim em si, mas sempre, e tão apenas, como uma exigência propedêutica para a verdade – a verdade do ser.

Aliás, o próprio Sampaio se manifesta contra a estreiteza com que, de modo geral, o tema lógica vem sendo hoje considerado nos meios acadêmicos e se põe claramente a favor de uma concepção bem mais abrangente, conquanto precisa do termo, diga-se de passagem, em completa sintonia com as raízes de sua acepção histórica.

Por trás de tudo que estamos dizendo está um pressuposto que devemos deixar bem claro: referimo-nos à extensão com que deve ser aqui tomado o termo lógica. Para nós deve-se-lhe atribuir uma extensão suficientemente estreita para deixar fora o uso impreciso do termo, hoje tão comum, em que lógica funciona no sentido genérico do que é básico ou invariante. Também deve-se deixar de fora as elucubrações formais dos que – seguindo o exemplo dos geômetras não-euclidianos – promovem variações arbitrárias dos axiomas lógicos clássicos para produzir "novos" sistemas. Nada temos contra este tipo de atividade, desde que ele se intitule o que verdadeiramente é: simples matemática. (NEL-II – Introdução)


Insurge-se Sampaio, especificamente, contra a confusão corrente entre lógica e linguagem, afirmando que:

A Lógica, diferentemente da matemática, não é linguagem; ela tem bem do que falar, não sendo, portanto, mero jogo de convencionalidades.

Assim como a física é o discurso racional sobre o mundo físico, a lógica o é sobre o mundo lógico, vale dizer, sobre o pensamento, tomado este numa acepção mais larga do que é de costume, porém, não muito distante do que consigna, de fato, a tradição filosófica. Abarca a lógica aristotélica, a dialética heraclitiana, a lógica transcendental de Kant, Fichte e Husserl, a dialética platônica e hegeliana, a lógica intuicionista de Brower, a lógica do paradoxo de Kierkegaard, sem esquecer a lógica freudiana que Lacan veio explicitar e nomear lógica do significante. Acreditamos que se pudesse mesmo incluir algo que, embora ainda não suficientemente precisado, pode estar prenunciando o advento de uma nova lógica, que alguns lacanianos denominam lógica do ser-falante. (NEL-C.p.5)



Com estas considerações introdutórias estamos nos prevenindo contra interpretações estreitas e apressadas do pensamento de Sampaio, porém, na verdade, ainda muito longe de fazer justiça à originalidade, largueza e profundidade de sua macro-visão filosófica. Começamos afirmando que nosso autor filia-se a uma respeitável e antiga tradição filosófica que remonta a Parmênides. Já então afirmava o grande pensador eleata:



...pois o mesmo é pensar e ser.



Ora, para Sampaio, é bem disso que se trata: a lógica, ou melhor, as lógicas são saberes sobre cada um dos modos de pensar, e a cada um destes modos, corresponde, estritamente, um modo específico de ser. Com isto fica estabelecida uma indissolúvel correlação entre ser e pensar, consequentemente, entre lógica e ontologia. Diz-nos textualmente Sampaio:



A lógica constitui-se, ademais, na contra-face da ontologia; a rigor, deveríamos reconhecer apenas uma única onto-logia, em que a ordem dos termos aí em jogo não deve ter por justificativa muito mais que a simples eufonia. Nenhuma novidade: entre os gregos já se dizia que ser e pensar são o mesmo – em que pese seu ulterior "afastamento", não deixaria de, com lástima, observar Heidegger. Mais recentemente, Hegel declarou com gravidade que o que é racional é real, e o que é real é racional, com o que se há de concordar, desde que não sejamos assaz conservadores empacando, com exclusivismo, ao nível da dialética. (NEL-C-p.5)



Esta referência final a Hegel é iluminadora e pode propiciar-nos uma boa via de aproximação ao pensamento de Luiz Sergio. De fato, mais de dois mil anos depois, a velha concepção inaugurada com Parmênides vai encontrar seu clímax em Hegel; para ilustrá-lo bastaria lembrar o que talvez seja sua mais famosa fórmula aforística:



O que é racional é real, e o que é real é racional.



Fica tácito, entrementes, que aqui o racional é o pensar especificamente dialético - pensar síntese da identidade e da diferença - e o real correlato, a idéia, ou correspondentemente o espírito em sua realização histórica. O núcleo central do pensamento de Sampaio, vê-se claramente, é o mesmo encontrado em Parmênides, e mais recentemente em Hegel, porém, como o pensar dialético hegeliano não é o suposto pensar parmenídeo, também o racional sampaiano não é o racional hegeliano, e sim algo maior, que não o nega, mas o ultrapassa.

Explicitada a pertinência de Sampaio a este filum filosófico, torna-se mais ou menos óbvio que a melhor estratégia para alcançarmos a mais rápida compreensão do seu pensamento será confrontá-lo com a filosofia hegeliana, especificamente no que tange aos seus aspectos lógicos fundamentais. Esta estratégia torna-se ainda mais recomendável quanto atinamos para o fato de que o próprio Sampaio, no primeiro sub-capítulo do segundo volume de sua Noções elementares de lógica, já se dera a missão de medir suas diferenças com Hegel. Embora a titulação do referido sub-capítulo seja absolutamente genérica – Lógica e Filosofia – o texto centra-se única e exclusivamente na crítica ao pensamento hegeliano. A nosso juízo, se o critério foi objetividade e concisão, a escolha de Sampaio não poderia ter sido mais feliz.



A comparação das especificidades da correlação entre realidade e pensamento – ou equivalentemente, entre ontologia e lógica – em Hegel e em Sampaio pode, no essencial, ser compactada em apenas cinco pontos capitais:



1) O primeiro ponto a considerar é a sutil diferença que está em Sampaio, mas não em Hegel, acerca das realidades – conceito (idéia) e história – visadas pela dialética.

Luiz Sergio, analisando o pensamento de Hegel, precisa muito bem esta diferença, pelo que vale a pena citá-lo um tanto longamente:



O equívoco central da filosofia de Hegel, a nosso ver, é de ordem eminentemente lógica, e situa-se na ambiguidade em que ele deixa ficar a dialética. Esta é desvelada como modo próprio de pensar a história – no que não poderia estar mais correto – ao mesmo tempo em que a conserva como modo igualmente próprio de visar a idéia (o conceito, ou ainda, o espírito), à semelhança do que fizera também corretamente Platão vinte séculos antes. O problema é que a dialética para poder assumir a responsabilidade de pensar a história, precisa antes demitir-se de suas responsabilidades para com a idéia ou o espírito. Mas a coisa não fica nisso. Como o que já se revelara à existência – no caso, a idéia ou o espírito – não pode simplesmente ser desconsiderado, é forçoso que venha a ser acolhido por uma outra lógica, um outro modo de pensar que não o dialético. Esta nova lógica a assumi-lo, é óbvio, não irá deixá-lo tal qual; ela terá por função precisa a de quebrar seu caráter de completude ou totalidade, preparando-o assim para uma eventual articulação externa legalizada. Em termos semiológicos, dir-se-ia que o signo constituído pelo pensar dialético é passado ao encargo de uma outra lógica que o faz, doravante, ser significante. Opera aí a mesma determinação lógica que dá sentido à fala de Cristo mostrando aos apóstolos que é necessário que ele parta para que, lá do "alto", possa enviar-lhes o Espírito que os irá guiar e assistir (agora, por "dentro"), tornando-os assim susceptíveis de uma retotalização comunitária segundo a lei do Pai. O espírito, "baixando", irá se alojar dentro deles e constituir em cada um, seu ser-inconsciente. A lógica capaz desta performance destotalizante, sabemos, é a lógica da diferença, que antes se ocupava em pensar o ser-concreto (a res extensa, ou se quisermos, a natureza). Em consequência, o que estava sendo pensado pela lógica da diferença (o ser concreto) terá que ser também abandonado, e igualmente recolhido por uma outra lógica. Esta última, por suposto, precisará ser uma lógica capaz de articular as idéias (ou os espíritos) destotalizados ora reduzidos a simples e diferenciados significantes. Esta, também já sabemos, é a lógica clássica – da dupla diferença ou sistêmica, ou ainda em termos semiológicos, lógica sintáxica.

Hegel, ao manter a dialética visando, simultaneamente, a idéia (ou espírito) e a história, passa por cima de todo este necessário remanejamento onto-lógico, permanecendo, pois, cego, tanto aos seus antecedentes, quanto aos seus consequentes.

Ainda que só em parte, ou por este ou aquele particular viés, o grande equívoco hegeliano chegou a ser percebido e criticado por alguns de seus contemporâneos. Kierkegaard foi o mais arguto destes; teve a exata noção de que posta a dialética a pensar objetivamente a história, esta iria suscitar um sujeito específico – não cartesiano – também requerente de uma lógica própria. Este sujeito é o sujeito trágico, dividido e irresolvido, um eu que é irremediavelmente eu e outro, finito e infinito, impossível de qualquer síntese. Atente-se: o sujeito da história precisa ser de algum modo posto autonomamente; não pode simplesmente evoluir ou derivar do sujeito cartesiano tal como pretendeu Hegel, que acabou assim fazendo-o coincidir ou diluir-se no próprio espírito absoluto.

Ninguém negaria que a sensibilidade de Hegel para a história é ímpar. Chegou a confessar que a vira passando frente à porta. Mas, é também fora de dúvida, que de maneira ímpar confundiu a lógica do devir, com aquela do que, deveras, devinha. A dialética é a lógica do entrar e sair de cena, porém, não necessariamente a do que nela entra ou sai; estas podem ser bem diferentes. O acontecer era obviamente dialético, mas quem passava à porta no alto de sua montaria, no caso, era a lógica clássica, a lógica do novo estado burocrático e não a dialética. Esta, enquanto lógica do sentido, era, em realidade, a que saía da cena aberta para reassumir-se, alhures, nos bastidores, lógica da História. Jamais, àquela altura dos acontecimentos, se poderia associar a dialética ao estado; este visivelmente estava a constituir-se, sim, como sistema, organização burocrática sob a égide da lógica clássica ou sistêmica. A dialética disponibiliza-se, doravante, para a tarefa contestatória, subversiva, vis-à-vis o poder sistêmico do estado moderno. Daí a conclusão de Marx: era imprescindível que se pusesse a dialética hegeliana de cabeça para baixo, repô-la como seria de direito, com os pés verdadeiramente no chão. (NEL-II - pp.14,15,16)



Resumiríamos dizendo que tanto em Hegel como em Sampaio a dialética que pensa a idéia é a mesma que pensa a história. Entretanto, para o último, isto jamais pode se dar de modo concomitante. A dialética pensa a idéia enquanto nos atemos ao plano ontológico objetivo; e aí, ela se constitui, sem dúvida, na lógica maior. Quando passamos ao plano ontológico mais abrangente da subjetividade, pessoal ou coletiva, é que a dialética irá pensar a História; entretanto, ela perde aí seu papel dominante, sendo então subsumida pela lógica maior do ser-subjetivo. É o que veremos mais detalhadamente a seguir.



2) Para Hegel a lógica maior, capaz de tudo pensar, do objetivo ao subjetivo, e além, o absoluto, é a dialética, lógica trinitária síntese das lógicas da identidade e da diferença. É mesmo em termos lógicos que o próprio Hegel se referenciava à história da filosofia alemã fazendo-se sucessor do subjetivismo de Fichte (fundado numa lógica transcendental ou da identidade) e do objetivismo de Schelling (fundado numa lógica objetiva ou diferencial). Em contraste, Sampaio, tão só para o trato das realidades subjetivas – pessoais ou sociais –, reclama já uma lógica maior, que ele denomina lógica do ser-subjetivo-em-sua-integralidade; trata-se de uma lógica qüinqüitária, síntese, não só das lógicas da identidade e da diferença, mas também da própria lógica dialética e da lógica clássica, esta, sutil e precisamente, caracterizada como uma lógica da dupla diferença. No texto acima referido Sampaio manifesta sua perplexidade ante a cegueira hegeliana em discriminar a lógica da diferença daquela da dupla diferença ou clássica. Atentando para o fato de que a lógica clássica é a lógica da matemática e da ciência, e que estas vêm se constituir em pilares da modernidade, como justificar tal confusão numa época em que a Revolução Industrial já se instalara definitivamente na Europa? De certo modo não é isto que estava no âmago da crítica kierkegaardiana: a reivindicação de autonomia para uma lógica da real condição humana, lógica do trágico, em suma, do pensar da diferença irreconciliável? Ouçamos o próprio Sampaio:



Em resumo, diríamos que o grande mérito de Hegel foi o de restabelecer o princípio fundamental que, a rigor, se constitui na própria razão de ser da filosofia, e há muito enunciado por Parmênides: ser e pensar (de algum modo, precisaríamos nós) são o mesmo. É uma exigência incontornável, para que floresça a filosofia, que o pensamento (lógica) se alce à altura exata da realidade, ou, que a tanto jamais renuncie, sejam quais forem as vicissitudes. Não o referendamos, entretanto, como dogma, mas apenas como decisão programáticat.

Em contrapartida, seu não pequeno equívoco foi identificar este pensamento à dialética, equívoco dificilmente perdoável, pois que a seu tempo a Revolução Científico-Industrial se tinha definitivamente instalado – pelo menos na Inglaterra – e eram também já evidentes os contornos do novo estado burocrático.



Com efeito,



O que é racional é real, e o que é real é racional, mas, naquela altura da História, não para uma razão trinitária dialética. Precisa-se para tanto de um pensamento maior, qüinqüitário, capaz de, pelo menos, pensar o sistema (e além, a técnica). Adverte-nos Heidegger de que isto não é hoje ainda factível. Para ele, o perigo maior que nos ronda não é propriamente o pensamento sistematizante (hoje informatizante), porém, a inexistência de um pensamento capaz de compreendê-lo, vale dizer, de, à distância, efetivamente pensá-lo. Se ativermo-nos apenas à dialética e às lógicas por esta subsumidas não vemos como se vá negá-lo. Isto nos põe diante de três opções: na primeira, deixamo-nos envolver acriticamente pela modernidade (opção cínica); na segunda, ficamos com Heidegger, o que acaba sendo retroceder – seria o fim da filosofia; por fim, tão simplesmente, avançamos. Se esta última for a decisão, nada mais urgente haveria do que buscar um novo pensamento, uma nova lógica, na linhagem das lógicas da identidade, que seja capaz de pelo menos subsumir a lógica clássica ou sistêmica, lógica esta que, aliás, via informatização, vem hoje generalizando seu domínio.

Para nós, esta nova lógica é (... a ...) do ser-subjetivo-em-sua-integralidade. Temos a convicção que assim seria restabelecido, de fato, o princípio fundamental da filosofia, fazendo desta, como almejava Hegel, uma lógica de conteúdos, ontologicamente comprometida, ou equivalentemente, uma verdadeira onto-logia. (NEL-II - pp.17,18)



3) Para Hegel a dialética é a lógica maior, insuperável, enfim, a lógica do Absoluto; contrariamente, para Sampaio, a lógica qüinqüitária do ser-subjetivo, ainda que superior à lógica trinitária dialética, é apenas a lógica maior da mundanalidade; ou mais precisamente, a lógica da mais complexa das realidades do mundo – o homem, indivíduo ou comunidade. Não há para ele a menor possibilidade de se confundir a lógica humana com uma suposta lógica do Absoluto. Isto significa de modo imediato e conseqüente que a filosofia de Sampaio não é nem pode converter-se num humanismo, nem se pode filiar, mesmo longinquamente ao Iluminismo. Em suma, se há sentido em falar numa lógica do Absoluto, ela não será definitivamente a lógica do ser-subjetivo (qüinqüitária), muito menos a dialética (trinitária), mas sim algo bem além.

A argumentação desenvolvida por Sampaio que leva a esta conclusão é um pouco longa e árdua, porém, a nosso juízo, de bastante consistência. Vejamos: as cinco lógicas subsumidas pela lógica do ser-subjetivo podem ser grupadas para definir planos onto-lógicos de complexidade crescente:



a) lógica da identidade ou transcendental definindo o que ele denomina plano onto-lógico fenomênico.



b) lógica trinitária dialética, subsumindo a lógica da identidade, da simples diferença e a própria dialética definindo o plano onto-lógico objetivo, plano este que inclui as formas aristotélicas, todo o mundo concreto (mundo da res extensa), e o mundo simbólico (da idéia no sentido platônico).



c) lógica qüinqüitária do ser-subjetivo subsumindo as lógicas da identidade, da simples diferença, dialética, clássica ou da dupla diferença e a própria lógica do ser-subjetivo definindo o plano onto-lógico subjetivo, tanto pessoal como social.



Sampaio mostra que a estrutura epistemológica para cada um destes planos é específica podendo, no entanto, ser simplesmente referida à lógica maior que define o plano. A regra para a determinação desta estrutura epistemológica é bastante simples e intuitiva: conhecer é anular-se e deixar-se determinar pelo outro; é neutralizar sua própria identidade para deixar vigir o outro. Por exemplo: no caso do plano ontológico objetivo (trinitário) a estrutura epistemológica correspondente resultará da própria estrutura lógica dialética neutralizando-se a identidade e introduzindo uma nova diferença, o que nos faz recair, assim, numa estrutura de dupla diferença; isto é, na lógica clássica. É por esta razão que, numa situação epistemológica objetiva, temos necessariamente quatro personagens correspondentes às quatro lógicas subsumidas pela lógica clássica: o sujeito, o inconsciente operatório, o objeto e o fundo ou contexto.

As coisas se passam de modo análogo quando vamos do plano epistemológico ao plano da ação, vale dizer, ao plano praxiológico. Só que aqui, o que há de novo é o reaparecimento do sujeito como liberdade ou determinação, o que, em termos lógicos, significará o retorno da lógica da identidade à estrutura correspondente: lógica da dupla diferença articulando-se a da identidade, resultando na lógica qüinqüitária do ser-subjetivo. Ainda neste exemplo do plano objetivo (trinitário) teríamos, então:



* estrutura ontológica objetiva - lógica dialética (estruturante do mundo objetivo)

* estrutura epistemológica objetiva, ou seja, estrutura lógica das ciências - lógica clássica ou da dupla diferença (estruturante do conhecimento objetivo)

* estrutura praxiológica objetiva ou seja, estrutura lógica da técnica - lógica qüinqüitária do ser-subjetivo (estruturante da ação objetiva)



Se agora tomarmos como referência o plano do ser-subjetivo caracterizado pela lógica qüinqüitária, as estruturas epistemológica e praxiológica seriam, respectivamente, a lógica da tripla diferença e a lógica síntese da lógica da identidade e daquela da tripla diferença, ambas obviamente, acima da capacidade humana. Vale dizer: o conhecimento e a ação inter-subjetivas não podem ser abarcadas pelo próprio homem. Como, entretanto, estas duas últimas lógicas – da tripla diferença e aquela síntese da identidade com a da tripla diferença – subsumem lógicas menores (da identidade, da diferença, dialética, etc.) o saber psicológico ou social, assim como a dominação psíquica e política são possíveis, porém, sempre parciais, precários, incompletos, falíveis, etc. Inserta na experiência intersubjetiva estaria, pois, a vivência de uma falta que é, por princípio, lógica e ontológica, e suficiente, pelo menos, para evidenciar ao homem que ele não é o ser-máximo, ou equivalentemente, que a lógica qüinqüitária não é a lógica do Absoluto. Para um resumo de tudo isto, reportamo-nos ao já mencionado texto de Sampaio no momento em que ele próprio procede a um balanço de sua consideração preliminar sobre o Absoluto:



Para finalizar este item, e com ele o capítulo, cremos conveniente proceder a um balanço do que foi conseguido até aqui, e que não nos parece de todo desprezível. Senão, vejamos:



a) O Absoluto o é onto-logicamente e haverá de situar-se no prolongamento dos planos onto-lógicos mundanos.



b) Necessariamente restritos à imanência, a vivência do transcendente só se nos pode vir como vivência de uma falta (estrutural). Além da falta originária de nível lógico fenomênico (fundamento do desejo) que sabemos indeterminada, teremos que admitir uma segunda falta a nível subjetivo, especificamente, nas suas estruturas associadas – epistemo-lógica e praxio-lógica. Ao contrário da primeira, esta é uma falta determinada, ela é um "furo guia" que nos abre, concretamente, a perspectiva e o desejo do Absoluto.



c) Certamente o Absoluto "situar-se-ia" a nível onto-lógico além daquele da praxis humana, deixando, pois, um intervalo onto-lógico entre Ele e os homens onde podem vir habitar anjos e demônios. (OTL, s/n)



4) A quarta diferença capital – uma consequência quase que imediata da anterior – é que em Hegel, sendo a História e o Absoluto regidos pela mesma lógica (a dialética), não há como marcar fundamentalmente a fronteira entre o mundo divino e o mundo humano; daí, as tão amiudadas acusações de panteismo que lhe são imputadas. Em Sampaio, a diferença entre aqueles mundos fica marcada pelos respectivos níveis lógicos e, por consequência, de suas premissas, igualmente ontológicos. O mundo humano, inclusive o mundo natural, é aquele que é propriamente "visado" pela lógica qüinqüitária do ser-subjetivo, ao passo que o mundo divino está, por intuição ou inferência, além desta "visada". O Absoluto, o que quer que ele seja, é impensável em seu ser próprio pela lógica qüinqüitária do homem, e muito menos o poderia ser pela dialética trinitária hegeliana, na visão de Luiz Sérgio Sampaio.



A singeleza da proposição é mais ou menos óbvia, mas suas consequências são consideráveis e o próprio Sampaio tratou de explorá-las amplamente em Noções de Onto-teo-logia. Neste texto ao mesmo tempo denso e volumoso, destacaríamos algumas conclusões importantes. A primeira, é o desvelamento do eixo e da direção em que pode ser posta a questão do Absoluto (ou de Deus): o eixo dos níveis onto-lógicos sucessivos – transcendental ou da identidade, dialético ou trinitário, do ser-subjetivo ou qüinqüitário, etc.; este desvelamento além de seu aspecto afirmativo tem seu evidente aspecto profilático na medida em que é uma radical denúncia das idolatrias, tanto das "baixas", como das "solenes e paramentadas". A segunda é uma renovada concepção da teologia natural ou teodiceia – a rigor, um prolongamento de sua própria ontologia – que, afora seu valor universalista, apresentaria um especial interesse para nós brasileiros. Voltaremos a este assunto, já com maiores detalhes, na parte II este relatório, quando estivermos tratando especificamente das relações entre lógica e teologia no pensamento sampaiano.





5) Por fim, notaríamos que em Hegel o valor, e consequentemente o interesse, concentra-se quase que exclusivamente no resultado da síntese dialética ascencional. Os valores e interesses de Sampaio são bem mais amplos e matizados. Mesmo postado de um ponto de vista mais alto – de uma lógica hiper-dialética qüinqüitária e não apenas dialético trinitária – interessa-lhe também o retardatário, o que estagnou a beira da estrada, os escolhos da construção, o recalcado (mas, que um dia retorna), os andaimes que foram, mas já não o são; em suma interessa-lhe tudo que conjunturalmente ainda vige, ainda que à margem, como razão superada ou mesmo desrazão. De modo sintético: o subsumido, em certas circunstâncias, sem deixar de sê-lo pode ressurgir como momento de uma nova síntese. Na introdução de um pequeno texto versando sobre a história da física moderna Sampaio apresenta-nos o que vem a ser sua concepção lógico-qüinqüitária da história em contraposição às concepções unária (judaica) e trinitária (hegeliano/marxista):



A história unária, história de uma destinação, é aquela em que se reconhece como relevantes apenas um início e um fim prometido; fora disso nada aconteceria não fossem as reiteradas infidelidades (e conseqüentes punições) a um princípio absoluto consubstanciado na Aliança com o Deus único ou na obediência a sua Lei. O seu paradigma seria a concepção judaica da história implícita no Velho Testamento.

Diferentemente, na história trinitária ou dialética contam apenas as peripécias cuja vivência plena exige o total engajamento; início e fim, a rigor, pouco significam. Estes últimos podem comparecer nestas concepções tão só como acontecimentos míticos: fundador e escatológico. Aqui o "motor" da história é imanente – diferença, conflito e escândalo – ao contrário da história unária onde o "motor" é ao mesmo tempo tudo, único e transcendente. A história trinitária aparece ora numa versão espiritualista e teista (cristã), ora numa versão materialista e atéia (marxista); também numa versão conciliatória ou "panteista" (hegeliana).

A terceira concepção de história – com a qual, diga-se de passagem, nos identificamos – é aquela ainda não suficientemente tematizada e que denominamos qüinqüitária, podendo ser compreendida como uma síntese dialética das duas anteriores; daí porque a denominamos, também, hiperdialética. Nela, há destinação, mas esta só se cumpre através de lutas e peripécias e não só pela fidelidade. Exige, pois, ambos: fé e engajamento. (PHF-p.2)



Cingindo-nos apenas à História, pode se ver quão mais complexa é a hiper-dialética qüinqüitária de Sampaio do que a simples dialética trinitária hegeliana.

Estes cinco pontos capitais por si, mas também pelos infindáveis desdobramentos potenciais que podemos facilmente vislumbrar são suficientes, a nosso ver, para revelar-nos o cerne da filosofia deste nosso pensador, assim como identificar sua autêntica linhagem. O próprio Sampaio vem dedicando já de algum tempo todo o seu esforço em explorar as supra mencionadas potencialidades de sua onto-logia fundamental, não só as de natureza especulativa como também crítica. Disto tudo ele já nos deu uma boa gama de exemplos – etnologia, economia, teologia, física, psicanálise – que iremos explorar na parte II, a seguir.



II - A LÓGICA E OS MÚLTIPLOS SABERES SEGUNDO SAMPAIO



O enfoque desta segunda parte será eminentemente horizontal ou extensivo, importando-nos agora proporcionar uma visão panorâmica da filosofia de Sampaio. Começaremos, como seria natural, pela lógica, que é seu tema maior, para depois abordarmos a relação desta com diferentes saberes na ordem mesma em que o nosso filósofo o vem progressivamente fazendo: primeiro, lógica e cultura, a que seguir-se-ão lógica e economia, lógica e teologia, lógica e psicanálise, e por último, lógica e física.



1) LÓGICA



De uma forma sistemática, a lógica é tratada por Sampaio em diferentes textos: o primeiro e mais importante é Noções elementares de lógica em dois volumes (NEL); depois, em obra homônima, levando o sub-título Compacto (NEL-C) e que difere da anterior em alguns pontos significativos, particularmente, pela introdução de uma justificação da necessidade do ensino de filosofia no 2º grau; por derradeiro, num longo artigo preparado para a revista Cahier de lectures freudiennes denominado Lacan et les logiques. (LL). Embora nos três textos o assunto e o tratamento sejam os mesmos, há momentos de maior concisão e clareza aqui e acolá, razão pela qual a eles nos referimos conforme a nossa própria necessidade expositiva, portanto, sem qualquer preocupação com a sua seqüência cronológica de elaboração.

Noções elementares de lógica – vol. I, começa com um capítulo em que Sampaio busca contrapor, de um lado, a crise da lógica, de outro, a lógica da crise (supostamente a crise da cultura moderna) para concluir que, em última instância, são elas face e contraface de uma mesma moeda – a crise lógica da cultura. Sampaio começa alertando-nos sobre o papel que joga a lógica na formação espiritual do Ocidente:



Se atentarmos para que, de algum modo, a lógica funda o Ocidente, e que grandes filósofos de nossa época identificam na parcialidade lógica do Ocidente a própria origem de suas persistentes mazelas (como é o caso, por exemplo, de Heidegger e K. Axelos), e mais, que os grandes pensadores tiveram que ser também grandes inovadores no campo da lógica (Aristóteles, Platão, Kant/Fichte, Hegel, Husserl, Freud/Lacan), não há como fugir à conclusão de que a inquietante vivência, antes mencionada, deve ser examinada com profundidade e igual seriedade. Onde estarão as raízes desta situação paradoxal, e, para quem a vive realmente, desconfortável? (NEL-I.p.12).



A inquietante vivência à que acima se refere o autor é a da marginalidade social da lógica hoje relegada aos especialistas de um restrito gueto acadêmico.

A seguir identifica como uma das principais razões da atual crise da lógica, a perda do seu "objeto" próprio:



Parece-nos que o primeiro grande problema situa-se na própria perda do lógico como objeto da lógica. Que é o lógico e sua extensão, se é que ele de fato existe? Na alternativa de não existência, a lógica seria apenas um ramo elementar das matemáticas, isto é, das linguagens (ou estruturas) formais. Nesta circunstância, só secundariamente constituir-se-ia em assunto de se buscar, perscrutar, compreender, sendo sim, e apenas, algo de se inventar e jogar, meros jogos de linguagem, nos diria Wittgenstein. (NEL-I.p.12).



Prosseguindo, vê no afastamento em que estaria incorrendo a lógica com respeito ao seu relacionamento com as denominadas "ciências humanas", uma segunda razão para a crise:



Um outro problema, que de certa forma é uma conseqüência do acima considerado, é o afastamento da lógica daquilo que poderíamos denominar genericamente de ciências humanas, especialmente da política e da psicologia, sem falarmos da teologia. Quando a aproximação ocorre, é em termos inquisitoriais, a lógica indagando apenas sobre a validade lógico-formal do discurso dos referidos saberes, jamais atuando cooperativamente. (NEL-I.p.13)



E dado o seu enfático comprometimento com a tese de que ser e pensar (lógica), de algum modo, são o mesmo, está obrigado, como o fez, a concluir que:



Outra conseqüência, é o esquecimento da questão da lógica, que afirmamos nós, é a contra face da questão do ser que, segundo Heidegger, pode fornecer-nos um fio diretor seguro para a compreensão da trajetória do pensamento ocidental. (NEL-I.p.14)



Ao abordar a lógica da crise (da cultura ocidental, explicitaríamos nós) – apela ao testemunho de dois filósofos, que a seu juízo, melhor explicitam a natureza lógica profunda da crise da modernidade: são eles Heidegger e K. Axelos. A partir daí pode concluir que:



Sempre que admitirmos uma real crise de cultura e formos em busca de sua essência mais profunda – tal como exemplificamos anteriormente com Heidegger e K. Axelos – não haveremos de encontrar outra coisa senão a crise do próprio pensar: insuficiências/deformações lógicas. Esta é a grande lição, e até aqui, cremos não tenhamos muito a discordar. Entretanto, é necessário dar um passo além e sacar a incontornável conclusão: se tais insuficiências/deformações lógicas vigem no cerne mesmo da cultura, torna-se impossível que ela possa, deveras, pensar a si e a cultura globalmente. Em síntese, a crise da cultura é a crise (lógica) da cultura, nem mais, nem menos. (NEL-I.p.23)



A conceituação do que seja a lógica é feita a partir do leque de opções oferecidas por K. Popper em Conjeturas e Refutações. Sampaio recusa a opção do autor de referência que considera que a lógica tenha por escopo o trato "das leis descritivas do funcionamento de certas linguagens a nível sintático e semântico". A esta última concepção contrapõe suas cinco teses fundamentais sobre a lógica:



a) A lógica é um saber de ou saber sobre, vale dizer, o discurso da lógica possui um referente; ela deve, pois, ser considerada como um saber autêntico e não mero jogo de convencionalidades; a lógica visa o pensamento.



b) Embora possuindo referente, a lógica não se constitui num saber empírico, pela simples razão de que o pensamento participa na instituição de seu próprio referente, tese geral, que vale, inclusive, para o mundo da experiência empírica. A lógica é, sem dúvida, um saber transcendental; entretanto, nem toda lógica é lógica transcendental, mas ainda assim, a pressupõe necessariamente.



c) Existindo pelo menos um pensar transcendental (lógica da consciência), e não sendo todo pensar necessariamente consciente, existirá pelo menos uma lógica especificamente inconsciente (ou do inconsciente).



d) Há múltiplas lógicas instituidoras, por conseqüência, também uma multiplicidade de realidades instituídas. Nestas circunstâncias, lógica e ontologia, quase que só por suas respectivas visadas estratégicas poderiam se diferençar.



e) Impera sobre as lógicas uma hierarquia, conquanto parcial. Tal hierarquia é a contrapartida do próprio processo de geração por "síntese dialética" das lógicas a partir de lógicas ditas fundamentais. Isto, obviamente, não impede que no pensar efetivo ocorra a cooperação ou a confrontação de lógicas. Um pensar subsumido por outro pensar pode, por exemplo, manifestar-se também por si ou autonomamente, em concordância ou em confronto ao pensar que o subsume. E isto é deveras importante, na medida em que faz do "jogo das lógicas" – tanto no tempo como no espaço – algo bem mais complicado do que se poderia a princípio imaginar. Também nos adverte quanto ao perigo das simplificações precipitadas ou abusivas. (NEL-C.p.7)



Podemos discernir na parte central das reflexões de Sampaio sobre a lógica uma estratégia muito bem definida. Primeiro, procede a um inventário das lógicas tal como elas aparecem mais ou menos explicitamente no curso da filosofia ocidental. O resultado deste inventário pode ser assim sumariado:



O novo só se entrega, concomitantemente, a um novo modo de pensar, a uma nova lógica. É justamente isto que nos mostra a história da filosofia. Em Platão, a idéia ou conceito se entrega à dialética; em Aristóteles é o ser-sistêmico (objeto científico estrito senso) que suscita a lógica clássica (do terço excluso); Descartes, Kant/Fichte e depois Husserl desvelam a lógica transcendental como modo próprio de pensar o sujeito da ciência moderna; a dialética hegeliana e a história são inseparáveis; em Kierkegaard opera uma lógica da diferença irreconciliável visando o sujeito trágico; Heidegger explicita um pouco mais esta última lógica para poder pensar o Dasein em sua finitude. Em suma, ou se desvela uma lógica ou não se consegue pensar grande coisa. (LL.p.2)



Isto posto, Luiz Sergio define como lógicas fundamentais aquelas que não podem ser derivadas de outras por uma composição dialética generalizada. Estas se reduzem apenas à lógica transcendental ou da identidade (I) – aquela mesma desvelada por Kant/Fichte e Husserl –, e à lógica da diferença (D) englobando uma grande diversidade de manifestações – lógica paradoxal de Kierkegaard, lógica lacaniana do significante, lógica intuicionista de Brower, lógica paraconsistente de N. de Costa, e muitas outras. Todas as demais lógicas são derivadas destas por intermédio da referida síntese dialética generalizada representada por "/". Assim, teríamos as combinações I/D (a própria dialética platônica e depois hegeliana), D/D=D/2 (identificada com a lógica clássica), e assim sucessivamente.

O segundo passo da estratégia sampaiana é explicitar o princípio fundamental de cada uma destas lógicas – tanto das fundamentais como das dialeticamente derivadas – e depois dar-lhes uma apresentação homogênea para chegar, finalmente, a uma tradução formal ou operatória dos mesmos.

Num projeto de tese datando de abril do ano em curso intitulado Lógica e Realidade, Sampaio explicita os passos seguintes de sua estratégia:



Este último resultado, ainda que pareça estranho, possibilita-nos a aplicação, agora no terreno da lógica, dos procedimentos formais já consagrados pela mecânica quântica. A rigor, isto não deveria soar assim tão surpreendentemente, na medida em que atinássemos para o fato de que a problemática central desta teoria foi aquela da integração do observador à fenomenalidade física; em outras palavras, a de deixar de lado o observador metafísico puramente especular e substituí-lo por um observador também compativelmente físico e, por conseqüência, perturbador. Que a lógica ganhe com isso, é evidente, mas a mecânica quântica não menos, pois, em retorno, poder-se-á doravante melhor compreender a razão profunda de seu espetacular êxito regional.

O referido formalismo quântico, em essência, põe em estreita correspondência operadores e números (ditos valores próprios dos operadores) – a ação desveladora e o desvelado. Em suma, oferece-nos a mais iluminadora e precisa metáfora de pensar e ser. "... o mesmo é ser e pensar" eis o princípio inarredável de todo filosofar radical que, se por princípio, não se pode provar, pode-se, destarte, agora bem manejar. As conseqüências disto são muitas e multifárias: cai o quê de mistério que porventura ainda subsistiria na diferença ontológica; reordena-se o território ôntico em função de um pré-ordenamento rigoroso do território lógico; restitui-se ao homem o lugar pinacular da mundanalidade que lhe havia sido repetidamente tomado pelas lunetas e telescópios, pelo darwinismo e mais recentemente pelas estruturas por si agentes e falantes; e, de quebra, descortina-se com clareza o eixo e a direção em que se pode, com alguma segurança, especular sobre os espaços trans-subjetivos em cujos confins pode habitar o Absoluto. (PLR-p.6)



Mapeado o território das lógicas – concomitantemente explicitados, homogeneamente expressos e operatoriamente traduzidos os princípios de cada uma delas – pode Sampaio estendê-lo, trazendo à luz a lógica qüinqüitária do ser humano (lógica síntese das lógicas da identidade, da diferença, dialética e clássica). Além, estariam as lógicas trans-subjetivas, concebíveis, mas não diretamente operáveis pelo ser humano, nos confins das quais se pode adivinhar, solitário, o Absoluto. Dada a hipótese de estreita correspondência entre ser e pensar, pode-se a partir das lógicas proceder ao reordenamento das realidades mundanas e das suas ciências correspondentes. Nesta altura, Sampaio introduz a noção de níveis onto-lógicos que são por ele assim nomeados e caracterizados:



As lógicas formam conjuntos estruturais progressivamente complexos a que daremos a denominação de níveis. Como às lógicas correspondem realidades, poderíamos usar estas estruturas lógicas (ou níveis) para estabelecer também uma estratificação da realidade. Deste modo, identificaríamos no seio da realidade mundana três níveis – o fenomênico, o objetivo e o subjetivo – correlatos, respectivamente, aos níveis lógicos I, I/D e I/D/2.

Ao nível lógico fenomênico definido apenas pela lógica transcendental I, lógica esta que subsume apenas a si mesma, irá corresponder, portanto, apenas uma realidade, que denominamos ser-fenomênico. Segue-se o nível lógico objetivo definido pela lógica dialética I/D; como I/D subsume I, D e a própria I/D, a realidade objetiva apresentará, necessariamente, três aspectos distintos: o ser-formal, correlato à I; o ser-concreto ou res extensa, correlato à D; por fim, o ser-simbólico, conceito ou idéia, correlato da dialética I/D. (NEL-C-p.36)



A existência de níveis suscita que se considere, em detalhes, a problemática da passagem de um nível a outro. Estas considerações são extremamente críticas tão logo nosso filósofo constata que nestas passagens, particularmente na passagem do nível trinitário ao qüinqüitário, ocorre um complexo remanejamento onto-lógico, vale dizer, que tal processo não se dá pela simples agregação de novas lógicas e, concomitantemente, de novas realidades. Em suas próprias palavras:



... a correspondência entre pensamento e realidade, ou o que é equivalente, entre lógica e realidade visada, não é estritamente preservada no processo de passagem; ou ainda com maior precisão: a passagem requer um não muito evidente remanejamento das correlações antes conquistadas. A hiper-dialética qüinqüitária, que ao mesmo tempo é destinação humana e governa as passagens até a si própria é, pois, bem mais complexa que a dialética hegeliana. Ela não é constantemente construtiva requerendo, ao invés, recuos ou desconstruções parciais para poder, só depois, decisivamente avançar. Isto posto e devidamente esclarecido em sua generalidade nos permitirá deslindar as correspondentes questões "regionais": em antropologia, a passagem da natureza à cultura; em economia, a passagem do feudalismo à modernidade; em psicanálise, a passagem da fase fálica à fase da definitiva estruturação das escolhas sexuais; em física, a passagem dos leptons aos barions, e assim por diante. Quanto se poderá ganhar com o desvelamento destas inesperadas e recônditas analogias?! (PRL-pp.6,7)



Sampaio dá um novo salto avante quando se propõe a questão do reordenamento do próprio espaço filosófico. Sua proposta é fazer com que este espaço venha se confundir com o gênero lógico que passa então a comportar três espécies fundamentais; a "onto-lógica" (que tinha sido até aqui o centro de suas considerações), a "epistemo-lógica" e a "praxio-lógica". A estrutura de cada um dos planos "epistemo-lógicos" (fenomênico, objetivo e subjetivo) devendo manter uma estrita correspondência com a estrutura do plano "onto-lógico" homólogo. Senão vejamos:



Existe uma evidente correspondência entre algo e o saber de algo, mas é igualmente evidente que entre ambos vige uma diferença, que no caso, deve ser tomada mesmo ao pé da letra – sim, uma diferença.

Todo conhecimento é, fundamentalmente, uma abertura para o outro que si próprio; é deixar vir a si o que se não é. Este apagamento do sujeito agente em face do outro-que-é vai instituir uma verdadeira relação de co-pertinência entre sujeito e objeto, em suma, vai configurar o saber (da verdade) como alétheia; deve-se a Heidegger nos ter tão bem instruído sobre a questão. (NEL-C-pp.38,39)



Em termos lógicos isto quer dizer que a estrutura epistemológica correspondente a um determinado nível onto-lógico (por exemplo, o nível objetivo caracterizado pela dialética – I/D) pode ser gerado pela simples supressão da identidade (I) que seria substituida por uma diferença suplementar (no caso, suprimindo-se I em I/D e acrescentando-se um novo D no que resultaria, D/D = D/2. Neste exemplo – o do saber objetivo – estão pois implicadas, necessariamente, quatro posições: o sujeito (em I), as operações inconscientes que determinam o objeto como seu invariante (em D), o objeto propriamente dito (em I/D) e, finalmente, o fundo ou referencial (em D/2).

As estruturas praxiológicas são derivadas das estruturas epistemológicas apenas agregando-se a esta última a lógica da identidade (I) representativa do retorno do sujeito, agora como sujeito determinante ou sujeito-projeto. Ainda no exemplo anterior a estrutura praxiológica objetiva seria obtida agregando-se a lógica da identidade (I) à estrutura epistemológica correspondente (D/2, lógica clássica, que como todos sabem, é a lógica do saber objetivo ou científico). Obter-se-ia, então, como estrutura praxiológica objetiva a lógica (I)/(D/2), isto é, I/D/2, que reconheceríamos como sendo a lógica da técnica. Observando-se que a lógica da técnica confunde-se com a lógica do ser humano em sua plenitude, é fácil compreender a intuição marxista com respeito ao crucial papel humanizador da técnica.

A tradicional questão da verdade, em Sampaio, assume um particular semblante: o da relação ser versus verdade. Ele parte da distinção que faz Heidegger entre alétheia e adaequatio; mostra, a seguir que esta está implícita e ampliada na proposta lacaniana que reconhece quatro tipos de verdade: a verdade total, a verdade parcial, a verdade total e parcial e, por fim, nem uma nem outra; a primeira destas, a verdade total, sendo identificada à alétheia e a última à adaequatio heideggerianas. A correspondência da quádrupla distinção de Lacan com as quatro lógicas de base – da identidade (I), da diferença (D), dialética (I/D) e clássica (D/2, ou seja, da dupla diferença) é quase que óbvia, podendo-se daí depreender que cada lógica tenha sua verdade própria. Nosso filósofo propõe então para cada uma destas quatro verdades, respectivamente, as designações de alethéia, gozo, vitória e adaequatio acrescentando ainda a verdade designada amor como própria da lógica qüinqüitária do ser humano (I/D/2).

O segundo volume de Noções elementares de lógica, não é tão sistemático quanto o primeiro. Nele destacaríamos o capítulo 2 – As lógicas da diferença – que poderia ser considerado um anexo necessário ao primeiro volume, na medida em que das quatro lógicas de base apenas a lógica da diferença não tinha ainda sido convenientemente circunscrita e precisamente caracterizada pela tradição. Os demais capítulos tratam de temas de níveis bastante desiguais, a saber: Lógica e os múltiplos saberes, Lógica lacaniana, Pequeno ensaio sobre as modalidades aléticas; Silogismo de zero a N termos e Formalização das lógicas.

Um balanço final de Noções elementares de lógica em seus dois volumes, convencem-nos de que Sampaio aí conseguiu consolidar os alicerces de seu ambicioso projeto de criar novas perspectivas que possibilitassem a retomada do filum Parmênides-Platão-Hegel elevando-o, agora, ao nível qüinqüitário.



2) LÓGICA E CULTURA



Não fosse por outro motivo, teria sido por força de sua própria atividade profissional – funcionário e por vezes dirigente de uma grande empresa do ramo das telecomunicações e tele-informática – que Luiz Sergio Sampaio confrontar-se-ia com a problemática cultural brasileira. Ninguém tem dúvidas, hoje, dos profundos abalos que irá sofrer a vida social em todos os seus aspectos e quadrantes por conseqüência do acelerado avanço tecnológico no campo das telecomunicações e informática. E é, justamente aí que nosso filósofo vem diversificadamente atuando. A sua primeira obra sobre o tema em questão é a versão escrita e ampliada da palestra por ele realizada no painel Informática e Cultura acontecido no XVII Congresso Nacional de Informática, ainda nos idos de 1984. A temática lógica versus cultura já estava então no centro de suas reflexões. A palestra se iniciava com esta observação:



É voz corrente que o desenvolvimento da informática e seus desdobramentos – teleinformática e robótica – pervadirá todos os aspectos da sociedade atual, o que, em breve tempo, levar-nos-á a uma nova sociedade; em suma, a uma nova cultura. Perguntamo-nos todos, em algum ponto entre a simples curiosidade e a mais funda ansiedade: em essência, como será esta nova cultura? Como serão afetados nossos modos de comunicação? Nossas linguagens? Nosso élan criativo? Nossa convivência com o sagrado? E tantas outras questões semelhantes. (INC-p.5)



E logo aduzia algumas outras questões que deveriam, desde então, estar nas preocupações dos brasileiros:



Daí, para nós, derivam outras graves questões: que prêmios ao vencedor, que castigos e penas aos retardatários e desistentes – podemos já vislumbrar – lhes estarão reservados? Em especial, como estamos nós brasileiros preparados para esta aventura tecnológica e cultural? - (INC-p.5)



Parte para tentar respondê-las começando por precisar o sentido que a revolução tele-informacional tem para a história sócio-cultural da humanidade. E o faz estribado em duas hipóteses básicas: a primeira é a de que, em sua essência, toda cultura está marcada pela assunção de uma particular lógica (lógica, no sentido largo que Sampaio lhe atribui, conforme visto no item 1 precedente); a segunda é a de que o melhor "lugar" para se surpreender esta opção lógica encontrar-se-ia na religião, por ele considerada o núcleo invariante e sacralizado da cultura (embora, é óbvio, metaforicamente dissimulada).

De acordo com seu relato, o processo de desenvolvimento sócio-cultural teria início com as culturas pré-lógicas ou ecológicas – culturas tribais e agrícolas primitivas – passando às culturas propriamente lógicas, a primeira das quais seria a cultura judaica, comprometida com a lógica transcendental ou de identidade (I). Vejamos:



Às primeiras culturas podemos nominá-las pré-lógicas ou ecológicas, querendo assim dizer que a totalidade, aí, foi concebida como Natureza ou meio natural que, de modo imediato e brutal, determinava suas condições de sobrevivência. De modo quase imediato, os deuses, como realidades supremas, foram identificados com os próprios entes e forças da natureza ou com aqueles que pressupostamente as governavam. Eram múltiplos os entes e forças, bem como múltiplos os deuses.

O monoteísmo judaico vem romper com esta primeira tradição. Podemos tomar como momento exemplar desta decisão, aquele em que Moisés pede a Deus que se identifique, e a resposta vem clara e precisa: Eu sou o que sou. Não se trata mais de um deus-natureza – um deus-concreto – mas sim de um deus-lógico; um Deus que se auto-afirmava o Mesmo, e isto bastava; por tal, teria que ser único: só o Mesmo pode dizer-se Eu sou o que sou. Deus precede à Natureza; Ele é, ademais, sua origem e fundamento último. (INC-p.12)



Seria ocioso advertir que a distinção pré-lógico/lógica é já encontrada em Lévi-Bruhl, porém, lá como cá, não significa que ações e representações simbólicas nas culturas ditas pré-lógicas sejam a-lógicas, mas tão somente que nestas não existe ainda uma representação coletiva – particularmente religiosa – que deixasse evidente que ela é "consciente" de sua inalienável logicidade.

Continuando, à judaica (I) seguir-se-ia a cultura greco-romana, ao mesmo tempo prometeica e trágica, politeista, marcada pela lógica da diferença (D); do encontro desta última com a cultura judaica iria emergir a cultura cristã patrística, de inspiração platônica, cuja essência lógica seria precisamente o trinitarismo dialético (I/D), justamente uma síntese das lógicas da identidade (I) e da diferença (D). Chegaríamos, por fim, à modernidade comprometida com a lógica clássica (D/2), conseqüentemente, com a ciência e a organização burocrática da vida social. Para Sampaio – frisemos bem, aquele de dez anos atrás – estaríamos hoje no limiar de uma nova cultura por ele dita qüinqüitária essencialmente marcada pela lógica homônima (I/D/2). Eis o que nos anuncia:



Que estejamos em época de transição, quem duvidaria? Tantas as efervescências, tantos os sintomas a acumularem-se. Mas, do ponto de vista lógico, que acaba e que começa? Em suma, quais as nossas perspectivas culturais para o amanhã?

Nada está sendo destruído; em rigor, recupera-se. Desaliena-se a dialética, descobre-se o território da História; desbloqueia-se a lógica da diferença, vem à luz o inconsciente como face irredutível do ser. A nova cultura será, por certo, uma cultura da pessoa, comprometida com a unidade, porém, não mais unitária, não mais trinitária, e sim, com a recuperação das duas lógicas então pré e pós-negadas, uma cultura lógico-qüinqüitária. (INC-p.21)



O próprio Sampaio, tem razão ao perguntar-se se nisto não se revelaria uma filosofia da História. Responde afirmativamente:



Em resumo, o que o panorama da história da cultura nos revela, quando ordenado pelo fio diretor de sua infra-estrutura lógica, é um primeiro momento de ruptura, passagem da cultura ecológica à cultura propriamente lógica e, daí por diante, uma seqüência de modos governados alternativamente pela lógica da unidade e pela lógica da diferença. Particularmente, mostra-nos vivenciando na atualidade o processo de transição, que estamos já no limiar de uma nova cultura da unidade – não da unidade pura-originária judaica, não ainda da unidade trinitária cristã medieval, mas sim de uma cultura qüinqüitária – unidade das unidades una e trina e da simples e dupla diferenças. (INC-p.22)



Não se nega a reconhecer o parentesco de sua concepção da História com aquela do historiador inglês, Toynbee. Eis o que diz:



Com esta última identificação [da lógica e da religião], vem-nos à mente novamente o pensamento de um grande historiador deste século, Arnold Toynbee, que, após extenso trabalho historiográfico, buscou desvendar-nos um sentido para a História; em termos mais técnicos, procurou revelar-nos uma filosofia da História, empresa esta de não grande prestígio na atualidade; contudo, ousou.

Para Toynbee, a História é justamente um processo onde alternam-se fases religiosas ou espirituais e fases profanas ou materialistas, com o processo se apresentando progressivo e não circular, na medida em que as fases religiosas se dão em seqüência intensamente mais espiritualizadas ou abstratas e extensamente mais universalizadas. Não vemos aí grande diferença daquilo que antes afirmamos; apenas esforçamo-nos em precisar a natureza da pressuposta espiritualização progressiva da cultura de que nos fala Toynbee; e vimos que ela, no fundo, é de ordem lógica. (INC-pp.22,23)



A partir deste amplo quadro de referência pode então Sampaio responder a questão central que, de início, se pusera: como o processo de informatização viria afetar o complexo cultural em seu sentido mais geral? Começa situando os computadores e sua lógica imanente:



... o computador, em termos mais técnicos, a informática e seus desdobramentos – teleinformática e a robótica – situam-se no extremo presente da evolução do pensamento diferencial; vale dizer, do pensar governado pela lógica da diferença em sua última etapa: lógica formal ou sistêmica, onde foi suprimido qualquer traço de transcendentalidade e impera o castrador princípio do terço excluso. Se concordarmos que o computador, sob o aspecto lógico, é a máquina capaz de processamento lógico formal que vem assim ampliar, de modo drástico, nosso correspondente modo natural de pensar, fica evidente que o desenvolvimento da informática, em seus efeitos mais imediatos, virá no sentido de enfatizar aqueles aspectos da cultura fundamentalmente tratáveis pela lógica da diferença da diferença ou lógica clássica. (INC-p.41)



As conseqüências disto para nossa compreensão do mundo material são drásticas. A lógica da modernidade vem transformar o mundo dos objetos concretos – diríamos, ao alcance das mãos – em mundo físico abstrato e sistematizado. E acrescenta:



O mesmo se dá com o mundo econômico: de estrutura social comprometida com a sobrevivência material da sociedade, vale dizer, conjunto de atividades-meios, passa a conjunto de atividades por si finalizadas, isto é, governadas pela lógica do terço excluso. Afastando-se mais e mais de suas finalidades sociais globais acabou por perdê-las por completo; o econômico, já não tendo um fim próximo, logo auto-justifica-se: torna-se sistema econômico. (INC-pp.41,42)



Sampaio advertia-nos, já então, para os efeitos, de um lado, da confluência das telecomunicações com a informática, de outro, da robótica sobre a vida social. Daí as questões seguintes por ele suscitadas:



Além disto tudo, ocorrem, como fora já mencionado, dois desdobramentos de maior significação: de um lado, a tele-informática, pela confluência da telecomunicação – agora também em processo de digitalização – e da informática; de outro, a robótica, em que os processadores são acoplados a sensores/efetuadores e recebem do homem a delegação do trabalho produtivo.

Novas descobertas técnico-científicas, mais ganhos de produtividade, aparecimento e desaparecimento de produtos e empresas, supressão e criação de novos empregos, etc., tudo em escala sem precedentes e ritmo acelerado é o que podemos com certeza esperar. Mas não é só, a informatização forçará a sistematização global: de atividades, de instituições e até dos saberes proliferando.



Nisto há muito de assustador; entretanto, será por certo alhures que a parada será decidida, isto é, na possibilidade de fazer surgir algo de a-sistêmico que venha contra-pesar tão violento processo de informatização. Será isto possível? Estamos perto ou longe de consegui-lo? (INC-p.43)



Na seqüência, Sampaio ajusta o foco sobre o processo de formação do Ocidente Moderno, e a seguir, sobre os primeiros sintomas de sua ultrapassagem. Dentre estes últimos identifica como os mais relevantes, a insurgência da História (Hegel/Marx) e do inconsciente (Nietzsche, Freud, os estruturalistas e agora os "desconstrutivistas"). Podia então anunciar-nos o advento de uma nova era, de uma nova cultura, cuja referência central viria ser a pessoa em sua plenitude subjetiva, precisando o modo pelo qual desenvolver-se-ia este intrincado processo:



a)Preliminarmente pela exacerbação dos aspectos sistêmicos do mundo, em especial dos aspectos materiais e econômicos – produto exatamente do sub-processo de informatização geral da sociedade.



b) Num segundo momento, reativamente, talvez em alguns poucos lugares, haverá o reforço do ser-consciente, da liberdade individual e de grupos. Até aí, estaremos apenas re-produzindo, em grau superlativo, o processo já visto de formação do Ocidente Moderno. Isto, contudo, será insuficiente, como já poderíamos prever pelo que nos advertem os pensadores da História, do Inconsciente e até os teóricos da matemática com seus teoremas de limitação (limitação das possibilidades lógico-formais ou sistêmicas).



c) Será inelutável a chegada de um terceiro momento, momento autenticamente pós-moderno, caracterizado, de um lado, pela abertura ao ser-inconsciente, donde brotam a criatividade e a força expressiva dos indivíduos e das massas; de outro lado, compensatoriamente, haverá o reforço da dimensão histórica do ser, que só pode manifestar-se em plenitude pela instauração do verdadeiro diálogo de pessoas e grupos, tanto face a face quanto mediado pela crescente parafernália das telecomunicações e da teleinformática. Da síntese destas quatro lógicas operantes, emergirá a pessoa – correlativamente um novo ser-social – como antes afirmado, referência central da nova cultura. (INC-p.55)



Os dois capítulos finais de Informática e cultura tem por objeto o processo social brasileiro visto não como uma dialética de classes, mas como uma dialética de culturas. Isto significa que no horizonte de nossa destinação não estaria a mera admissão ao primeiro mundo – no dizer de Sampaio, ao luxo – e sim, a edificação de uma nova cultura – também no seu dizer, à originalidade. O cumprimento desta destinação, entretanto não seria sem riscos. A heteróclita formação cultural – conceito que na dialética sampaiana equivale ao de formação econômica na dialética marxista – deixa o Brasil entre extremos: de um lado uma profunda fragilidade cultural que se desdobra em dependência econômica e primarismo político; de outro lado, a oportunidade de uma nobre destinação – a criação de uma cultura nova, a cultura lógico-qüinqüitária.



Concluímos, fazendo notar que a já enfatizada pertinência de Sampaio e Hegel ao mesmo filum filosófico, faz-nos desconfiar que o texto que acabamos de analisar é ainda um mero esboço do que, algum dia, virá ser sua "fenomenologia do espírito", não na velha versão lógico trinitária e sim, numa nova versão lógico qüinqüitária.





3) LÓGICA E ECONOMIA



Apenas dois textos de Sampaio têm prefácios elaborados por terceiros, e um deles é Lógica e economia. Foi escrito pelo Dr. João Paulo de Almeida Magalhães, um renomado especialista em economia, figura também de valor histórico por ter sido um dos primeiros batalhadores teóricos pela industrialização brasileira. Sendo a economia uma especialidade já bastante afastada da filosofia, consideramos como o mais prudente, na presente circunstância, seguir o itinerário do prefácio produzido pelo conhecido economista.

João Paulo de Almeida Magalhães inicia seu texto com considerações gerais acerca do momento inquietante que vive hoje a ciência econômica. Diz ele:



“A Economia está hoje entrando num momento de grande inquietação quanto aos seus métodos, resultados, e sua própria significação como ciência da realidade. Enquadram-se nesse contexto o artigo seminal de Boland A Critique of Friedman's Critics – 1979, em que põe a nu o elevado despreparo dos economistas no que se refere à moderna epistemologia, e a contribuição de Mac Closkey The Rethoric of Economics – 1983, que se aproxima, nessa disciplina, do anarquismo epistemológico de Feyerabend. O número especial de Ricerche Economiche – 1989, com a contribuição de especialistas de todo o mundo, e a publicação recente de livros como Boland The Methodology of Economic Model Building – 1989 e Glass e Johnson Economics – Progression, Stagnation or Degeneration – 1989, apontam no mesmo sentido." (LEC-p.I)



É a partir deste cenário que ele pode então melhor situar e avaliar a contribuição de Sampaio em Lógica e Economia:



"O trabalho de Luiz Sergio Coelho de Sampaio: Lógica e Economia cria, pelo seu título, a impressão inicial de se tratar de contribuição na mesma linha. Já nas primeiras páginas, todavia, fica patente que se trata de algo diferente e bem mais ambicioso. O trabalho examina a realidade econômica em sua correlação com diferentes tipos de lógica." (LEC-p.I)



Depois de resumir para o leitor as concepções sampaianas, tanto da lógica, como das determinações desta sobre a economia, pode identificar na obra focalizada a emergência de um novo paradigma:



"Para Sampaio, o homem é capaz de vários modos de pensar correspondentes às lógicas possíveis que, por sua vez, correspondem a modos de realidade. Ou ainda, segundo ele, ser e pensar se correspondem, havendo tantos modos de realidade quantos são os modos de pensar.



Com base nisso, que poderíamos chamar de um novo paradigma analítico, Sampaio vai se debruçar sobre a realidade econômica, com colocações e ilações extremamente originais." (LEC-p.II)



Passando ao próprio texto de Sampaio, vamos encontrar uma distinção basilar, qual seja, aquela entre riqueza e capital – ambas representam um "excedente" econômico, porém só o segundo volta a integrar-se à circulação econômica e daí, a exigir permanente e autônomamente sua remuneração. Demonstra-se, matematicamente, que a continuidade deste processo – o de acumulação do capital – só se viabiliza por uma também permanente injeção de ganhos de produtividade do trabalho; caso contrário, a população trabalhadora entraria num processo de pauperização crescente que só estancaria com a sua morte ou, antecipadamente, num radical conflito social. A modernidade (ou o sistema social capitalista) caracterizar-se-ia justamente por ter descoberto e incorporado – pelo menos por largos períodos de tempo – os mecanismos que asseguram o cumprimento dessa rigorosa condição através da internalização à economia das atividades científico-tecnológicas, que por seu turno, assentam suas bases num processo de desenvolvimento de recursos humanos, cada vez mais amplo, cada vez mais sofisticado. Pergunta-se então Sampaio: "Para quem a conservação e ampliação dos níveis de produtividade é uma questão vital?" Ele próprio responde:



Sem dúvida, para a classe capitalista, dado que tal conquista é uma condição sine qua non do processo de acumulação de capital. Mas isso não é tudo: é igualmente necessário que algum grupo se encarregue efetivamente das tarefas de educação e pesquisa, sem falarmos no zê-lo pela manutenção dos níveis de produtividade já atingidos. A este terceiro personagem, de modo simplório, denominamos classe média. (LEC-p.156)



É precisamente esta correlação essencial entre acumulação de capital e ganhos de produtividade que impede, mesmo como um estereótipo, que a sociedade moderna possa ser concebida como essencialmente bipolar. É necessário, doravante, que se considere além de exploradores e explorados, um terceiro personagem, uma terceira classe.



Isto posto, Sampaio sai em busca de uma explicação para esta aparentemente incompreensível omissão do pensamento econômico da modernidade: a do papel essencial e insubstituível que aí jogaria a classe média:



Esta é uma questão crucial. Ela vem nos alertar para o fato de que as análises dicotômicas que opõem, de um lado, a classe capitalista e, do outro, a classe operária, não passam de grotescas simplificações – deturpações, melhor diríamos – que se impuseram ao pensamento crítico social. Seria, então, a expressão profundamente sutil de um pensamento ideológico? A quem poderia aproveitar tal omissão? A qual das classes, à capitalista ou à operária? Por certo, que a nenhuma delas. Só poderia ser gerada pois, pela classe que assim se vela, precisamente, pela tão obscura classe média. Não poderia haver melhor disfarce político para ela do que a abusiva simplificação do Manifesto marxista. Nem melhor estratégia que convencer aos dois outros parceiros do jogo que apenas eles, entre si, têm diferenças a ajustar. (LEC-pp.155,156)



Para que se possa compreender em maior profundidade o papel da classe média nas nações em desenvolvimento – em que se enquadraria hoje o Brasil – valeria bem atentarmos para a correlação entre as lógicas e as funções fundamentais encontráveis nas economias modernas, tal como vistas pelo nosso filósofo.

Ele nos mostra que uma economia moderna – seja ela capitalista ou pretensamente socialista – já comporta cinco funções fundamentais marcadas por cada uma das também cinco lógicas subsumidas pela lógica qüinqüitária do ser subjetivo. Seriam elas:



a) função empreendedora:

governada pela lógica transcendental (I), porque supostamente seria ela a responsável pelo início de tudo;



b) função consumo:

governada pela lógica da diferença (D), isto pela simples justificação de que no consumo expressa-se economicamente o desejo;



c) função capitalística:

governada pela lógica dialética (I/D), posto que esta função se exerce pela concomitante troca do mesmo (dinheiro hoje por dinheiro amanhã) e pelo diferente (uma quantia hoje por ela mesma acrescida de uma remuneração ou juro amanhã);



d) função trabalho organizado:

governada pela lógica clássica (D/2) tendo-se em conta que o trabalho encontra-se aí parcelado e só por um outro globalmente concebido e a posteriori integrado;



e) função ganhos de produtividade

governada pela lógica qüinqüitária (I/D/2) o que facilmente se compreende tendo em vista que a técnica, pressuposto dos ganhos de produtividade, resulta da articulação de uma reta determinação (I) com um saber formalizado (D/2).



A partir daí Sampaio pode adjudicar um conjunto específico de funções a cada uma das três classes sociais paradigmáticas:



a) à classe capitalista caberiam as funções empresarial (I), capitalística (I/D) e, parcialmente, aquela de geração de ganhos de produtividade (I/D/2) por força de sua participação na orientação e financiamento das atividades que viabilizam tais ganhos (como não são tolos, todas as funções em I!);



b) classe trabalhadora (compreendendo inclusive os agricultores assalariados) à qual caberia o trabalho organizado (D/2) e pelo menos um mínimo de consumo (D) que lhe garantisse a sobrevivência;



c) classe média, funcionando como articuladora das duas outras; a articulação com a classe capitalista se daria cooperativamente na função ganho de produtividade (I/D/2) onde ela estaria assumindo as responsabilidades diretas pelas atividades de pesquisa, ensino, supervisão, etc.; a articulação com a classe trabalhadora se daria competitivamente no consumo (D), vale dizer, nas prateleiras dos supermercados.



Com este esquema teórico Sampaio procede a uma análise comparada do papel da classe média nas economias avançadas e nas economias periféricas:



Nas economias avançadas a classe média, exercendo sua efetiva função de preservação/ampliação dos níveis de produtividade, tem condições de uma estratégia diversificada no que tange a suas aspirações de participação no consumo. Pode exercer sua pressão sobre a classe proletária, mas também exercê-la no sentido de uma apropriação mais que proporcional da mais-valia potencial que ela mesma viabiliza. Em síntese pode pressionar tanto sobre o presente, como sobre o futuro. No caso das nações dependentes, o afluxo de produtividade é gerado e controlado do exterior, de sorte que grande parcela da classe média nacional perde sua função, seu poder de barganha, enfim, sua compostura. Nesta situação toda a pressão irá se exercer contra a classe operária, que por conseqüência terá que ser mantida em níveis próximos ao da subsistência, o que já não ocorre nas nações desenvolvidas. Como é possível fazê-lo? Pelo estrito controle cultural exercido por essa classe média sobre a massa através da educação e da influência sobre os meios de comunicação de massa tradicionais – e até dissimuladamente, dos alternativos – sem falar de sua desproporcional influência direta e indireta sobre o aparelho estatal, seja ele civil, seja ele militar. Muita gente se engana vendo nos militares um simples joguete da classe dominante. O mesmo vale para os meios de comunicação; é verdade que há o enorme poder dos anunciantes, mas muitos esquecem que, em última instância, tal poder só se consuma com a efetiva audiência. E quem é, afinal, a grande audiência?! (LEC-p.169)





Convenhamos que as críticas de Sampaio ao comportamento da classe média nas nações periféricas são bastante severas, porém nada comparável com a ferocidade com que investe contra a classe dominante destas nações, dentre as quais, a brasileira seria o pior dos exemplares. Sobre esta última, afirma:



a) Na posição de empreendedor (I), cabe-lhe a iniciativa; mas o "empresariado brasileiro" prefere a joint-venture, isto é, o empresariado estrangeiro entra com tudo e ele com isenções, autorizações e carimbos governamentais.



b) Na posição capitalística (I/D), cabe-lhe o aporte de capital; mas o "empresariado brasileiro" prefere o capital estrangeiro ou, em não havendo alternativa, o do BNDES. Como podem eles reivindicar o direito ao lucro, se são completamente infensos ao risco de qualquer espécie?



c) Na posição de geradores de ganhos de produtividade (I//D/2) cabe-lhe a orientação e incentivo à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico; mas o "empresário brasileiro" prefere a compra de patentes e até marcas estrangeiras. Neste comportamento, uma vez mais, se revela sua absoluta aversão ao risco. (LEC-p.174)

Conclui o nosso pensador:

Vê-se pois que o empresário brasileiro abdica justamente do que seriam suas três funções essenciais, de modo que, a rigor aquilo com que ele entra mesmo, é com o outro – aquele que ocupa as posições D (o mercado) e D/2 (o trabalho – alheio, obviamente). Isto tem pouco ou nada de capitalismo, semelhando muito mais a um prolongamento dissimulado de atávico escravagismo. Uma atitude que se vê, em nada difere daquela que tiveram os sobas das tribos da África, entre os séculos XVI e XIX, em relação aos que vinham do Norte. Atitude diametralmente oposta à da aristocracia feudal japonesa ante as mesmas pressões: ao invés de vender seu próprio povo, preferiram reformar a escrita e alfabetizá-lo. Imagine-se o que teríamos feito nós na circunstância, sabendo-se que o atraso da economia japonesa, vis-à-vis a européia de então, não era de 3 ou 4 anos – como o é atualmente o da nossa indústria de informática – mais de 3 ou 4 séculos! (LEC-p.174,175)



Encerrando o presente item diríamos que Lógica e economia, além de seu valor conceitual intrínseco, é um dramático libelo contra a onda neo-liberal que, por força da estrutura monopolística dos meios de comunicação, inundou o mundo e na qual o Brasil tem mais chances de se afogar do que nela sobrenadar. O que estaria aí sendo proposto (aos espíritos) e concomitantemente imposto (aos corpos) é, em essência, a competição dos miseráveis de cada nação, todos contra todos. A competição generalizada e irrestrita estaria sendo alimentada com a diminuição dos salários reais e a renúncia aos benefícios sociais, sem que os afetados possam arranjar fôlego para uma tomada de consciência e conseqüente reação, visto que lhes está posto às costas o aguilhão das aceleradas mudanças tecnológicas, e sobre as cabeças o espectro, ainda pior, do desemprego. Uma corrida célere para o nada, assim se nos apresenta, hoje, a fase atual da modernidade. E no Brasil, tudo isto multiplicado por dois por força da secular insensibilidade das elites políticas, econômica e, até culturais. Em contraposição a este quadro sombrio, é o mesmo Sampaio que vai buscar indícios e argumentos capazes de reanimar nossas esperanças. A saída não estaria, entretanto, no campo da economia, mas sim, no da cultura: uma cultura nova para uma nova economia, é o que, enfim, ele nos propõe.

Finalmente, voltemos a João Paulo de Almeida Magalhães, tomando-lhe de empréstimo as palavras finais de seu erudito prefácio:

A Lógica e Economia não é para leitores de fim de semana. É um trabalho para ser lido, relido e meditado. Pouca coisa se tem escrito ultimamente no Brasil em relação a qual se possa dizer o mesmo. Donde a excepcional importâcia da contribuição de Sampaio. (LEC-p.IV)



4) LÓGICA E TEOLOGIA

Parece serem de duas ordens, a nosso ver, as intuições que levaram Luiz Sergio Sampaio ao universo da teologia, ou seja, à preocupação com o sagrado. A primeira, é uma conseqüência de seu próprio percurso teórico. Estabelecida a estratificação ontológica dos planos mundanos – mundo fenomênico governado pela lógica "unária" transcendental (I); mundo objetivo governado pela lógica trinitária dialética (I/D); e mundo subjetivo governado pela lógica qüinqüitária do ser humano em sua plenitude (I/D/2) – ficava implicitamente sugerida, por mera extrapolação formal, a existência de planos trans-subjetivos, transcendentes, governados por lógicas de níveis superiores – "eneária" (I/D/3)(2), septendecitária (I/D/4), etc. Sobre isto manifesta-se nosso filósofo logo na introdução de seu Noções de onto-teo-logia:



O impulso para elaboração de uma introdução à teologia nasceu na seqüência de alguns trabalhos nossos anteriores. Havíamos já tratado do mundo fenomênico e do mundo objetivo – lógico, concreto e simbólico – bem como incursionáramos com alguma profundidade ao mundo subjetivo – pessoal e social. Se já chegáramos a tanto, porque não prosseguir nessa escalada? Quem tivesse a oportunidade de ler estes trabalhos, concordaria, por certo, que continuar, tornava-se quase que uma compulsão. (OTL-p.10)

Há também uma segunda ordem de intuições impulsionando Sampaio para a teologia que muito tem a ver com sua obsessiva preocupação com os destinos de seu País. É, de certa forma, uma decorrência da aproximação por ele feita entre lógica e cultura (ver, a propósito, o item 2 anterior). Estabelece ele preliminarmente que:

De todas as facetas de uma cultura, a religião é, sem nenhuma dúvida, a mais importante, a mais crítica, na medida em que ela se pretende o núcleo central e invariante desta cultura, ou mais exatamente, seu ser absoluto. É verdade que muitas religiões assumem ares de trans-culturalidade – como é o caso, por exemplo, do catolicismo romano – porém, o fato é que a História não cansa de mostrar justo o contrário.

Ora, admitida a hipótese de que qualquer cultura tem seu fundamento numa determinada parcialidade lógica assumida, e ainda, aceite a hipótese de que na religião se condensa o absoluto de qualquer cultura, seremos obrigados a concluir que uma cultura, sua religião e sua lógica, em boa medida, são as mesmas. Seremos obrigado a admitir ainda um pouco mais: que a eventual fragilidade de um povo é, em verdade, sua fragilidade cultural, e, por conseqüência, uma outra face de sua fragilidade religiosa. (OTL-p.15)



A translação de tudo isto para o contexto brasileiro leva-o a concluir pela extrema relevância dos estudos teológicos para que possamos melhor compreender as especificidades da atual conjuntura social brasileira, para daí agirmos eficaz e conseqüentemente. Diz-nos Sampaio:

Quem se der ao cuidado de escutar com atenção um punhado de brasileiros tomados ao acaso terá que ficar abismado, senão alarmado, com o que eles pensam da religião e como, de fato, vivenciam suas relações com um pressuposto absoluto. Dificilmente se ouvirá coisas coincidentes de uma pessoa para outra, e o que é pior, coerentes quando vindas de uma mesma pessoa. A sensação é de caos, o que não quer dizer que aí não haja lógica; em verdade há, até demais; há uma multiplicidade de lógicas que só atuam topicamente; é compreensível que qualquer raciocínio ou simples ilação precise ser evitada para que a pessoa não venha se defrontar com sua própria desordem interior, que em se tratando de religião, se afigura como caos absoluto. Note-se que isto não deve ser visto como pura negatividade, muito menos como algo definitivo; talvez possa significar um processo particularmente complexo em andamento, uma convergência embargada por uma estabilização dominadora, e muitas outras coisas. Contudo, não deixa de ser preocupante, até mesmo alarmente; é, acima de tudo, um fenômeno a se compreender e buscar superar. Qualquer ação social efetiva que pretendamos empreender, por certo, exigirá a pré-compreensão desta nossa especialíssima problemática religiosa. Não temos a menor dúvida sobre isto: nada mais urgente hoje no Brasil, pois, que a reflexão teológica, séria, obviamente. (OTL-pp.15,16)



Para o filósofo brasileiro uma teologia da atualidade deveria atender a duas importantes exigências internas que ele reconhece já estarem presentes em Hans Küng: a seriedade na argumentação e a disponibilidade para o diálogo não só ecumênico, mas igualmente para com a ciência. Citemo-lo:



Küng tem plena razão em suas observações críticas, e conseqüentemente, em seu clamor por uma teologia séria, poder-se-ia dizer até, por uma teologia mais honesta. (OTL-p.13)



Criticando os "teólogos oficiais", afirma:



Um grande número de teólogos e exegetas hierárquicos, sem a menor cerimônia, distribuem juízos, ditos ortodoxos, de aprovação e censura, afirmando que Deus pensou isto ou aquilo, que Deus queria assim ou assado e quejandas. É a famigerada "teologia das fórmulas", processo de fixação pretenciosa de uma cadeia de significantes que a pretexto de encerrar um sentido, em verdade, encerra autoritariamente a discussão. Salva-se o sistema, o sentido que vá literalmente para o diabo! (OTL-p.11)



Especificamente, quanto ao diálogo da teologia com a ciência, Sampaio acompanha o teólogo de Tübingen, como se vê no seguinte comentário:



... demo-nos conta, ainda que a posteriori, de uma das motivações subterrâneas de nosso trabalho, por certo, não a menor: a urgente precisão, de algum modo, de se tentar uma teologia séria. Uma teologia em aberto diálogo crítico com a ciência de nosso tempo, que pudesse ser aceita sem que fosse necessário violentar nossa ainda frágil e titubiante razão. Que, de uma vez por todas, renunciasse ao caminho do terrorismo, da fácil exploração de naturais temores infantis frente aos terríveis poderes de um pai imaginário. Enfim, uma théologie sérieuse! (OTL-p.14)



Na comparação entre cientistas e teólogos da atualidade, Sampaio faz uma curiosa observação sobre a natureza do prestígio que uns e outros gozam ante a sociedade e que certamente militaria energicamente contra os últimos:





Não terão ainda os teólogos oficiais – assim como os que esperam a vez – percebido que o prestígio da ciência vis-à-vis à teologia, talvez, se deva bem menos aos seus êxitos e realizações tecnológicas, que ao ainda relativamente elevado nível ético que rege a comunidade científica? (OTL-p.12)



No que diz respeito à relação entre ciência e teologia, as concepções de Luiz Sergio são ao mesmo tempo, originais e precisas, e delas podemos ter um exato entendimento pela simples contemplação de uma de suas famigeradas figuras encontrada no item 5.4 de seu Noções de onto-teo-logia e que não resistimos, com a devida autorização, abaixo reproduzir








O seu título é revelador: Teologia revelada, ciência e a mediação da teologia natural. Além destes três "personagens" aparece na figura, duplamente, a filosofia: do lado direito, abaixo, representada pelo transcendentalismo de Kant e Husserl, e acima, pela dialética hegeliano-marxista; do lado esquerdo, representada pela própria ontologia do autor.

Na concepção aqui apresentada, a ciência (marcada pela lógica clássica – D/2) se vê assaltada, por "baixo", pela filosofia transcendental (I) que lhe procura impor condição a priori de possibilidade, e, pelo "alto", sem que de fato o consiga, pela dialética historicista (I/D). Sampaio considera que a pretensão transcendental será sempre válida e ele próprio a subescreveria. Porém, a pretensão dialética se frustrará, sempre, pela sua insuficiência frente à lógica clássica que governa a ciência, que é de nível superior (D/2).

Em contraposição, uma filosofia de base lógico-qüinqüitária – no caso, sua própria ontologia (I/D/2) – por ser de nível superior ao da ciência poderá restabelecer a pretenção filosófica até então frustrada. Esta filosofia, sim, é que nos poderá proporcionar a compreensão e consequente domínio social da ciência. É óbvio que para isto, aos olhos do nosso filósofo, não bastará a legalidade da pretensão filosófica tal como por ele mesmo estabelecida. Será preciso muita coragem e muito trabalho e só virá consumar-se com o advento da nova cultura sucedendo a cultura científica moderna.

Ora, no prolongamento da ontologia mundana – com seus níveis fenomênico (I), objetivo (I/D) e subjetivo (I/D/2) – estaria a teologia natural, via ascendente para o Absoluto, trabalhando, ainda que abstratamente, com as lógicas trans-subjetivas – eneária, septendecitária, etc.

Circunscrito o âmbito da teologia natural – como já dito, via ascendente para o Absoluto – pode-se vê-la agora como contra-posta à teologia revelada – via descendente, por suposto, proveniente do próprio Absoluto. Não haveria, a priori, uma perfeita harmonia entre as duas teologias – natural e revelada – como explica Sampaio:



É verdade que a TR poderá e deverá indicar caminhos e "objetivos" à TN, mas é também verdade que a TN poderá e deverá se constituir na fonte inesgotável de aprimoramento exegético para a TR. Esta é a questão crucial. O texto revelado não se basta na escritura: ele verdadeiramente se consuma na leitura, leitura que será sempre humana, ainda que eventual ou necessariamente inspirada pela Graça. O momento exegético é, concomitantemente, incontornável e infinitamente aprimorável, podendo-se mesmo afirmar que a ascensão exegética é o mais estrito correlato da ascenção moral do homem. Neste sentido, a teologia natural pode fazer muito. Negar, como é corrente, tanto entre especialistas como entre leigos, espaço e reconhecimento à TN é simplesmente absurdo, tão grande quanto autoritariamente censurá-la. Quem se arroga a posição de guardião da fé, mormente por alegado mandato divino, não ganha um direito de inapelável censura, mas sim um dever de inesgotável paciência e compreensão. Em resumo, o direito à TN – incluído aí seu inalienável direito de erro e errância – é bem mais que um direito natural; trata-se de um direito de fundamento divino, só e exclusivamente revogável por quem encarnando-se conseqüentemente o outorgou.

As relações TN/TR, ainda que bilaterais, não são obviamente simétricas, pois reconhecemos que só a última pode ser verdadeiramente digna de fé. (OTL-cap.5.4-p.6)



Daí, como é próprio do discurso de Sampaio, sua atenção deslocar-se-ia para focalizar o Brasil e perguntar-se a cerca do quanto sua onto-teo-logia poderia contribuir para a compreensão de nossa problemática social – em especial, em seus aspectos culturais. Confessa-se um tanto pretensioso na oportunidade ao acenar-nos com as enormes oportunidades que sua onto-teo-logia nos poderia trazer, na medida em que:



a) Abre uma clareira mais além onde se poderá desenvolver um diálogo ecumênico que não venha ser entravado por questões históricas ultrapassadas e por velhos ressentimentos;



b) Constitui-se num ponto de vista privilegiado para a análise crítica da cultura tornando assim pensável e alvo de esperança algo além da ciência e da modernidade, algo bem além da impostura pós-moderna; em outras palavras, nos permite vislumbrar os contornos de uma nova cultura que terá como traço marcante, indubitavelmente, a revivescência do Espírito;



c) Ajuda-nos a superar o fosso entre fé e razão, entre teologia e ciência, a partir do que poderemos, doravante, entregarmo-nos a fé sem termos que sofrer a violação da própria consciência, e ao mesmo tempo, confiarmos na razão em seu sentido largo sem temermos as ameaças do terrorismo transcendente;



d) No que nos interessa mais de perto, ela demonstra a dispensabilidade do marxismo como instrumental analítico para a Teologia da Libertação. Mas o faz deixando intacta e mesmo reavivada a indignação moral diante da miséria e opressão interna e externa a que está submetida a maioria da população do terceiro mundo que, afinal de contas, a motivou. Afirma, sim, a insuficiência do marxismo, porém, proporcionando-lhe um substituto analítico ainda mais afiado e potente ao mesmo tempo que acorde com a própria tradição cristã, em especial, aquela desenvolvida pelos Padres fundadores. (OTL-cap.5.4-pp.7,8)



Há um momento de grande interesse nas especulações teológicas de Luiz Sergio no qual ele evidencia a insuficiência metodológica em teologia. Refere-se especificamente às analogias, tanto à analogia entis de S. Tomás de Aquino, quanto à analogia fidei de K. Barth. A ambas irá contrapor a estratégia metodológica por ele denominada síntese das projeções. Esta pode ser entendida como um certo platonismo no qual se substitui a hipótese da idéia transcendente pela hipótese da convergência articulada das próprias sombras. De certo modo é este o método provado no campo das ciências físicas. Assim:



... parte-se da hipótese que a diversidade do mundo é, fundamentalmente, uma diversidade de aparências num mundo de dimensões reduzidas (...). Em conseqüência, se pudéssemos ao menos representar um espaço de maior número de dimensões, nele seria possível "visualizar" o objeto original, talvez único, responsável pela pletora de aparências do mundo menor em que habitamos. O problema central, pois, será o de remontar das projeções ou sombras ao objeto delas determinante. (OTL-p.87)



Por esta via metodológica ascendente, Sampaio pretende ter mostrado que o nível ontológico do Absoluto é septendecitário (I/D/4); e ainda que o supuséssemos superior não teríamos a menor possibilidade de sabê-lo. No intervalo entre os homens (I/D/2) e o Absoluto (I/D/4) irão habitar, naturalmente, anjos e demônios, aos quais Sampaio irá dedicar grande atenção num capítulo inteiro de seu Noções de onto-teo-logia, aliás, em aberto desafio à orientação em contrário do grande teólogo jesuita K. Rahner, que considera o assunto extremamente delicado nos tempos atuais.

A seguir, Luiz Sergio volta-se para a teologia revelada cristã, via descendente, para demonstrar que a paixão do Cristo constitui-se num dos modos paradigmáticos da auto-revelação do Absoluto. Eis o seu argumento: se a lógica do Absoluto, por hipótese, for de nível septendecitário (I/D/4) a ela o homem não pode ter acesso direto em razão de seu nível lógico inferior, isto é, qüinqüitário (I/D/2). Ela só aconteceria se a auto-revelação do Absoluto se desse fragmentariamente, em partes inferiores ao nível qüinqüitário (I/D/2). Ora, a teologia cristã não se cansa de asseverar que, primeiro, o Cristo é inconfundivelmente homem (I/D/2) e, ao mesmo tempo, a Segunda Pessoa (D) da Trindade Divina (I/D). Vê-se que em todas estas verdades nada ocorre que seja superior ao nível (I/D/2), o que faz do conjunto das mensagens algo humanamente inteligível (não superior a sua capacidade lógica I/D/2), e concomitantemente um mistério (porque, na verdade, o Absoluto continua sendo eternamente I/D/4).

A figura a seguir, a nós oferecida pelo próprio Sampaio, deixa tudo isto bastante claro:






O teólogo alemão K. Rahner, uma das principais figuras do Concílio Vaticano II, defendia a idéia de que, mesmo antes e até à margem das Escrituras, o Absoluto se auto-revela – é da sua própria essência. Sampaio, concorda e designa este modo auto-revelatório de lógico-transcendental (I), ou apenas <a; porém acrescenta um modo auto-revelatório designado lógico-septendecitário (I/D/4), ou apenas w, este com a peculiaridade de ter que consumar-se por partes, na medida lógica do homem.

Enfim, no dizer de Sampaio, as vias ascendente (natural) e descendente (revelada) logicamente concordam. Arriscamo-nos a supor, que no íntimo, era precisamente isto que nosso filósofo (ou teólogo?!) buscava quando partiu para a elaboração de sua Noções de Onto-teo-logia.



5) LÓGICA E PSICANÁLISE



Segundo Sampaio as referências freudianas à lógica seriam raras e ainda assim de valor duvidoso. Na Interpretação dos sonhos Freud afirma não vigir no inconsciente a negação, para meia dúzia de páginas adiante negá-la. No mesmo texto faz menção explícita ao princípio da contradição: "As leis do pensamento não se aplicam ao id, e isto é verdadeiro acima de tudo para a lei da contradição", porém, o contexto, ajudado por nosso poder crítico-reflexivo, deixa evidente que o que deveria estar sendo renegado seria sim a lógica clássica em sua totalidade, e conseqüentemente, a versão sampaiana do princípio do terço excluso que engloba tanto o velho princípio da contradição, quanto a antiga e equivocada versão do princípio do terço excluso. Em suma, observa o nosso filósofo:



Mas não se pode só por isso dizer que Freud não tivesse plena consciência das pre-determinações lógicas de suas descobertas. Em A questão da análise leiga Freud nos dá uma lista das disciplinas que além da própria psiquiatria, biologia e sexologia deveriam fazer parte do curriculum de formação do analista – História da Civilização, mitologia, psicologia da religião, ciência da literatura. Como se vê, a lógica estava aí completamente ausente. (LPS-p.12)



A questão da lógica versus psicanálise volta à tona com o húngaro Imre Hermann – discípulo de seu célebre compatriota e também psicanalista Sandor Ferenzci – ao publicar em 1924 um livro justamente intitulado Psycanalise e logique. A redução da lógica tão somente a uma teoria do pensamento formal dedutivo e não ao pensamento em geral – concepção esta comum tanto a Hermann, como ao próprio Freud – não permitiu, entretanto, que ele aprofundasse a questão. Ficava apenas sugerida pelo autor húngaro – informa-nos ainda Sampaio – uma conexão entre a lógica clássica e o acontecimento da castração.

É em Lacan, continua Sampaio, que a questão da relação entre lógica e psicanálise irá eclodir em toda a sua magnitude. O que se dá na passagem de Freud a Lacan, não é uma simples re-leitura, mas a explicitação e caracterização precisa do tipo de pensamento (lógica) necessária a "visar" o inconsciente – a lógica do significante. É importante remeter o leitor a uma tese de doutorado recentemente defendida na Escola de Comunicação da UFRJ pelo Prof. Guilherme Castelo Branco, com o título Ontologia e psicanálise em Jacques Lacan.

Luiz Sergio vai mostrar que a lógica do significante, em todas as suas características, confunde-se com a sua própria lógica da simples diferença (D). Contrastando: teria sido o mesmo Hegel a explicitar a História e a lógica própria a poder "visá-la" isto é, a dialética. No caso presente, o "objeto" (o inconsciente) ficava por conta de um: Freud; enquanto que a lógica capaz de verdadeiramente pensá-lo, por outro: Lacan.

Retomando a questão da identificação da lógica do significante à lógica da diferença esclarece o nosso pensador:



Que a lógica da diferença D pense o significante é uma conseqüência quase que natural da velha postulação platônica (Parmênides), de que a dialética (síntese do um e do múltiplo, do idêntico e do diferente, isto é, I/D) pensa a idéia, o conceito ou o signo. Desconsiderar a significação ou interpretação do signo (I/D) é desconsiderar apenas I, o imaginário, restando então a diferença D. Por que não voltamos à D como lógica da res extensa? Porque agora, o visado por D, diferentemente do que ocorre com a res extensa, passa a ser susceptível de articulação gramatical (simbólica, na terminologia lacaniana), esta, convencional e não apenas fisicamente determinada.

O significante está para o subjetivo (I/D/2) assim como a res extensa está para o objetivo (I/D), conquanto ambos estejam sendo necessariamente pensados pela lógica da diferença (D). (LL-pp.16,17)



o que permite ao filósofo concluir que:



Em suma, as realizações da lógica D [nas versões paraconsistente e paracompleta] constituem-se nos dois modos formalizados do processo primário. (LL-p.18)



Sampaio atribui uma grande importância ao desvelamento da lógica da diferença, já identificada à lógica lacaniana do significante, porque ela sela a completude do quadro das lógicas de base. Há muito eram bem conhecidas as lógicas transcendental (I), dialética (I/D) e clássica (D/2), mas só agora a elas vinha se juntar, tardiamente, a lógica da diferença (D). Tal desvelamento, além da completude referida, iria permitir a Sampaio o desvelamento da essência da própria lógica clássica, agora caracterizada por uma dupla diferença, uma duplicação que representa, ao mesmo tempo, sua origem e sua função de recalque. Isto nos remete à idéia freudiana de auto-diferenciação do próprio id produzindo um super-ego que o tentará governar. Assinala ainda nosso filósofo que o completamento do quadro das lógicas de base é o que irá facilitar a visualização da seqüência – I, D, I/D, D/2 – no prolongamento da qual vamos encontrar, afinal, a lógica qüinqüitária do ser humano em sua plenitude – I/D/2. Esta última, ao mesmo tempo, subsume as lógicas de base e assume o governo estratégico dos seus circunstanciais exercícios.

É ainda sobre o quadro das lógicas de base que será possível descortinar a verdadeira essência da sexualidade humana (lógica e tetrapolar) em contra-posição a sexualidade animal (biológica e bipolar). Ser masculino significaria, assim, a assunção conjunta das lógicas da identidade (I) e clássica (D/2), ou seja, ser projeto (I) da sistematização (D/2) do mundo. Ser feminino significaria a assunção das lógicas da diferença (D) e dialética (I/D), ou seja, ser paradoxal/intuitiva (D) para poder garantir a continuidade histórica (I/D) do mundo. Num sub-capítulo ainda inédito a ser inserido na próxima edição de Lógica e psicanálise, Sampaio deixa evidente seu profundo respeito pelo psicanalista francês ao escrever:



Continuando, observaríamos que nosso radical compromisso com a estrita correspondência entre pensamento (lógica) e realidade, obriga-nos a admitir que o desvelamento dos pares lógicos masculino (I, I/D2) e feminino (D, I/D) constitui-se num verdadeiro acontecimento onto-lógico; que por vez primeira, defrontamo-nos com a verdadeira essência do ser humano enquanto ser-sexual – homem e mulher. Concomitantemente, estamos alçando masculino e feminino ao estatuto de conceitos fundamentais da filosofia. Não nos parece pouco!

É precisamente isto, a nosso ver, que faz com que, ainda que desconfiadamente, sejamos obrigados a considerar Lacan um dos maiores pensadores, não apenas da atualidade, mas da história do pensamento ocidental. É verdade que os méritos devem ser compartilhados com toda a linhagem dos pensadores da diferença – começando com Kierkegaard e chegando até Freud – responsáveis pelo prévio e progressivo desvelamento da lógica da diferença e de sua correlata realidade – o inconsciente. Sem a lógica da diferença (D) não teríamos chegado ao término do processo de desvelamento das lógicas de base, nem à exata compreensão da lógica clássica como lógica da dupla diferença (D/2); nem, por derradeiro, à compreensão lacaniana do ser-sexual. (LL???????)



No capítulo III de Lógica e psicanálise – 9 ensaios, nosso filósofo procede a um detalhado estudo das modalidades aléticas – necessário, contingente, impossível e possível – no qual fica demonstrado que a psicanálise foi mais sagaz do que a lógica profissional no seu trato. A última, insistentemente buscou definir as modalidades aléticas no âmbito de uma mesma lógica, em geral, da própria lógica clássica, caso em que a lógica modal vinha se constituir em apenas uma extensão de lógica referenciada. Sampaio vai aí mostrar como Lacan as faz corresponder a cada um de seus quatro famigerados matemas. Estes, explica-nos ele, são fórmulas lógicas com a aparência de fórmulas normais da lógica aristotélica, mas às quais Lacan vai atribuir nova significação forçando-as a dizer formalmente cada uma das quatro posições que definem o quadro referencial da sexualidade.

Ora, tanto já estabelecida por Sampaio a correspondência entre as quatro posições lacanianas da sexualidade com suas quatro lógicas de base, como também estabelecida por Lacan a correspondência entre suas quatro posições da sexualidade (matemas) com as quatro modalidades aléticas, pelo mero uso da propriedade de transitividade, chegar-se-ia à correspondência entre as quatro lógicas de base e as quatro modalidades aléticas. O resultado da argumentação é surpreendente, porém dificilmente refutável. Ao contrário do que creem os lógicos profissionais, as modalidades aléticas seriam, na verdade, modos-de-ser-lógico. Segundo Sampaio, que por sua vez declara "segundo lacan", esta correspondência teria que ser a seguinte:



L. da diferença Lógica clássica

ou do significante ou da dupla diferença

CONTINGENTE POSSÍVEL





Lógica da identidade Lógica dialética

ou transcendental

NECESSÁRIO IMPOSSÍVEL



Eis aí mais uma lição que os lógicos acadêmicos podem tirar do ensino lacaniano: as modalidades não são internas a uma lógica, ainda menos quando esta é a lógica clássica; as modalidades, na verdade, são modos-de-ser-lógico ou, equivalentemente, modos-de-pensar." (LL-p.22)

A mais aparentemente estranha das correlações acima é aquela entre a lógica clássica e a modalidade do possível. Muitos poderiam estar esperando que a modalidade aí requisitada fosse a do necessário. Sampaio esclarece-nos, entretanto, que o sentido implícito da decisão lacaniana está no fato de que para o pensar lógico clássico, ou equivalentemente, para o pensar matemático, o demonstrado possível ou calculado é imediatamente considerado como realidade. Calculada a ponte, o engenheiro estará pronto para, depois de construída, sentar-se tranqüilamente sobre ela. Em matemática, o que é provado simplesmente não-contraditório confunde-se com o real, real matemático, naturalmente.

Em resumo, diríamos que assim como Sampaio desconfia haver algo mais que uma simples re-leitura na passagem de Freud a Lacan, pode-se desconfiar haver ainda um pouco mais na passagem da lógica do significante do psicanalista francês à lógica qüinqüitária do filósofo brasileiro.



6. LÓGICA E FÍSICA



O texto de referência é aqui O mundo concreto: tempo, espaço e materialidade; partículas e forças. Embora seja um estudo sobre a filosofia de física e não propriamente de física, exige para sua plena compreensão conhecimentos razoavelmente sólidos e atualizados sobre a física teórica incomuns ao leitor médio, razão pela qual nossas considerações serão aqui drasticamente resumidas.

Sampaio retoma nesta obra o projeto kantiano, qual seja, o da determinação das condições a priori da verdade no campo das ciências exatas, particularmente da física. Em princípio o sujeito da ciência em Kant e Sampaio é o mesmo sujeito lógico transcendental, mas a diferença está em que para o último, isto não reduz a capacidade lógica do sujeito à simples capacidade lógico transcendental. Para Sampaio transcendental é, na verdade, a lógica da "posição" ou "lugar" de sujeito da ciência, porém, não se pode confundi-la com a globalidade de sua capacidade operatória. Apenas um exemplo: a ação de sujeito da ciência envolve a capacidade de medir, calcular, elaborar sistemas axiomáticos, todas regidas pela matemática, e esta, pela lógica clássica. Como esta, obviamente, não provém do fenômeno, deixa como única alternativa o fato de sua proveniência subjetiva. A produção do objeto científico – partículas, átomos, núcleos atômicos, etc., – segundo a análise sampaiana mobiliza uma longa cadeia de determinações lógicas: o objeto natural – a res extensa – é inicialmente pensado pela lógica da diferença ou da espacialidade (D); o produto desta primeira operação é repensado pela lógica do conceito ou da idéia – a dialética (I/D) – o que lhe confere uma suposta significação e o subtrai, assim, do mundo da contingência. Se ficarmos aí, fixamo-nos precisamente no seio da magia. O pensamento científico nasce no exato momento em que esta exorbitância é corrigida ou anulada através do expediente de se desconsiderar o sentido do objeto simbólico e tomá-lo apenas como simples significante, o que equivale a "visá-lo", de novo, pela lógica D, já agora lógica do significante. Nesta operação de ida e volta, de atribuição de significação e retirada de sentido referencial ou extensivo, sobra algo: a possibilidade da significação intensiva do significante, isto é, a possibilidade de sua articulação a outros significantes por uma lei externa, que não pode ser senão a lei científica. A ulterior operação de mensuração é uma operação lógica clássica (D/2) que, afinal, revela o objeto como um conjunto ordenado de números, e depois, como objeto (ou estado) sistêmico; enfim, objeto científico propriamente dito.

Seguindo esta via paradigmática, Luiz Sergio procede a uma minuciosa análise das principais entidades da física moderna – partículas e forças – que não é possível ser seguida sem um razoável conhecimento da física experimental e teórica mais atual. Não nos dispensamos, entretanto, de um breve comentário ao item 2.10 da obra em questão, que se denomina, com propriedade, Considerações imoderadas.

Em certa altura do texto nosso autor explica-nos o que vem a ser o hoje denominado princípio antrópico, assunto de grande atualidade no arraial da cosmologia. Eis a novidade:



Neste ponto, não podemos deixar passar a oportunidade de uma breve referência ao princípio antrópico, hoje em moda nos círculos da especulação cosmológica. O princípio emerge da constatação de que admitidas pequenas variações nos valores das constantes universais, transtornar-se-ia de tal sorte a história do universo, que se tornaria impossível o advento do homem. Conclusão: se as constantes universais sempre o foram, desde o big-bang, então, desde o começo, o universo guardou em suas potencialidades a matriz do homem. Admitindo que só o homem é capaz de conhecer as leis que regem o universo e suas respectivas constantes, fecha-se o círculo: este universo destinava-se, ab initio, ao homem, e o homem a ele. Este é, em essência, o conteúdo central do princípio antrópico, que ganha maior ou menor extensão conforme o ímpeto especulativo de cada autor. (MCT, - pp. 216, 217)



O objetivo de nosso filósofo, entretanto, está bem mais além. Toma tudo isto apenas como mero pano de fundo para apresentar sua própria versão do princípio, diga-se de passagem, muito mais radical.

O cerne de sua especulação é a correspondência estrita que consegue estabelecer entre as estruturas lógicas e o conjunto das chamadas partículas elementares: neutrinos, fotons, eletrons, bosons fracos, quarks, etc. Tão estreita se afigura a correspondência que, segundo ele, as partículas elementares podem ser consideradas como possuindo, além do seu específico conjunto de qualidades físicas – massa, carga, spin, etc. –, também, qualidades propriamente simbólicas. Em suma, Sampaio afirma que as partículas elementares constituem uma mensagem, em princípio, pois, legível. Que pretende ele ler aí? Tão apenas as estruturas lógicas que dez ou vinte bilhões de anos após o big-bang iriam se concretizar ou atualizar no homem! Em outras palavras, a seu ver as partículas elementares se constituiriam, literalmente, no "código genético" do Espírito, assim como o DNA o é da vida.



Fica agora patente a razão pela qual o filósofo carioca escolheu o título Considerações imoderadas para o referido item de sua obra sobre a filosofia da física...



III - CONCLUSÃO



Ao longo do esforço que realizamos em torno da obra de Luiz Sergio Coelho de Sampaio, no sentido de surpreendê-la nos seus momentos capitais, restou-nos a convicção de que se trata de um neohegelianismo que se instaura na sua originalidade, isto é, nos horizontes da superação do próprio hegelianismo e no caminho da articulação de novos modos de pensar radical como tarefa da filosofia.

Por outro lado, constatamos a pouca circulação da filosofia do Autor analisado nos meios acadêmicos, o que impede um debate mais amplo das suas idéias, fato que atribuimos às "barreiras" da "burocratização da filosofia" na esfera institucional já objeto das conhecidas denúncias de Schopenhauer, Nietszche e tantos outros.

Resta-nos expressar nosso agradecimento a Luiz Sergio Sampaio. Primeiramente, por ter-nos, de pronto, fornecido exemplares de todas as suas obras; depois, por facultar-nos o acesso a textos que aguardam publicação ou a oportunidade de serem inseridos em trabalhos seus anteriores; e mais, por autorizar-nos a irrestrita citação de textos e reprodução de figuras; finalmente, por ter-se colocado sempre a nossa disposição para informações e esclarecimentos durante estes longos últimos meses em que vimos trabalhando sobre seu pensamento filosófico.

Semelhante contribuição, infelizmente, não tem sido possível em relação a Djacir Menezes, em virtude da sua idade avançada, embora já tenhamos conseguido a filmagem do seu ambiente e a gravação de algumas respostas a interrogações a ele formuladas.












IV – NOTAS



1. Todas as obras de Sampaio estão recenseadas ao final deste texto e a cada uma delas fizemos corresponder uma sigla mnemônica pela qual elas serão doravante citadas. Assim, no exemplo acima – (RFB-p.3) – remete-se à página 3 de Depoimento para Rumos da filosofia atual no Brasil.

2. A seqüência de designações unário, trinitário, qüinqüitário que se prolonga com eneário, septendecitário, etc. é uma simples decorrência da composição sintética das lógicas a partir da lógica da identidade (que sempre se conta por 1) e da lógica da diferença (que se conta por 2). Esta última, quando reiterada n vezes será contada, naturalmente, por 2x2x...x2 vezes quanto for o valor de n). Assim, por exemplo, para a lógica simbolizada por I/D/2 contar-se-ia 1+2x2=5, daí a designação qüinqüitário; aquela simbolizada por I/D/4 contar-se-ia 1+2x2x2x2=17, daí a designação septendecitário.
V - BIBLIOGRAFIA





1. A Permanente Revolução do Analógico ao Convencional – Rio de Janeiro. Parcialmente publicado no JB em 07.09.80 - (PRA).



2. As Lógicas da Diferença – Rio de Janeiro, Ed. EMBRATEL, 1984 - (LDI).



3. Informática e Cultura – Rio de Janeiro, Ed. EMBRATEL, 1984. (INC)



4. Notas sobre a Significação da Teoria Axiomática dos Grupos. Rio de Janeiro, Ed. EMBRATEL, 1984.



5. Noções Elementares de Lógica – Tomo I. Rio de Janeiro, Ed. Inst. Cultura-Nova, 1988 (xerografado) – (NEL-I).



6. Lógica e Economia. Rio de Janeiro, Ed. Inst. Cultura-Nova, 1988 (xerografado) – (LEC).



7. O Mundo Concreto. Tempo-espaço e Materialidade. Partículas e Forças, Vol. I e II. Rio de Janeiro, Ed. Inst. Cultura-Nova, 1988 (xerografado) – (MCT).



8. Noções Elementares de Lógica – Tomo II. Rio de Janeiro, Ed. Inst. Cultura-Nova – 1989 (xerografado) – (NEL-II).



9. Lógica e Psicanálise - nove ensaios. Rio de Janeiro, Ed. Inst. Cultura-Nova, 1990 (xerografado) – (LPS).



10. Depoimento para Rumos da filosofia atual no Brasil em auto-retratos – 2º volume (publicação idealizada e dirigida pelo Dr. P. Stanislavs Ladusãns S.J. que infelizmente faleceu antes de sua efetiva publicação). Rio, 1990 (RFB).



11. Noções de Onto-teo-logia. Rio de Janeiro, Ed. Inst. Cultura-Nova, 1990 (xerografado) – (OTL).



12. Noções Elementares de Lógica – Compacto. Versão abreviada e significativamente modificada do volume I da obra homônima acima mencionada. Rio de Janeiro, I. Cultura-Nova, 1991 – (NEL-C).



13. Lacan e as Lógicas. Versão em português de artigo já aceito para ser publicado em Cahiers de lectures freudiennes. Rio, setembro de 1992 – (LL).



14. Pequena História da Física Moderna, seus Entraves e Perspectivas. Rio de Janeiro, Ed. Inst. Cultura-Nova, 1993 (xerografado) – (PHF).



15. Projeto de tese: Lógica e Realidade. Rio, abril de 1994 (xerografado) (PLR).

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