14.9.17

Proposta filosófica para a cultura, por Aquiles Côrtes Guimarães

Filosofia da Cultura, Brasil, luxo ou originalidade (recensão)

Luiz Sérgio Coelho de Sampaio sugere que o Brasil pode ser mesmo o país do futuro, se optar pelo original em vez do luxo


Filosofia da Cultura – Brasil, luxo ou originalidade de Luiz Sérgio Coelho de Sampaio se coloca como herdeira de contribuições filosóficas de grande peso e elevado teor de originalidade feitas anteriormente em livros e artigos pelo próprio autor. Este pensador já propusera a redefinição do papel da lógica no que resta hoje do complexo filosófico, fazendo-a contrapartida de uma ontologia (ser e pensar são o mesmo, em Parmênides e Hegel). Depois de um enorme esforço de delimitação e unificação do que ele viria denominar lógica da diferença, faz desta, junto com a já bem estabelecida lógica transcendental ou da identidade (Kant, Fichte e Husserl) as geradoras – por força de um processo de síntese dialética que generaliza a aufheben hegeliana –, de um ilimitado espaço lógico combinatório, onde todas as lógicas reconhecidas pela tradição vão encontrar seu preciso lugar. A lógica clássica pode então ser naturalmente conceituada, não apenas como lógica do terceiro excluído, mas, igualmente como lógica da diferença reiterada (dupla diferença) e, o que é mais importante, doravante superável (subsumível) por uma lógica hiperdialética síntese não apenas das lógicas fundamentais – transcendental e da diferença – mas também da dialética (Platão, Hegel, Marx) e da lógica clássica.

Sendo a lógica da diferença a lógica do pensar inconsciente, com a sua incorporação “oficial” à filosofia, se esta de fato completando o processo histórico de negaças/incompreensões/atritos/diálogo e finalmente absorção da “forma” do “pensar inconsciente ou recalcado”, que havia muito despontara em Pascal e reincidia em Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Deleuze. Na vida cotidiana, então, a lógica do inconsciente não podia ser mais elidida: ela se impunha, de um lado, com a psicanálise (Freud e especialmente Lacan), de outro lado, com a aterradora efetividade das tecnologias de marketing invadindo e manipulando o imaginário dos povos de todo o mundo.

Abre-se deste modo a possibilidade para se pensar de mais alto a lógica clássica, a física, a grande empresa do cálculo do mundo, o progresso (processo de acumulação de capital), enfim, a Modernidade em toda a sua amplitude, hoje, globalizante, conforme exatamente previra (mas não conseguira prevenir) o Marx do Manifesto. A lógica hiperdialética, segundo o autor, seria a lógica própria do ser humano, com o que se pode refundar, de modo mais sólido e definitivo, uma antropologia filosófica e, daí, se chegar a uma renovada história da cultura, que é, a nosso entender, uma das arquitraves da obra que ora apreciamos..

Assim, como a fenomenologia do espírto e a lógica hegelianas são de certo modo o mesmo, por trajetos distintos, respectivamente, “ascendente” e “descendente”, uma redefinição lógica do ser humano (passando do dialético trinitário ao hiperdialético qüinqüitário) iria forçosamente engendrar uma nova fenomenologia do espirito (história da cultura), só que de tessitura ainda mais complexa. Como o que faz a diferença entre a dialética e a hiperdialética é uma simples diferença, a nova fenomenologia do espírito podia subsumir, além do historicismo hegeliano, também o moderno estruturalismo antropológico, que já antes estatuíra uma segunda diferença, além da sexual (clânica, por exemplo) como quinta-essência do ser-coletivo humano (Lévi-Strauss). As lógicas em sua crescente complexidade passam a constituir, por tudo isto, o marca-passo da história (hiperdialética) da cultura.

Num lance de arrojo, ao analisar o processo de passagem de uma cultura a outra, o autor desvela o que seria o desejo de uma cultura: recuperar, revestida com sua lógica, o objeto perdido, isto é, aquilo que era antes divinizado na lógica da cultura que a precede. O desejo da cultura judaica, com seu Deus Único, seria não o Um, mas a Extensão (Terra) Prometida; o da cultura trágica grega, a captação, na malha do logos diferencial, do Ser-Um; o da cristandade, o Corpo espiritualizado, tornado incorruptível (por isso, a arte, que lhe é logicamente homóloga, é sua mais profunda “realização”); o da Modernidade, o cálculo do Uno-Trino (nada mais, nada menos do que a Física (Newton), reduzindo tudo a apenas três grandezas – tempo, espaço e matéria – calculadas, e sempre às voltas com a “unificação/dispersão herética” de suas teorias).

A dinâmica das culturas é ainda enriquecida pelo inexorável processo de fingimento, pelo qual toda cultura, já sentindo-se ameaçada pelo que advirá, se disfarça em sua própria posteridade (a Modernidade hoje mascarada de pós-Modernidade é apenas o exemplo da atualidade). Não sendo este desejo mera atribuição por analogia, nem simples abstração que se hipostasia, e sim realidade bem palpável, viabiliza-se uma dialética de desejos, pessoais e coletivos; cria-se assim uma nova perspectiva para compreender as incomensuráveis realizações (agora sublimações) das culturas e também uma nova possibilidade para a integração das chamadas ciências humanas – sociais e psíquicas –, consequentemente, de articulação dos contributos críticos à Modernidade de Marx e Freud. É verdade que isto já lá estava no programa, mas não se veio contar entre realizações efetivas da Escola de Frankfurt.

A Modernidade é então reconsiderada desde as origens. O episódio da caça às bruxas – recalcamento das lógicas femininas, do desejo e da história – passa a ser considerado não mais o último capítulo da “Idade das Trevas”, mas, certamente, o capítulo fundacional da nova era da razão (machista, lógico-transcendental e formal). Sela-se, sob o patrocínio papal, a instituição do princípio lógico do terceiro excluído através do Tratado de Tordesillas. Consolidado o alicerce (e calabouço!), a ciência é o que primeiro desponta a olhos vistos da construção da Modernidade (Copérnico, Kepler, Galileu). Mas não era possível a ciência (lógica da morte, para o autor) sem a contrapartida de um sujeito intervalar (simulando a lógica da vida); por isso, ao lado da ciência, está sempre o transcendentalismo cultural judaico, viceja o Protestantismo (particularmente calvinista), realiza-se a reformulação político-burguesa das cidades nos Países Baixos e ocorre a revolução liberal inglesa dos primórdios do século XVII. Completava-se assim a construção lógica da Modernidade. Pode-se também distinguir e compreender a ulterior mutação do capitalismo produtivista brutamontes em capitalismo consumista etnocida.

O século XX é considerado pelo autor como perdido, não pela falência das ideologias frente a potência do liberalismo e sim pela fragilidade intrínseca das primeiras: fracassaram porque não foram mais do que projetos de um capitalismo perfeito pela substituição do sujeito (liberal) da ciência – à esquerda, retardatário, pelo sujeito coletivo; à direita, com antecipação, pelo sujeito romântico. Por isso, era necessário abrir o caminho para a ressurgência do pensamento utópico; agora, torna-se mais do que evidente o móvel central da obra de Coelho de Sampaio. Com apoio na visão retrospectiva da história pode-se já vislumbrar no horizonte os traços e sintomas da inexorável superação da Modernidade por uma cultura realmente nova, afinal, lógico-hiperdialética, pela primeira vez, uma cultura à altura exata da potencialidade lógica plena do ser humano. É óbvio que isto para ele não significa repudiar ou esquecer a ciência, mas, precisamente, obrigá-la a passar de fim a meio..

Por fim chega-se à formação histórica brasileira, que se anunciara pelo subtítulo dado à obra. Coelho de Sampaio diagnostica, como toda gente, o dualismo, porém este é agora interpretado de modo diverso do tradicional: a parte não moderna do Brasil não representa mais o atraso, e, sim, a recusa á Modernidade, um modo de guardar-se para algo maior e melhor ainda por vir. O Brasil se transforma destarte (apesar do que se vê!) em possível candidato a ator principal do processo de desvelamento da nova cultura. Conclui que podemos agora optar pelo luxo (ingressar na Modernidade, que lhe parece já em vias de decadência).

A História do Brasil não seria, portanto, a dos reiterados fracassos em tentar modernizar-se, mas a grande epopéia cruenta e dolorosa daquele que se pôs a serviço da mais justa e elevada causa: a criação de uma nova cultura. Por isto interpreta, como premonição, os reiterados vaticínios esperançosos sobre o Brasil – seria este, por exemplo, o sentido mais profundo da expressão de Stefan Zweig: Brasil, país do futuro.

O livro poderia muito bem terminar por aqui, mas o autor parece que ama muito mais um risco no ar do que um bom bocado na mão. Depois de tudo que alcançara, ele se põe a tarefa de traçar os lineamentos gerais da nova cultura, escolhendo como temas, o relacionamento do homem com o Absoluto o cosmos e sua própria sociedade.. As conjecturas acerca da nova religiosidade são estupefacientes; aquelas acerca da reintegração do homem no cosmos – não pelo rebaixamento do primeiro, mas pela elevação do segundo –, são alvissareiras; aquelas acerca das relações indivíduo/sociedade são surpreendentemente revolucionárias (que não é aqui sinônimo de violência), bem mais do que puderam até hoje antever os “profetas da escatologia” que povoam a insônia de nossos atuais governantes.

No caso presente, entretanto, não é aqui que tudo acaba; muito ao contrário, é onde tudo a rigor começaria. Apreciar e julgar uma obra intelectual enquanto tal é uma coisa, bem outra é reconhecê-la ou não como acontecimento. Afinal, que quer dizer esta desmedida NARRATIVA de Coelho de Sampaio justamente neste momento de convergência do pós-moderno europeu continental e do pragmático anglo-saxão transatlântico (especialmente, Rorty), acabando de acordarem que a grande narrativa simplesmente não há?! E tome bomba!


Aquiles Côrtes Guimarães

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