Professor Dr. Aquiles Côrtes Guimarães
Do Departamento de Filosofia da UFRJ
* Prefácio para o livro Filosofia da Cultura de L. S. C. de Sampaio
Depois do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1955-1964) praticamente extingue-se entre nós o interesse em pensar o Brasil. Digo pensá-lo e não “desconstrui-lo”. Primeiro, foi o tempo da “Revolução”, que trouxe o desinteresse pelo pensar. Depois, veio o tempo da “Nova República”, na qual, cada dia que passa, menor se mostra o interesse pelo Brasil. Não me refiro, obviamente, aos que o faziam vindo já de mais longe.
É, pois, com satisfação que registro a ressurgência do que até então fora uma obsessiva preocupação dos mais expressivos intelectuais brasileiros - decifrar o ser e a destinação do Brasil. Referimo-me especificamente a Luiz Sergio Coelho de Sampaio que, com a presente coletânea Filosofia da Cultura, vem reavivar aquela tradição, oferecendo-nos, posso dizê-lo, uma alternativa completamente nova para nossa auto-compreensão.
É interessante assinalar que Sampaio com esta obra está também dando continuidade a uma tradição já bem nossa de buscar na filosofia os meios conceituais para iluminar os caminhos e descaminhos da brasilidade. Tal disposição nasce com a própria filosofia no Brasil, se mantém viva em Tobias Barreto e se solidifica no que se convencionou denominar de culturalismo brasileiro, cuja figura exponencial é Miguel Reale (1).
Dentre as virtudes genéricas deste trabalho não posso deixar de assinalar o vertiginoso encurtamento de famigeradas distâncias: entre o denso e o legível, entre o abstrato e o concreto e, sobretudo, entre o especulativo e o pragmático. Com respeito ao seu objetivo específico - proporcionar uma nova e mais profunda compreensão da problemática cultural brasileira -, destacaria três importantes aspectos: primeiro, o fato da filosofia que lhe serve de base se constituir numa produção própria, radicada, sim, na tradição filosófica ocidental, mas o fazendo de maneira essencialmente crítica e inovadora; segundo, que a reflexão filosófica não se aplica ali, sem mais, à problemática cultural brasileira, sendo justificadamente mediada por uma antropologia filosófica que se completa com uma conseqüente antropologia histórico-cultural; terceiro, o trato da problemática brasileira não se detém, como de costume, na mera compreensão, indo mais além, se aventurando o autor a traçar os lineamentos de uma ação estratégica cultural. Vejamos em detalhes cada uma destes aspectos específicos.
1. Preliminares lógico-filosóficos – ser e pensar para além ciência
O melhor caminho para a compreensão das idéias filosóficas de Sampaio é a epoché para valer - a epoché como um honesto esforço de suspensão de preconceitos e não como flatus vocis, um mero sinal de adesão acadêmica oportuna a uma corrente filosófica de prestígio. Trata-se sobretudo de aceder ao chamamento das coisas e dos acontecimentos como tais. Por isso, embora já tivesse tido a oportunidade de analisar detidamente o pensamento filosófico de Sampaio [2], achei que, ao invés de apenas repetir ou resumir o que havia dito (que, a meu juízo, permanece válido e atual), mais valeria tudo reconsiderar para desta sorte conquistar, visando sobretudo o leitor, um grau superior, sempre possível, de simplicidade e clareza.
Para Sampaio a linha mestra da filosofia ocidental, desde Parmênides, está na postulação de ser e pensar como o mesmo. Por isso, o grande problema da filosofia hoje seria medir-se com a ciência, cuja verdade assumida, sabe-se, é adaequatio, precisamente, a renúncia àquela pretensão. Nestas circunstâncias, ou a filosofia se deixa marginalizar, abdica de sua própria essência, assume-se “pensamento das pequenas causas ou das realidades parciais e a varejo”, ou enfrenta o desafio de pensar de mais alto a ciência, que é o mesmo que compreendê-la em sua motivação desejosa e significação social última. Tudo se resumiria, pois, em se conseguir levar aquela postulação mestra para além dos limites do saber científico (3).
Já se disse, com inteira razão, que, para enxergar mais longe, nada melhor do que subir nos ombros dos gigantes predecessores. Tratando-se de filosofia, no âmbito da Modernidade, que ombros mais altos, além de sempre largos, haveria do que os de Hegel?! Sobretudo, o Hegel da maturidade, da Ciência da Lógica consumada, quando já convicto estava de que sua filosofia (como qualquer outra), precisando dar conta de seu próprio fundamento, teria que ser - antes e mais do que fenomenologia - uma lógica, como tão judiciosamente observa Heidegger [4].
Tudo bastante simples: a referência, justamente por se almejar entre elas a mais alta, seria Hegel; o âmbito mais próprio e inevitável do problema, a lógica; a tarefa, agora evidente, a de se ultrapassar a dialética e alcançar um pensar maior ou mais complexo, capaz de “ultrapensar” a ciência ou, mais precisamente, a lógica clássica formal que, a rigor, sobre a ciência impera. Em síntese: passar da dialética à hiperdialética, no trânsito, subsumindo a lógica clássica formal.
É exatamente aqui que Sampaio consegue ser surpreendentemente óbvio: embora as aparências encaminhassem noutro sentido, a questão primordial não estava em procurar, reta e imediatamente, algo superior ou mais à frente da lógica clássica imperante. Tratava-se sim de recuar, procurar algo menor, algo que fora deixado para trás, oportunamente recalcado, cuja recuperação pudesse levar à re-significação da lógica clássica formal e, a partir dela, de todo o território lógico conhecido. Isto posto, iluminar-se-ia naturalmente um novo território lógico por conquistar. Ora, se fosse mesmo este o caso, o procurado deveria estar por todo canto, todo o tempo presente, porém, por sua própria índole, sempre dissimulado.
Sampaio vai então circunscrever toda uma plêiade de pensadores “desviantes” - Pascal (que jamais cede quanto aos direitos do coração), Kierkegaard (entrincheirado por trás do paradoxo), Nietzsche (apostando no retorno vigoroso do mesmo), Heidegger (à escuta nostálgica do logos heraclítico), Deleuze (surfando entre dobras e diferimentos) e outros - e identificá-los como filósofos desta lógica esquecida, que ele denomina lógica da diferença ou, mais exatamente, lógica da simples diferença. Era ainda esta mesma lógica que operava nos inconscientes que a psicanálise tanto espreitava, que, no dizer de Sampaio, Lacan iria isolar e denominar, também com muita propriedade, lógica do significante [5].
Ora, a simples condição de lógica recalcada revela-a como lógica trágica. A lógica clássica, lógica cínica dominadora, podia ser agora propriamente caracterizada como lógica da diferença reiterada. Se tornava então mais do que evidente que a lógica clássica ou da dupla diferença, de modo necessário e desde sempre, pressupunha a dialética. Daí, porque Platão precede Aristóteles, porque a patrística agostiniana precede a escolástica tomista, porque o pai mítico precede o filho submisso à lei de seus pares tanto quanto à gramática, porque o socialismo científico do Outubro Vermelho teria mesmo que fracassar um dia diante dos desafios da ciência e da técnica, e tantas e tantas outras coisas mais.
Podia-se então dizer com exatidão que a dialética sucedia à lógica da diferença, subsumindo-a em conjunto com a lógica da identidade, assim como a lógica clássica, agora caracterizada como lógica da dupla diferença, sucedia a dialética, subsumindo-a em conjunto com as lógicas por esta já subsumidas. E o que era mais importante: há uma hiperdialética sucedendo a lógica clássica e subsumindo-a junto, inclusive, com a dialética e suas lógicas geradoras. A partir daí vislumbrava-se a verdade de um pensar potente para de fato compreender a ciência e a própria cultura que a sacraliza - a nossa própria Modernidade.
Podemos sumariar as concepções filosóficas de Sampaio [6], dizendo que a lógica deve ser considerada um saber sobre os modos efetivos de pensar e não mera convencionalidade lingüístico-formal, tal como hoje reivindicam os poderes acadêmicos. Com esta concepção, restaura o mundo da lógica conforme esta se apresenta na tradição filosófica.
Duas seriam então as lógicas fundamentais: a lógica da identidade (ou transcendental) e a lógica da diferença, simbolizadas, respectivamente, por I e D. A partir delas, com o concurso da noção de síntese dialética generalizada representada por “ / ” (uma generalização da “intraduzível” aufheben hegeliana), são gerados os nomes de todas as demais lógicas, ditas lógicas compostas: I/D, dialética trinitária, síntese das lógicas da identidade e da diferença; D/D=D/2, lógica da dupla diferença ou clássica, síntese das lógicas da identidade, da diferença e dialética; I/D/D=I/D/2, hiperdialética qüinqüitária, síntese das lógicas da identidade, da diferença, dialética e clássica formal; D/D/D=D/3, lógica da tripla diferença; I/D/D/D=I/D/3 e assim por diante. Cada lógica subsumindo todas as anteriores de que é síntese e, por convenção, também a si mesma.
Sampaio deixa assim definitivamente claro de que maneira a lógica clássica formal (lógica da ciência, D/D=D/2) subsume a dialética hegeliano/marxista (I/D), como a supera ao mesmo tempo que dela herda o poder totalizador. Enquanto a dialética é um pensar sintético da totalidade enquanto tal, a lógica clássica se constitui como uma analítica das totalidades por convenção. Estas considerações formais são essenciais para que se possa dar conta do poder da ciência (hoje, sob a forma de obsessiva informatização/sistematização do mundo) e para a compreensão, em profundidade, das vicissitudes histórico-ideológicas dos últimos quase duzentos anos. Por outro lado, a confrontação da dialética trinitária (I/D) com a hiperdialética qüinqüitária (I/D/D=I/D/2) é fundamental para a compreensão das limitações da filosofia hegeliana e marxista (frente não apenas à crítica científica, mas ao próprio poder fatual da ciência) e, também, para que se vislumbre o caminho para a superação do pensamento único (D/2), que se faz hoje hegemônico.
Reafirma deste modo, seguindo velha tradição, a correspondência estrita entre ser e pensar, só que agora, na ordem lógico qüinqüitário (I/D/2), e não apenas na ordem transcendental (I), como posta por Parmênides (pois o mesmo é ser e pensar) ou dialético trinitário (I/D), como reposta por Hegel (O que é racional é real, e o que é real é racional). Aceita Sampaio a crítica heideggeriana relativa ao afastamento entre ser e pensar desde Platão e sua derivação em ontoteologia, mas recusa confundir “co-pertinência” com estrita correspondência. O afastamento era inexorável - por isso pode ele hoje bem parametrizar a história da filosofia (história do esquecimento da questão do ser). O estado de “co-pertinência” entre ser e pensar só pode ser de novo alcançado como resultante de uma visada transcendente. Esta última atitude distinguiria justamente as filosofias da esperança, a que ele diz se filiar, das demais filosofias - trágicas ou nostálgicas, cínicas ou demissionárias.
2. Passando pela antropologia filosófica e, daí, a uma antropologia cultural de índole histórica hiperdialética
Seguindo as indicações de Sampaio, pode-se afirmar que o desvelamento/ordenação do universo lógico (ou seja, dos modos efetivos de pensar), associada à postulação, em todas as instâncias, da “mesmidade” de ser e pensar, implica uma completa re-estruturação do universo dos existentes, onde então se pode repor a questão do estatuto do ser do homem, que a ciência vinha progressivamente reduzindo à pura materialidade calculada (ciência bioquímica) e esta a Nada adequadamente recurvado (ciência cosmológica atual no que ela deriva da Relatividade Geral) [7].
Neste universo onto-lógico desdobrado nada existe de fato superior à hiperdialética qüinqüitária (I/D/D= I/D/2), e é precisamente este o nível que se deve atribuir ao ser humano e à cultura, o necessário produto e meio correlato desta sua capacidade operatória. Isto posto, afirma Sampaio:
... reverte-se o processo de “degradação do homem” promovido pela modernidade; restabelece-se a posição pinacular do homem no universo que lhe vinha sendo repetidamente roubada pelos telescópios - das lunetas ao Hubble -, pelo darwinismo e mais recentemente pelas estruturas por si agentes e falantes. [8]
A velha razão suficiente leibniziana que responde à questão ontológica (no caso: por quê existe a cultura e não tão apenas nada de cultura, ou seja, natureza?), ganha aqui uma resposta bem precisa, aliás, em plena consonância com o que está posto pela moderna antropologia estrutural. A passagem da natureza - representada pelos animais superiores dotados de sistema nervoso central (os cordados), capazes portanto de operar com símbolos convencionais (I/D) - à cultura (I/D/D) se fez pela invenção/incorporação de uma segunda diferença (D) - a diferença clânica, dito em termos antropológicos.
Não se pode precisar a partir de quando a questão do ser do homem veio referenciar-se ao ser animal, mas assim o foi desde os tempos de Heráclito e com maior certeza nos de Aristóteles. E, como era de se esperar, a diferença que os separava foi considerada como de natureza lógica: o homem é o animal habitado pelo logos.
O único erro aí cometido teria sido fazer do logos uma diferença substancial, que vinha por si só caracterizar o ser humano e não para se articular e/ou ampliar características e potencialidades operatórias de algum modo semelhantes pré-existentes. Tratava-se de uma concepção inconsistente, dado que o logos, como capacidade essencialmente analítica não podia caracterizar o homem em sua totalidade ou “maximalidade”. Se assim fosse, com o logos, o homem estaria ganhando de um lado e perdendo de outro, e até muito mais, pois perdia em termos de integridade e auto-determinação, capacidades sintéticas já reconhecidas como operantes no reino animal superior. Inaceitável.
O logos poderia se constituir deveras numa diferença especificamente humana, desde que viesse para se compor com características operatórias animais similares pré-existentes e de certo modo re-produzindo-as em nível operatório superior. O logos ampliava a capacidade lógico-analítica do homem, a rigor, a duplicava ou reiterava, sem prejuízo, entretanto, do seu ser identitário. Identifique-se o logos com a razão (a)colhedora heideggeriana (D) e/ou, já a posteriori articulado, como razão aristotélica (D/D), o fato é que, habitado pelo logos, o homem podia operar de modo duplamente lógico-diferencial (racionalmete, dir-se-ia agora). Do ponto de vista instrumental ou objetivamente operatório o homem é sem dúvida ser racional, porém, existencial ou subjetivamente operatório, ao preservar sua capacidade lógico-identitária herdada da animalidade superior, seu estatuto lógico tem que ser na verdade lógico qüinqüitário ou hiperdialético.
Precisamente aproveitando-se deste equívoco foi que o pensamento cristão pode realizar o prodígio de transformar a diferença que diferenciava numa identidade. A passagem do animal ao homem não se devia mais a algo da ordem lógica da diferença, mas sim da identidade - sopro, consciência, liberdade, alma, espírito etc. Não se apercebiam que isto era, ao mesmo tempo, negar “animalidade” aos animais (como, mais tarde, o fizeram em relação aos negros escravos e hesitaram não fazê-lo em relação aos índios).
Observa Sampaio que quando Levy-Bruhl coloca o problema da vigência de uma mentalidade pré-lógica entre os povos primitivos em contraposição a um pensamento verdadeiramente lógico dos povos modernos, ou seja, se pergunta se os primitivos têm ou não lógica (clássica formal), o importante não está na resposta que viria dar, mas no fato de estar repondo a questão em seus devidos termos, isto é, lógico-diferenciais, tal como o haviam feito os gregos [9]. Apenas isto entretanto não basta, nem mesmo depois de especificada a diferença clânica, pois continuaríamos insistindo perigosamente no mesmo equívoco grego. E é precisamente neste ponto que se deve retificar o pensamento estruturalista moderno, restituindo ao homem a integridade lógica (I) e, por conseqüência, a historicidade dialética I/D), para daí então alcançar, mediante uma segunda diferença, a historicidade hiperdialética (I/D/D). Veja-se como se queira: estar-se-ia assim conferindo, indiferentemente, historicidade (I/D) à antropologia estrutural lévi-straussiana (D); ou corporeidade libidinal (D) ao historicismo absoluto de Hegel (I/D); ou mesmo profundeza cultural (D) ao historicismo materialista de Marx (I/D).
Para a antropologia filosófica de Sampaio bastaria dizer que o animal superior opera de modo dialético trinitário (I/D) e o homem, de modo hiperdialético qüinqüitário (I/D/D). A diferença clânica, que permite a definição de regras de proibição de incesto em paralelo à imposição da exogamia, seria um dentre muitos modos de manifestação - privilegiado, é verdade - daquela produção “genea-lógica”. Esta se atualizaria ainda doutros modos. A sexualidade humana, por exemplo, passa a ser definida como diagonal de uma estrutura lógica quadripolar {I, D, I/D, D/2}: o par {I e D/2} representando o masculino e o par {I/D e D}, o feminino, em contraste com a bipolaridade {I e D} animal macho/fêmea. Masculino/feminino são assim os dois modos possíveis de realização do ser hiperdialético (I/D/2), pois, tanto (I) / (D/2) quanto (I/D) / (D) são iguais a I/D/D=I/D/2. Estruturações semelhantes vigeriam para as línguas naturais, para a moderna organização racional do trabalho, para as vestes e pinturas corporais consideradas como sendo uma terceira pele [10], e certamente, muito mais.
Segundo ainda Sampaio entre as grandes tarefas da antropologia filosófica (ou filosofia da cultura) estaria o empenho na decifração da significação cósmica e religiosa do homem.
Circula hoje a idéia de um princípio antrópico [11] postulando a existência de uma correspondência constitutiva entre o cosmos e o homem. O princípio baseia-se na constatação de que o curso do big bang, que depois de quinze bilhões de anos levou à emergência da espécie humana, está em estreita dependência da precisão dos valores de um pequeno conjunto de constantes físicas universais. Na versão fraca do princípio, uma feliz coincidência, na versão forte, uma prova de que aquelas constantes teriam sido “intencional e convenientemente ajustadas”. Sampaio acha que isto não nos deve consolar, não importa a versão, porque na verdade aí se revela mais uma vez a pré-potência do pensar científico, pois, segundo o princípio, não há ascensão, mas sim o descenso do homem ao nível dos entes científicos. Ele aceita a postulação de um princípio que guarde a inspiração do original, porém, exatamente no sentido inverso:
... ao invés do super-homem, o super-cosmos elevado à altura do homem logicamente à sua espera, dando alma a uma nova versão - nem forte, nem fraca, mas significante - do princípio antrópico [12].
A significação religiosa do homem, vale dizer, o sentido de sua existência frente ao Absoluto, é pormenorizadamente tratada em A superação das idolatrias - a religiosidade na cultura nova lógico-qüinqüitária, onde Sampaio afirma:
Quanto à significação religiosa, cremos que nada há por enquanto de relevante, estando nós ainda sob o impacto do anúncio da “morte de Deus”. Somos de opinião, entretanto, que com o declínio da cultura científica moderna esta questão recuperará o seu interesse maior. Os caminhos para tanto pressupõem, entrementes, uma renovação profunda de nossas concepções onto-lógicas. [13]
A conciliação entre a tese da equivalência de todos os homens no que lhes é essencial e distintivo - seu nível lógico operatório - e a historicidade das culturas que se revela, dentre outras maneiras, na variação temporal de seu vigor criativo, na enorme disparidade de poder de determinação de uma sobre outra, é resolvida por Sampaio concebendo a história humana como história do insistente (mas não monotônico) auto-desvelamento do seu próprio ser lógico-qüinqüitário [14].
A história do homem seria assim a história da cultura, processo hiperdialético de desvelamento do seu próprio modo de ser lógico. O desvelamento de uma lógica implica necessariamente que dela se alcance uma representação simbólica objetiva. Começa-se com as culturas tribais de caçadores/coletores do paleolítico, pré-I (uma proto-identidade que ainda se ignora) seguem-se as culturas neolíticas ou imperiais antigas de base agrícola, pré-D (uma proto-diferença). Depois vêm as culturas propriamente lógicas: judaica, do Deus único, I; greco-romana, prometéica, D; cristã patrística trinitária I/D. Hoje, domina a cultura moderna, científica, D/2. Estas formam a seqüência das culturas nodais, mas a própria complexidade do processo hiperdialético permite uma série de tipos não nodais: anômalas, mistas (de que seríamos um bom exemplo), de transição etc. A religião, em cada cultura, tem por essência a sacralização e guarda de seu núcleo lógico invariante.
A cultura moderna está associada à ciência e à lógica clássica formal que a governa. A visão ideológica da Modernidade não tem a menor preocupação em fazer a crítica da ciência - não há quem não esteja a seu favor -; ela se concentra exclusivamente sobre a questão de quem deva ser o sujeito da ciência: para o paradigma anglo-saxão, trata-se do sujeito liberal (I); para a esquerda, do sujeito coletivo ou comunitário (I/D); para a direita, do sujeito inconsciente cultural, romântico, telúrico ou libidinal (D). Esquerda e direita, como demonstrado pela História, nada podem contra a Modernidade, pois, a rigor, são seus próprios modos “desviantes”, modos simétricos de um delirante estado desejado de perfeição. A esquerda, lutando pelo perfeição ética (I/D); a direita, pela perfeição estética (D). No entanto, a Modernidade só será superada por uma cultura nova, na linhagem das culturas lógicas identitárias (culturas do tempo, para Paul Tillich, culturas espirituais, para Toynbee) [15] enfim, uma nova utopia em seu justo sentido.
A efetividade da crítica e dos esforços para a superação da Modernidade exige portanto sua prévia re-historização, a única maneira de se conseguir iluminar o horizonte de sua superação possível. A re-historicização da Modernidade é para Sampaio uma condição sin ne qua non para hoje pensar (e agir) subversivamente.
Para se alcançar uma mais exata compreensão da dinâmica cultural, Sampaio propõe que se correlacione uma cultura não só a uma lógica manifestamente assumida (oficial ou sacralizada), mas também à lógica que ela supera e recalca, bem como à lógica da cultura que a irá suceder.
O ser correlato à lógica recalcada acaba se transformando no objeto de desejo da cultura de referência, que busca sem descanso recuperá-lo, porém, sob “forma” ou “vestes” sacralizadas, isto é, pensada por sua lógica oficial. Segundo Sampaio estaria aí identificado:
... o poderoso “motor” oculto das grandes realizações humanas, ou seja, o desejo da cultura. Isto nos faz compreender, afinal, como as culturas, através de um processo de reiteradas substituições, sublimam-se na produção de tantas e tantas riquezas em termos de costumes, instituições, conhecimentos, técnicas e múltiplas artes. [16]
Esta concepção parece ser de grande importância teórica na medida em que o reconhecimento de um desejo social, similar ao desejo inconsciente pessoal, pode enfim abrir novos caminhos para uma melhor compreensão da efetiva articulação entre ser-social e ser-pessoal.
De outro lado, fica a lógica da cultura que irá suceder à cultura de referência, que por isso irá se constituir em lógica de seu permanente pesadelo. Ao sentir-se ameaçada, toda cultura finge já ser ou incorporar as virtudes daquela que a ameaça e esta, para superá-la, terá que necessariamente desmascará-la por este estratagema. Como diz Sampaio:
Toda cultura, mais intensamente quanto mais chegada à maturidade, simula ou finge ser o que ainda virá, que, convenhamos, é o melhor que poderia mesmo fazer para embaraçar o curso do processo hiperdialético da História. [17]
Acredito que, à primeira vista, não haja quem não desconfie que um tal esquematismo, assim tão drástico, seja capaz de dar conta das passagens críticas do processo histórico cultural. Até o autor, de modo confesso, não se exclui desta perplexidade, porém, como encontrar um bom contra-exemplo para pô-la em cheque? Em contrapartida os exemplos favoráveis não faltam, como o da cultura cristã trinitária. Como cultura dialético-trinitária (I/D), seu real desejo será da ordem da lógica que a antecede, lógica da diferença (D), ou seja, o corpo, mas sob a “forma” incorruptível ou espiritualizada (I/D). Tal desejo encontra precisamente na arte sua melhor expressão metafórica, fazendo com que ela, nesta cultura, assuma um papel de excepcional destaque. A propósito disto, Sampaio chama a nossa atenção para a grande quantidade por aí de “museus abarrotados de arte sacra” cristã.
Depois, à vista da aproximação da era da ciência, se irá ver a cultura medieval cristã antecipar-se fingindo-se já Moderna, racional, escolástica, enfim, não mais platônico-agostiniana (I/D), mas aristotélico-tomista (D/D).
Mais importante do que tudo, na circunstância, seria que o esquema não falhasse na compreensão da Modernidade, mormente em seu momento atual. A impressão é que melhor não se poderia pretender. Sampaio identifica a física como o cerne da Modernidade em razão de sua obsessiva pretensão de medir (D/D) o mundo tido como simples manifestações do uno-trino (I/D). Isto nada mais é do que querer ver o mundo reduzido a apenas três variáveis fundamentais - tempo, espaço e matéria (por isso, são bastantes os sistemas de medidas, cgs, mks, etc). A partir daí, chega-se a uma compreensão da história da física de inexcedível clareza [18]. Não se pode por isso mesmo relaxar quanto à observação dos sinais de vigor da física, que seriam os indicadores privilegiados do real estado de saúde da Modernidade.
Por outro lado, seria preciso observar as manobras de fingimento que denunciam o grau de temor da Modernidade em relação ao seu futuro. Aí, então, os acontecimentos são por demais claros e “auspiciosos”:
Na TV e por todo canto, todos os dias, a boa nova: os prodígios da biopirotecnia, a promessa do homem quimicamente puro e sem defeitos de usura ou de fabricação - a vida eterna, já. Como sempre, em última instância, se assistirá à reação desesperada: a ordem virá para a degola dos recém nascidos. Ou será que, biblicamente instruídos, já não se anteciparam financiando programas de esterilização em massa?! [19]
Como recusar tantas e tamanhas evidências?! Para Sampaio seria esta a hora de agir, mas com toda a prudência, sem jamais esquecer ou menosprezar as grandes lições da História (da cultura).
3. As opções culturais brasileiras – luxo ou originalidade (e seus riscos)
Existe um quase consenso acerca de que o Brasil ocuparia uma posição de marginalidade em relação à Modernidade, o que justificaria os seus ingentes e continuados esforços para superar tal situação, tida como de atraso. Isto traz implícito que teríamos mesmo uma só destinação - alcançar o atual paradigma social anglo-saxão. Esta seria nossa razão de ser histórica, tal como interpretada pelas elites políticas e intelectuais da nação.
Sampaio não nega a condição de marginalidade nem o mal-estar daí decorrente, mas desconfia da natureza que em geral se lhe atribui. Parece-lhe paradoxal que uma nação nascida com a própria Modernidade possa, sem mais, ter problemas crônicos de nela ingressar. Ademais, aquela condição marginal tem sido diagnosticada como a conseqüência de um persistente dualismo: Brasil moderno/Brasil arcaico, Brasil-Bélgica/ Brasil-Índia, etc. etc. sempre com a mesma implícita conotação econômica. Ele acredita que dualismo há, mas bem outra sua natureza: ele seria mais cultural do que econômico, menos retrospectivo do que propriamente prospectivo. Haveria sim dois brasis, um imerso na Modernidade, outro que a ela se recusa, como se reservando para algo maior ainda por se realizar [20].
Já houve um grande esforço para se chegar a uma interpretação ideológica da marginalidade brasileira e Sampaio debita seu fracasso a causas que lhe são imanentes. As ideologias têm de comum o propósito de apenas substituir o sujeito individualista sujeitado à ciência por um outro: a esquerda, pelo sujeito coletivo, a direita, pelo sujeito romântico ou libidinal, o que no fundo traduz idêntico desejo por um capitalismo perfeito. E chama a atenção que nas circunstâncias atuais, para evitar maiores riscos, a crítica ideológica é o que mais pode desejar o pensamento único. Quem sabe, seus beneficiários não se disporiam até a ajudar (financeiramente, que é sua especialidade) os seus velhos inimigos para que por aí fiquem vagando impotentes, mas ocupando lugar?!
Jamais houve ou poderia ter havido saída lateral, fosse à esquerda, fosse à direita. A única saída viável estaria em investir numa crítica da cultura capaz de desbloquear o horizonte histórico, relativizar a Modernidade permitindo que a vista alcance mais além. É também por isso que Sampaio acha insuficiente a crítica frankfurtiana, na medida em que ela não admite qualquer possibilidade de que se possa transcender a cultura em que se vive, o que leva a uma angustiosa inação [21].
Como se viu anteriormente, uma concepção da história da cultura como auto-desvelamento do ser lógico do homem é o bastante para re-historicizar a Modernidade e iluminar o horizonte de sua possível superação. Assim, como para além da lógica clássica existe uma lógica hiperdialética qüinqüitária, para além da Modernidade científica e “mercado-lógica” existe a esperança, esperança bem fundada de uma nova cultura. Com o descortino dos mecanismos lógicos da dinâmica cultural em Desejo, Fingimento e Superação na História da Cultura [22], todos nós estaríamos capacitados a de pronto perscrutar os sinais de fraqueza e declínio, bem como as oportunidades de ação cultural que ao mesmo tempo acelerem e minimizem os custos (historicamente enormes) do processo de superação da Modernidade.
Esboçando as características mais marcantes da cultura nova, Sampaio, mesmo que não seja esta sua intenção, faz as vezes de sedutor. Ele mostra que dentre elas estariam a re-significação cósmica [23] e religiosa [24] do homem e a completa renovação das relações indivíduo/sociedade sob os aspectos políticos, econômicos e culturais.
Volta então à Historia do Brasil para compreender que sua marginalidade é também de certo modo resistência propositada. Conforme Sampaio, o Brasil se caracteriza pela confluência de um amplo leque de culturas, que se por um lado, dificulta a sua modernização, por outro lado, constitui a base necessária à edificação de uma cultura nova realmente após moderna. E que portanto o Brasil não tem uma só destinação possível, mas duas: ou o luxo ou a originalidade. Pode por isso continuar insistindo, ainda que um pouco tardiamente, em entrar para o “Primeiro Mundo”, mas pode alternativamente lançar-se na grande aventura da construção de um novo modo de ser pessoal, coletivo e cósmico, vale dizer, a fazer nascer no mundo uma nova cultura.
Sugere Sampaio que o Brasil se constitui, talvez, no único perigo real para a cultura dominante e também por isso, para os próprios brasileiros; deduz-se daí que a opção pela originalidade não está isenta de grandes riscos. A cultura dominante, mostram insistentemente todos os meios de comunicação de massa, em especial, a TV, já hoje finge ser sua própria posteridade, finge-se pós-modernidade, e tenta a todos seduzir ofertando a vida eterna aqui mesmo na Terra através dos poderes cada dia maiores da bio(piro)tecnologia. E, quando desesperada, ela irá, como nos instrui o Velho e o Novo Testamento, ordenar a degola dos nossos terroristas recém-nascidos onde, a seus cálculos, estes possam ser para ela mais perigosos. Mas de qualquer modo, a seu ver, a causa vale a pena.
Por tudo isso, deve-se desenvolver em e para o Brasil uma estratégia cultural para sobreviver até à chegada da melhor hora, que seria aquela do esmorecimento do vigor criativo dos laboratórios científicos centrais. No centro desta estratégia, ao que pudemos perceber, estaria a defesa ativa da língua (pelo uso, tanto denotativo e preciso, quanto ao limite expressivo) e da nossa música em todas as suas variantes. No entanto, fica um sério problema que ele identifica, mas não o vimos aportar a solução: o ódio das elites ao povão - a traição das elites políticas e a demissão das elites culturais da nação.
NOTAS
Depois do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1955-1964) praticamente extingue-se entre nós o interesse em pensar o Brasil. Digo pensá-lo e não “desconstrui-lo”. Primeiro, foi o tempo da “Revolução”, que trouxe o desinteresse pelo pensar. Depois, veio o tempo da “Nova República”, na qual, cada dia que passa, menor se mostra o interesse pelo Brasil. Não me refiro, obviamente, aos que o faziam vindo já de mais longe.
É, pois, com satisfação que registro a ressurgência do que até então fora uma obsessiva preocupação dos mais expressivos intelectuais brasileiros - decifrar o ser e a destinação do Brasil. Referimo-me especificamente a Luiz Sergio Coelho de Sampaio que, com a presente coletânea Filosofia da Cultura, vem reavivar aquela tradição, oferecendo-nos, posso dizê-lo, uma alternativa completamente nova para nossa auto-compreensão.
É interessante assinalar que Sampaio com esta obra está também dando continuidade a uma tradição já bem nossa de buscar na filosofia os meios conceituais para iluminar os caminhos e descaminhos da brasilidade. Tal disposição nasce com a própria filosofia no Brasil, se mantém viva em Tobias Barreto e se solidifica no que se convencionou denominar de culturalismo brasileiro, cuja figura exponencial é Miguel Reale (1).
Dentre as virtudes genéricas deste trabalho não posso deixar de assinalar o vertiginoso encurtamento de famigeradas distâncias: entre o denso e o legível, entre o abstrato e o concreto e, sobretudo, entre o especulativo e o pragmático. Com respeito ao seu objetivo específico - proporcionar uma nova e mais profunda compreensão da problemática cultural brasileira -, destacaria três importantes aspectos: primeiro, o fato da filosofia que lhe serve de base se constituir numa produção própria, radicada, sim, na tradição filosófica ocidental, mas o fazendo de maneira essencialmente crítica e inovadora; segundo, que a reflexão filosófica não se aplica ali, sem mais, à problemática cultural brasileira, sendo justificadamente mediada por uma antropologia filosófica que se completa com uma conseqüente antropologia histórico-cultural; terceiro, o trato da problemática brasileira não se detém, como de costume, na mera compreensão, indo mais além, se aventurando o autor a traçar os lineamentos de uma ação estratégica cultural. Vejamos em detalhes cada uma destes aspectos específicos.
1. Preliminares lógico-filosóficos – ser e pensar para além ciência
O melhor caminho para a compreensão das idéias filosóficas de Sampaio é a epoché para valer - a epoché como um honesto esforço de suspensão de preconceitos e não como flatus vocis, um mero sinal de adesão acadêmica oportuna a uma corrente filosófica de prestígio. Trata-se sobretudo de aceder ao chamamento das coisas e dos acontecimentos como tais. Por isso, embora já tivesse tido a oportunidade de analisar detidamente o pensamento filosófico de Sampaio [2], achei que, ao invés de apenas repetir ou resumir o que havia dito (que, a meu juízo, permanece válido e atual), mais valeria tudo reconsiderar para desta sorte conquistar, visando sobretudo o leitor, um grau superior, sempre possível, de simplicidade e clareza.
Para Sampaio a linha mestra da filosofia ocidental, desde Parmênides, está na postulação de ser e pensar como o mesmo. Por isso, o grande problema da filosofia hoje seria medir-se com a ciência, cuja verdade assumida, sabe-se, é adaequatio, precisamente, a renúncia àquela pretensão. Nestas circunstâncias, ou a filosofia se deixa marginalizar, abdica de sua própria essência, assume-se “pensamento das pequenas causas ou das realidades parciais e a varejo”, ou enfrenta o desafio de pensar de mais alto a ciência, que é o mesmo que compreendê-la em sua motivação desejosa e significação social última. Tudo se resumiria, pois, em se conseguir levar aquela postulação mestra para além dos limites do saber científico (3).
Já se disse, com inteira razão, que, para enxergar mais longe, nada melhor do que subir nos ombros dos gigantes predecessores. Tratando-se de filosofia, no âmbito da Modernidade, que ombros mais altos, além de sempre largos, haveria do que os de Hegel?! Sobretudo, o Hegel da maturidade, da Ciência da Lógica consumada, quando já convicto estava de que sua filosofia (como qualquer outra), precisando dar conta de seu próprio fundamento, teria que ser - antes e mais do que fenomenologia - uma lógica, como tão judiciosamente observa Heidegger [4].
Tudo bastante simples: a referência, justamente por se almejar entre elas a mais alta, seria Hegel; o âmbito mais próprio e inevitável do problema, a lógica; a tarefa, agora evidente, a de se ultrapassar a dialética e alcançar um pensar maior ou mais complexo, capaz de “ultrapensar” a ciência ou, mais precisamente, a lógica clássica formal que, a rigor, sobre a ciência impera. Em síntese: passar da dialética à hiperdialética, no trânsito, subsumindo a lógica clássica formal.
É exatamente aqui que Sampaio consegue ser surpreendentemente óbvio: embora as aparências encaminhassem noutro sentido, a questão primordial não estava em procurar, reta e imediatamente, algo superior ou mais à frente da lógica clássica imperante. Tratava-se sim de recuar, procurar algo menor, algo que fora deixado para trás, oportunamente recalcado, cuja recuperação pudesse levar à re-significação da lógica clássica formal e, a partir dela, de todo o território lógico conhecido. Isto posto, iluminar-se-ia naturalmente um novo território lógico por conquistar. Ora, se fosse mesmo este o caso, o procurado deveria estar por todo canto, todo o tempo presente, porém, por sua própria índole, sempre dissimulado.
Sampaio vai então circunscrever toda uma plêiade de pensadores “desviantes” - Pascal (que jamais cede quanto aos direitos do coração), Kierkegaard (entrincheirado por trás do paradoxo), Nietzsche (apostando no retorno vigoroso do mesmo), Heidegger (à escuta nostálgica do logos heraclítico), Deleuze (surfando entre dobras e diferimentos) e outros - e identificá-los como filósofos desta lógica esquecida, que ele denomina lógica da diferença ou, mais exatamente, lógica da simples diferença. Era ainda esta mesma lógica que operava nos inconscientes que a psicanálise tanto espreitava, que, no dizer de Sampaio, Lacan iria isolar e denominar, também com muita propriedade, lógica do significante [5].
Ora, a simples condição de lógica recalcada revela-a como lógica trágica. A lógica clássica, lógica cínica dominadora, podia ser agora propriamente caracterizada como lógica da diferença reiterada. Se tornava então mais do que evidente que a lógica clássica ou da dupla diferença, de modo necessário e desde sempre, pressupunha a dialética. Daí, porque Platão precede Aristóteles, porque a patrística agostiniana precede a escolástica tomista, porque o pai mítico precede o filho submisso à lei de seus pares tanto quanto à gramática, porque o socialismo científico do Outubro Vermelho teria mesmo que fracassar um dia diante dos desafios da ciência e da técnica, e tantas e tantas outras coisas mais.
Podia-se então dizer com exatidão que a dialética sucedia à lógica da diferença, subsumindo-a em conjunto com a lógica da identidade, assim como a lógica clássica, agora caracterizada como lógica da dupla diferença, sucedia a dialética, subsumindo-a em conjunto com as lógicas por esta já subsumidas. E o que era mais importante: há uma hiperdialética sucedendo a lógica clássica e subsumindo-a junto, inclusive, com a dialética e suas lógicas geradoras. A partir daí vislumbrava-se a verdade de um pensar potente para de fato compreender a ciência e a própria cultura que a sacraliza - a nossa própria Modernidade.
Podemos sumariar as concepções filosóficas de Sampaio [6], dizendo que a lógica deve ser considerada um saber sobre os modos efetivos de pensar e não mera convencionalidade lingüístico-formal, tal como hoje reivindicam os poderes acadêmicos. Com esta concepção, restaura o mundo da lógica conforme esta se apresenta na tradição filosófica.
Duas seriam então as lógicas fundamentais: a lógica da identidade (ou transcendental) e a lógica da diferença, simbolizadas, respectivamente, por I e D. A partir delas, com o concurso da noção de síntese dialética generalizada representada por “ / ” (uma generalização da “intraduzível” aufheben hegeliana), são gerados os nomes de todas as demais lógicas, ditas lógicas compostas: I/D, dialética trinitária, síntese das lógicas da identidade e da diferença; D/D=D/2, lógica da dupla diferença ou clássica, síntese das lógicas da identidade, da diferença e dialética; I/D/D=I/D/2, hiperdialética qüinqüitária, síntese das lógicas da identidade, da diferença, dialética e clássica formal; D/D/D=D/3, lógica da tripla diferença; I/D/D/D=I/D/3 e assim por diante. Cada lógica subsumindo todas as anteriores de que é síntese e, por convenção, também a si mesma.
Sampaio deixa assim definitivamente claro de que maneira a lógica clássica formal (lógica da ciência, D/D=D/2) subsume a dialética hegeliano/marxista (I/D), como a supera ao mesmo tempo que dela herda o poder totalizador. Enquanto a dialética é um pensar sintético da totalidade enquanto tal, a lógica clássica se constitui como uma analítica das totalidades por convenção. Estas considerações formais são essenciais para que se possa dar conta do poder da ciência (hoje, sob a forma de obsessiva informatização/sistematização do mundo) e para a compreensão, em profundidade, das vicissitudes histórico-ideológicas dos últimos quase duzentos anos. Por outro lado, a confrontação da dialética trinitária (I/D) com a hiperdialética qüinqüitária (I/D/D=I/D/2) é fundamental para a compreensão das limitações da filosofia hegeliana e marxista (frente não apenas à crítica científica, mas ao próprio poder fatual da ciência) e, também, para que se vislumbre o caminho para a superação do pensamento único (D/2), que se faz hoje hegemônico.
Reafirma deste modo, seguindo velha tradição, a correspondência estrita entre ser e pensar, só que agora, na ordem lógico qüinqüitário (I/D/2), e não apenas na ordem transcendental (I), como posta por Parmênides (pois o mesmo é ser e pensar) ou dialético trinitário (I/D), como reposta por Hegel (O que é racional é real, e o que é real é racional). Aceita Sampaio a crítica heideggeriana relativa ao afastamento entre ser e pensar desde Platão e sua derivação em ontoteologia, mas recusa confundir “co-pertinência” com estrita correspondência. O afastamento era inexorável - por isso pode ele hoje bem parametrizar a história da filosofia (história do esquecimento da questão do ser). O estado de “co-pertinência” entre ser e pensar só pode ser de novo alcançado como resultante de uma visada transcendente. Esta última atitude distinguiria justamente as filosofias da esperança, a que ele diz se filiar, das demais filosofias - trágicas ou nostálgicas, cínicas ou demissionárias.
2. Passando pela antropologia filosófica e, daí, a uma antropologia cultural de índole histórica hiperdialética
Seguindo as indicações de Sampaio, pode-se afirmar que o desvelamento/ordenação do universo lógico (ou seja, dos modos efetivos de pensar), associada à postulação, em todas as instâncias, da “mesmidade” de ser e pensar, implica uma completa re-estruturação do universo dos existentes, onde então se pode repor a questão do estatuto do ser do homem, que a ciência vinha progressivamente reduzindo à pura materialidade calculada (ciência bioquímica) e esta a Nada adequadamente recurvado (ciência cosmológica atual no que ela deriva da Relatividade Geral) [7].
Neste universo onto-lógico desdobrado nada existe de fato superior à hiperdialética qüinqüitária (I/D/D= I/D/2), e é precisamente este o nível que se deve atribuir ao ser humano e à cultura, o necessário produto e meio correlato desta sua capacidade operatória. Isto posto, afirma Sampaio:
... reverte-se o processo de “degradação do homem” promovido pela modernidade; restabelece-se a posição pinacular do homem no universo que lhe vinha sendo repetidamente roubada pelos telescópios - das lunetas ao Hubble -, pelo darwinismo e mais recentemente pelas estruturas por si agentes e falantes. [8]
A velha razão suficiente leibniziana que responde à questão ontológica (no caso: por quê existe a cultura e não tão apenas nada de cultura, ou seja, natureza?), ganha aqui uma resposta bem precisa, aliás, em plena consonância com o que está posto pela moderna antropologia estrutural. A passagem da natureza - representada pelos animais superiores dotados de sistema nervoso central (os cordados), capazes portanto de operar com símbolos convencionais (I/D) - à cultura (I/D/D) se fez pela invenção/incorporação de uma segunda diferença (D) - a diferença clânica, dito em termos antropológicos.
Não se pode precisar a partir de quando a questão do ser do homem veio referenciar-se ao ser animal, mas assim o foi desde os tempos de Heráclito e com maior certeza nos de Aristóteles. E, como era de se esperar, a diferença que os separava foi considerada como de natureza lógica: o homem é o animal habitado pelo logos.
O único erro aí cometido teria sido fazer do logos uma diferença substancial, que vinha por si só caracterizar o ser humano e não para se articular e/ou ampliar características e potencialidades operatórias de algum modo semelhantes pré-existentes. Tratava-se de uma concepção inconsistente, dado que o logos, como capacidade essencialmente analítica não podia caracterizar o homem em sua totalidade ou “maximalidade”. Se assim fosse, com o logos, o homem estaria ganhando de um lado e perdendo de outro, e até muito mais, pois perdia em termos de integridade e auto-determinação, capacidades sintéticas já reconhecidas como operantes no reino animal superior. Inaceitável.
O logos poderia se constituir deveras numa diferença especificamente humana, desde que viesse para se compor com características operatórias animais similares pré-existentes e de certo modo re-produzindo-as em nível operatório superior. O logos ampliava a capacidade lógico-analítica do homem, a rigor, a duplicava ou reiterava, sem prejuízo, entretanto, do seu ser identitário. Identifique-se o logos com a razão (a)colhedora heideggeriana (D) e/ou, já a posteriori articulado, como razão aristotélica (D/D), o fato é que, habitado pelo logos, o homem podia operar de modo duplamente lógico-diferencial (racionalmete, dir-se-ia agora). Do ponto de vista instrumental ou objetivamente operatório o homem é sem dúvida ser racional, porém, existencial ou subjetivamente operatório, ao preservar sua capacidade lógico-identitária herdada da animalidade superior, seu estatuto lógico tem que ser na verdade lógico qüinqüitário ou hiperdialético.
Precisamente aproveitando-se deste equívoco foi que o pensamento cristão pode realizar o prodígio de transformar a diferença que diferenciava numa identidade. A passagem do animal ao homem não se devia mais a algo da ordem lógica da diferença, mas sim da identidade - sopro, consciência, liberdade, alma, espírito etc. Não se apercebiam que isto era, ao mesmo tempo, negar “animalidade” aos animais (como, mais tarde, o fizeram em relação aos negros escravos e hesitaram não fazê-lo em relação aos índios).
Observa Sampaio que quando Levy-Bruhl coloca o problema da vigência de uma mentalidade pré-lógica entre os povos primitivos em contraposição a um pensamento verdadeiramente lógico dos povos modernos, ou seja, se pergunta se os primitivos têm ou não lógica (clássica formal), o importante não está na resposta que viria dar, mas no fato de estar repondo a questão em seus devidos termos, isto é, lógico-diferenciais, tal como o haviam feito os gregos [9]. Apenas isto entretanto não basta, nem mesmo depois de especificada a diferença clânica, pois continuaríamos insistindo perigosamente no mesmo equívoco grego. E é precisamente neste ponto que se deve retificar o pensamento estruturalista moderno, restituindo ao homem a integridade lógica (I) e, por conseqüência, a historicidade dialética I/D), para daí então alcançar, mediante uma segunda diferença, a historicidade hiperdialética (I/D/D). Veja-se como se queira: estar-se-ia assim conferindo, indiferentemente, historicidade (I/D) à antropologia estrutural lévi-straussiana (D); ou corporeidade libidinal (D) ao historicismo absoluto de Hegel (I/D); ou mesmo profundeza cultural (D) ao historicismo materialista de Marx (I/D).
Para a antropologia filosófica de Sampaio bastaria dizer que o animal superior opera de modo dialético trinitário (I/D) e o homem, de modo hiperdialético qüinqüitário (I/D/D). A diferença clânica, que permite a definição de regras de proibição de incesto em paralelo à imposição da exogamia, seria um dentre muitos modos de manifestação - privilegiado, é verdade - daquela produção “genea-lógica”. Esta se atualizaria ainda doutros modos. A sexualidade humana, por exemplo, passa a ser definida como diagonal de uma estrutura lógica quadripolar {I, D, I/D, D/2}: o par {I e D/2} representando o masculino e o par {I/D e D}, o feminino, em contraste com a bipolaridade {I e D} animal macho/fêmea. Masculino/feminino são assim os dois modos possíveis de realização do ser hiperdialético (I/D/2), pois, tanto (I) / (D/2) quanto (I/D) / (D) são iguais a I/D/D=I/D/2. Estruturações semelhantes vigeriam para as línguas naturais, para a moderna organização racional do trabalho, para as vestes e pinturas corporais consideradas como sendo uma terceira pele [10], e certamente, muito mais.
Segundo ainda Sampaio entre as grandes tarefas da antropologia filosófica (ou filosofia da cultura) estaria o empenho na decifração da significação cósmica e religiosa do homem.
Circula hoje a idéia de um princípio antrópico [11] postulando a existência de uma correspondência constitutiva entre o cosmos e o homem. O princípio baseia-se na constatação de que o curso do big bang, que depois de quinze bilhões de anos levou à emergência da espécie humana, está em estreita dependência da precisão dos valores de um pequeno conjunto de constantes físicas universais. Na versão fraca do princípio, uma feliz coincidência, na versão forte, uma prova de que aquelas constantes teriam sido “intencional e convenientemente ajustadas”. Sampaio acha que isto não nos deve consolar, não importa a versão, porque na verdade aí se revela mais uma vez a pré-potência do pensar científico, pois, segundo o princípio, não há ascensão, mas sim o descenso do homem ao nível dos entes científicos. Ele aceita a postulação de um princípio que guarde a inspiração do original, porém, exatamente no sentido inverso:
... ao invés do super-homem, o super-cosmos elevado à altura do homem logicamente à sua espera, dando alma a uma nova versão - nem forte, nem fraca, mas significante - do princípio antrópico [12].
A significação religiosa do homem, vale dizer, o sentido de sua existência frente ao Absoluto, é pormenorizadamente tratada em A superação das idolatrias - a religiosidade na cultura nova lógico-qüinqüitária, onde Sampaio afirma:
Quanto à significação religiosa, cremos que nada há por enquanto de relevante, estando nós ainda sob o impacto do anúncio da “morte de Deus”. Somos de opinião, entretanto, que com o declínio da cultura científica moderna esta questão recuperará o seu interesse maior. Os caminhos para tanto pressupõem, entrementes, uma renovação profunda de nossas concepções onto-lógicas. [13]
A conciliação entre a tese da equivalência de todos os homens no que lhes é essencial e distintivo - seu nível lógico operatório - e a historicidade das culturas que se revela, dentre outras maneiras, na variação temporal de seu vigor criativo, na enorme disparidade de poder de determinação de uma sobre outra, é resolvida por Sampaio concebendo a história humana como história do insistente (mas não monotônico) auto-desvelamento do seu próprio ser lógico-qüinqüitário [14].
A história do homem seria assim a história da cultura, processo hiperdialético de desvelamento do seu próprio modo de ser lógico. O desvelamento de uma lógica implica necessariamente que dela se alcance uma representação simbólica objetiva. Começa-se com as culturas tribais de caçadores/coletores do paleolítico, pré-I (uma proto-identidade que ainda se ignora) seguem-se as culturas neolíticas ou imperiais antigas de base agrícola, pré-D (uma proto-diferença). Depois vêm as culturas propriamente lógicas: judaica, do Deus único, I; greco-romana, prometéica, D; cristã patrística trinitária I/D. Hoje, domina a cultura moderna, científica, D/2. Estas formam a seqüência das culturas nodais, mas a própria complexidade do processo hiperdialético permite uma série de tipos não nodais: anômalas, mistas (de que seríamos um bom exemplo), de transição etc. A religião, em cada cultura, tem por essência a sacralização e guarda de seu núcleo lógico invariante.
A cultura moderna está associada à ciência e à lógica clássica formal que a governa. A visão ideológica da Modernidade não tem a menor preocupação em fazer a crítica da ciência - não há quem não esteja a seu favor -; ela se concentra exclusivamente sobre a questão de quem deva ser o sujeito da ciência: para o paradigma anglo-saxão, trata-se do sujeito liberal (I); para a esquerda, do sujeito coletivo ou comunitário (I/D); para a direita, do sujeito inconsciente cultural, romântico, telúrico ou libidinal (D). Esquerda e direita, como demonstrado pela História, nada podem contra a Modernidade, pois, a rigor, são seus próprios modos “desviantes”, modos simétricos de um delirante estado desejado de perfeição. A esquerda, lutando pelo perfeição ética (I/D); a direita, pela perfeição estética (D). No entanto, a Modernidade só será superada por uma cultura nova, na linhagem das culturas lógicas identitárias (culturas do tempo, para Paul Tillich, culturas espirituais, para Toynbee) [15] enfim, uma nova utopia em seu justo sentido.
A efetividade da crítica e dos esforços para a superação da Modernidade exige portanto sua prévia re-historização, a única maneira de se conseguir iluminar o horizonte de sua superação possível. A re-historicização da Modernidade é para Sampaio uma condição sin ne qua non para hoje pensar (e agir) subversivamente.
Para se alcançar uma mais exata compreensão da dinâmica cultural, Sampaio propõe que se correlacione uma cultura não só a uma lógica manifestamente assumida (oficial ou sacralizada), mas também à lógica que ela supera e recalca, bem como à lógica da cultura que a irá suceder.
O ser correlato à lógica recalcada acaba se transformando no objeto de desejo da cultura de referência, que busca sem descanso recuperá-lo, porém, sob “forma” ou “vestes” sacralizadas, isto é, pensada por sua lógica oficial. Segundo Sampaio estaria aí identificado:
... o poderoso “motor” oculto das grandes realizações humanas, ou seja, o desejo da cultura. Isto nos faz compreender, afinal, como as culturas, através de um processo de reiteradas substituições, sublimam-se na produção de tantas e tantas riquezas em termos de costumes, instituições, conhecimentos, técnicas e múltiplas artes. [16]
Esta concepção parece ser de grande importância teórica na medida em que o reconhecimento de um desejo social, similar ao desejo inconsciente pessoal, pode enfim abrir novos caminhos para uma melhor compreensão da efetiva articulação entre ser-social e ser-pessoal.
De outro lado, fica a lógica da cultura que irá suceder à cultura de referência, que por isso irá se constituir em lógica de seu permanente pesadelo. Ao sentir-se ameaçada, toda cultura finge já ser ou incorporar as virtudes daquela que a ameaça e esta, para superá-la, terá que necessariamente desmascará-la por este estratagema. Como diz Sampaio:
Toda cultura, mais intensamente quanto mais chegada à maturidade, simula ou finge ser o que ainda virá, que, convenhamos, é o melhor que poderia mesmo fazer para embaraçar o curso do processo hiperdialético da História. [17]
Acredito que, à primeira vista, não haja quem não desconfie que um tal esquematismo, assim tão drástico, seja capaz de dar conta das passagens críticas do processo histórico cultural. Até o autor, de modo confesso, não se exclui desta perplexidade, porém, como encontrar um bom contra-exemplo para pô-la em cheque? Em contrapartida os exemplos favoráveis não faltam, como o da cultura cristã trinitária. Como cultura dialético-trinitária (I/D), seu real desejo será da ordem da lógica que a antecede, lógica da diferença (D), ou seja, o corpo, mas sob a “forma” incorruptível ou espiritualizada (I/D). Tal desejo encontra precisamente na arte sua melhor expressão metafórica, fazendo com que ela, nesta cultura, assuma um papel de excepcional destaque. A propósito disto, Sampaio chama a nossa atenção para a grande quantidade por aí de “museus abarrotados de arte sacra” cristã.
Depois, à vista da aproximação da era da ciência, se irá ver a cultura medieval cristã antecipar-se fingindo-se já Moderna, racional, escolástica, enfim, não mais platônico-agostiniana (I/D), mas aristotélico-tomista (D/D).
Mais importante do que tudo, na circunstância, seria que o esquema não falhasse na compreensão da Modernidade, mormente em seu momento atual. A impressão é que melhor não se poderia pretender. Sampaio identifica a física como o cerne da Modernidade em razão de sua obsessiva pretensão de medir (D/D) o mundo tido como simples manifestações do uno-trino (I/D). Isto nada mais é do que querer ver o mundo reduzido a apenas três variáveis fundamentais - tempo, espaço e matéria (por isso, são bastantes os sistemas de medidas, cgs, mks, etc). A partir daí, chega-se a uma compreensão da história da física de inexcedível clareza [18]. Não se pode por isso mesmo relaxar quanto à observação dos sinais de vigor da física, que seriam os indicadores privilegiados do real estado de saúde da Modernidade.
Por outro lado, seria preciso observar as manobras de fingimento que denunciam o grau de temor da Modernidade em relação ao seu futuro. Aí, então, os acontecimentos são por demais claros e “auspiciosos”:
Na TV e por todo canto, todos os dias, a boa nova: os prodígios da biopirotecnia, a promessa do homem quimicamente puro e sem defeitos de usura ou de fabricação - a vida eterna, já. Como sempre, em última instância, se assistirá à reação desesperada: a ordem virá para a degola dos recém nascidos. Ou será que, biblicamente instruídos, já não se anteciparam financiando programas de esterilização em massa?! [19]
Como recusar tantas e tamanhas evidências?! Para Sampaio seria esta a hora de agir, mas com toda a prudência, sem jamais esquecer ou menosprezar as grandes lições da História (da cultura).
3. As opções culturais brasileiras – luxo ou originalidade (e seus riscos)
Existe um quase consenso acerca de que o Brasil ocuparia uma posição de marginalidade em relação à Modernidade, o que justificaria os seus ingentes e continuados esforços para superar tal situação, tida como de atraso. Isto traz implícito que teríamos mesmo uma só destinação - alcançar o atual paradigma social anglo-saxão. Esta seria nossa razão de ser histórica, tal como interpretada pelas elites políticas e intelectuais da nação.
Sampaio não nega a condição de marginalidade nem o mal-estar daí decorrente, mas desconfia da natureza que em geral se lhe atribui. Parece-lhe paradoxal que uma nação nascida com a própria Modernidade possa, sem mais, ter problemas crônicos de nela ingressar. Ademais, aquela condição marginal tem sido diagnosticada como a conseqüência de um persistente dualismo: Brasil moderno/Brasil arcaico, Brasil-Bélgica/ Brasil-Índia, etc. etc. sempre com a mesma implícita conotação econômica. Ele acredita que dualismo há, mas bem outra sua natureza: ele seria mais cultural do que econômico, menos retrospectivo do que propriamente prospectivo. Haveria sim dois brasis, um imerso na Modernidade, outro que a ela se recusa, como se reservando para algo maior ainda por se realizar [20].
Já houve um grande esforço para se chegar a uma interpretação ideológica da marginalidade brasileira e Sampaio debita seu fracasso a causas que lhe são imanentes. As ideologias têm de comum o propósito de apenas substituir o sujeito individualista sujeitado à ciência por um outro: a esquerda, pelo sujeito coletivo, a direita, pelo sujeito romântico ou libidinal, o que no fundo traduz idêntico desejo por um capitalismo perfeito. E chama a atenção que nas circunstâncias atuais, para evitar maiores riscos, a crítica ideológica é o que mais pode desejar o pensamento único. Quem sabe, seus beneficiários não se disporiam até a ajudar (financeiramente, que é sua especialidade) os seus velhos inimigos para que por aí fiquem vagando impotentes, mas ocupando lugar?!
Jamais houve ou poderia ter havido saída lateral, fosse à esquerda, fosse à direita. A única saída viável estaria em investir numa crítica da cultura capaz de desbloquear o horizonte histórico, relativizar a Modernidade permitindo que a vista alcance mais além. É também por isso que Sampaio acha insuficiente a crítica frankfurtiana, na medida em que ela não admite qualquer possibilidade de que se possa transcender a cultura em que se vive, o que leva a uma angustiosa inação [21].
Como se viu anteriormente, uma concepção da história da cultura como auto-desvelamento do ser lógico do homem é o bastante para re-historicizar a Modernidade e iluminar o horizonte de sua possível superação. Assim, como para além da lógica clássica existe uma lógica hiperdialética qüinqüitária, para além da Modernidade científica e “mercado-lógica” existe a esperança, esperança bem fundada de uma nova cultura. Com o descortino dos mecanismos lógicos da dinâmica cultural em Desejo, Fingimento e Superação na História da Cultura [22], todos nós estaríamos capacitados a de pronto perscrutar os sinais de fraqueza e declínio, bem como as oportunidades de ação cultural que ao mesmo tempo acelerem e minimizem os custos (historicamente enormes) do processo de superação da Modernidade.
Esboçando as características mais marcantes da cultura nova, Sampaio, mesmo que não seja esta sua intenção, faz as vezes de sedutor. Ele mostra que dentre elas estariam a re-significação cósmica [23] e religiosa [24] do homem e a completa renovação das relações indivíduo/sociedade sob os aspectos políticos, econômicos e culturais.
Volta então à Historia do Brasil para compreender que sua marginalidade é também de certo modo resistência propositada. Conforme Sampaio, o Brasil se caracteriza pela confluência de um amplo leque de culturas, que se por um lado, dificulta a sua modernização, por outro lado, constitui a base necessária à edificação de uma cultura nova realmente após moderna. E que portanto o Brasil não tem uma só destinação possível, mas duas: ou o luxo ou a originalidade. Pode por isso continuar insistindo, ainda que um pouco tardiamente, em entrar para o “Primeiro Mundo”, mas pode alternativamente lançar-se na grande aventura da construção de um novo modo de ser pessoal, coletivo e cósmico, vale dizer, a fazer nascer no mundo uma nova cultura.
Sugere Sampaio que o Brasil se constitui, talvez, no único perigo real para a cultura dominante e também por isso, para os próprios brasileiros; deduz-se daí que a opção pela originalidade não está isenta de grandes riscos. A cultura dominante, mostram insistentemente todos os meios de comunicação de massa, em especial, a TV, já hoje finge ser sua própria posteridade, finge-se pós-modernidade, e tenta a todos seduzir ofertando a vida eterna aqui mesmo na Terra através dos poderes cada dia maiores da bio(piro)tecnologia. E, quando desesperada, ela irá, como nos instrui o Velho e o Novo Testamento, ordenar a degola dos nossos terroristas recém-nascidos onde, a seus cálculos, estes possam ser para ela mais perigosos. Mas de qualquer modo, a seu ver, a causa vale a pena.
Por tudo isso, deve-se desenvolver em e para o Brasil uma estratégia cultural para sobreviver até à chegada da melhor hora, que seria aquela do esmorecimento do vigor criativo dos laboratórios científicos centrais. No centro desta estratégia, ao que pudemos perceber, estaria a defesa ativa da língua (pelo uso, tanto denotativo e preciso, quanto ao limite expressivo) e da nossa música em todas as suas variantes. No entanto, fica um sério problema que ele identifica, mas não o vimos aportar a solução: o ódio das elites ao povão - a traição das elites políticas e a demissão das elites culturais da nação.
NOTAS
1. PAIM, Antônio. Problemática do Culturalismo. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995
2. CÔRTES GUIMARÃES, Aquiles. Tendências da Filosofia Brasileira Contemporânea - os neohegelianos. Projeto de pesquisa para o CNPq. Rio de Janeiro, novembro de 1994 e também Sumário das Contribuições à filosofia da parte de Luiz Sergio Coelho de Sampaio, in Pensamento Original Made in Brazil, Rio de Janeiro, Oficina do Autor/etc/FINEP, 1999
3. SAMPAIO, L. S. C. de. A Grande Tarefa de Nosso Tempo: uma Nova Filosofia in Revista Brasileira de Filosofia, fasc. 189, S. Paulo, 1998
4. HEIDEGGER, M. Hegel’s Phenomenology of Spirit. Indiana U. P., Bloomington, 1988.
5. SAMPAIO, L. S. C. de. Lógica da Diferença in Revista Brasileira de Filosofia, fasc.194, S. Paulo, abril/junho 1999
6. CÔRTES GUIMARÃES, Aquiles, Sumário das Contribuições à filosofia , op. cit.
7. SAMPAIO, L. S. C. de. Reflexões, logicamente otimistas, acerca do advento da cultura nova pós-científica in Pensamento Original Made in Brazil, Rio de Janeiro, Oficina do Autor/etc..., 1999
8..______. Noções de Antropo-logia. Rio de Janeiro, UAB, de 1996. Incluído no volume ora prefaciado
9.______.A velha querela acerca da lógica e da cultura. Rio de janeiro, 1999, incluído no volume ora prefaciado
10.______.Primeira, segunda e terceira peles. Rio de janeiro, 1999, incluído no volume ora prefaciado
11.______. Princípio Antrópico - um novo fundamento e uma significação renovada.. Rio de Janeiro, UAB, 1997.
12.______. Re-significação cósmica do homem e do processo de sua auto-realização cultural. Rio de Janeiro, setembro, 1999, este último incluído no volume ora prefaciado
13.______. A superação das idolatrias - a religiosidade na cultura nova lógico-qüinqüitária, Rio de Janeiro, novembro de 1999
14.______. Noções de Antropo-logia., op. cit.
15.______. A história da cultura segundo Toynbee, Tillich, Hegel e Marx. Rio de Janeiro, outubro de 1999
16. ______. Desejo, Fingimento e Subversão ma história da Cultura, Rio de Janeiro, 1998, ambos incluídos no volume ora prefaciado
17. Ibid.
18.SAMPAIO, L. S. C. de. Apontamentos para uma história da física moderna. Rio de Janeiro, UAB, 1993/1997 e, mais recente, Reflexões, logicamente otimistas, acerca do advento da cultura nova pós-científica , op. cit.
19. ______.Bases para a urgente formulação de uma estratégia (cultural) brasileira. Rio de Janeiro, novembro de 1999.
20.Ibid..
21.SAMPAIO, L. S. C. de. Crítica da Modernidade. Rio de Janeiro, julho de 1999
22.______. Desejo, Fingimento e Subversão ma história da Cultura, op. cit.
23.______. Re-significação cósmica do homem e do processo de sua auto-realização cultural, op. cit.
24.______. A superação das idolatrias - a religiosidade na cultura nova lógico-qüinqüitária, op. cit.
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