A unificação de um campo do saber, na modernidade, é sempre um acontecimento raro e auspicioso. A física, seu saber paradigmático, é também disso o melhor exemplo: está sempre a nos trazer novidades em cima de novidades, mas, quando faz balanço de seus feitos ou ordena sua história, conta como maiores apenas os seus momentos unificadores – a síntese newtoniana das forças que governam planetas rolando pelo céu e na terra maçãs caindo sobre as cabeças; o eletromagnetismo de Clark Maxwell; a redução da termodinâmica à mecânica estatística; a assimilação einsteiniana, primeiro, do tempo e, depois, da massa ao espaço recurvado; a recente síntese das forças eletromagnética e fraca (esta, responsável pela desintegração nuclear); e se anuncia com insistência para muito breve a Teoria da Grande Unificação (GUT) e após, reunindo as quatro forças da natureza, a Teoria de Todas as Coisas (TOE).
Com A Lógica da Diferença – não há como refugar ou recusar-se a ver – Coelho de Sampaio consegue algo que pela profundeza e extensão vem de fato para marcar e ficar: unifica, sob a mesma bandeira, sob um só nome, uma vasta região do pensamento, que se estende da lógica do coração em Pascal ao logos heraclítico resgatado em Heidegger, que vai da “sintaxe” onírica de Freud à lógica do significante de Lacan e ainda incorpora boa parte da parte desviante do planalto das formalidades – da lógica paracompleta ou intuicionista de Brouwer/Heyting à lógica paraconsistente de Newton da Costa.
Devemos observar que isto acontece justamente depois de um largo tempo (praticamente todo o século XX) em que o campo da lógica vinha passando por um intenso processo de diferenciação em conseqüência da quebra do monopólio outrora exercido pela lógica clássica, fenômeno este, sabe-se bem, induzido pela quebra da hegemonia também absoluta ocorrida em região vizinha – a da geometria euclidiana. Se era possível a construção de novas geometrias apenas debilitando ou modificando algum dos postulados de Euclides, por que não se poderia atuar de modo semelhante em relação à velha lógica aristotélica, para deste modo gerar novas lógicas através do enfraquecimento ou suspensão de qualquer um de seus três princípios tradicionais? Desconsiderando-se o princípio do terceiro excluído, gerar-se-iam lógicas paracompletas (também denominadas intuicionistas); ou o princípio da contradição, gerando-se lógicas paraconsistentes; ou o princípio da identidade, gerando-se “lógicas não-identitárias”. E assim de fato se fez, tanto, tão veloz e atabalhoadamente, que tornava-se hoje mais do que necessário um acontecimento de vero peso, uma grande síntese que viesse trazer um pouco de ordem ao mundo destarte convulsionado das lógicas.
A nosso juízo, tão eficazes foram os resultados alcançados por Coelho de Sampaio com sua lógica da diferença, que voltaram a ser nitidamente visíveis os contornos dos velhos continentes lógico-filosóficos: o continente clássico ou formal (de Aristóteles e o dos antigos e novos positivismos), sim, mas igualmente o continente dialético (de Platão, Hegel, Marx, Lukacs), o continente transcendental (de Descartes, Kant, Fichte, Husserl) e, finalmente, o continente simplesmente diferencial (de Pascal, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Foucault, Deleuze, Derrida, Rosset). Como imediata conseqüência, se podia agora facilmente perceber que o mundo lógico tinha lá sua forma piramidal e assim seus limites, mas se podia também constatar que estes, mesmo depois da integração da lógica da diferença, não haviam sido alcançados e, sobretudo, que havia ainda um grande salto lógico avante a ser realizado.
Ora, se é possível um novo modo de pensar (tema para uma nova lógica) é porque há algo de novo digno de ser pensado. Não é verdade que tenhamos chegado ao fim da História. E o que sobremodo importa hoje nesta nossa cínica circunstância: justifica-se mantermos viva a esperança (não é duvidoso, mas certo, que um Deus, bem depressa, nos virá salvar!). Apesar das aparências, da (formig)ação corrosiva dos micros e das espetaculares encenações dos macros poderes, nos é perfeitamente possível fazer emergir algo de realmente novo e de humanamente íntegro neste mundo.
Forçar o reconhecimento da existência em seus plenos direitos da lógica da diferença, parece-nos, teria sido o exclusivo escopo do livro de Coelho de Sampaio. O mais surpreendente, entretanto, – e talvez isto valha também para o autor –, é que só a posteriori, agora, de bem mais alto, isto se nos revela como a tarefa urgente e necessária a que pudéssemos, para além das ideologias, abrir um caminho novo e reto para a utopia.
* Aquiles Côrtes Guimarães é Coordenador da Pós-graduação do IFCS-UFRJ e autor de O tema da consciência na filosofia brasileira e Pequenos estudos de filosofia brasileira.
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