14.9.17

As questões entrecruzadas da universidade, da cultura e das ciências, no âmbito da polis, não da grega, mas desta que nos acolhe, imagino que meio zonza e perplexa diante da bifurcação existencial extrema que ora se lhe apresenta entre o eclesiástico fundacional e o contingencial poético drumondiano


Exórdio

Para começar, não poderíamos simplesmente esquecer que chamar-se Petrópolis tem já a priori múltiplo e desmesurado peso. Espiando apenas o passado, estaríamos bastante bem, aqui, num seminário de história dedicado a, por exemplo, escarafunchar a política externa do Segundo Império; seria uma homenagem intelectual festiva bem a calhar ao nosso querido Imperador. Ou, com os olhos no futuro, estaríamos igualmente à vontade conjeturando se, tomando-a como alicerce, não poderíamos aqui mesmo começar a ereção de um novo modo de ser, de ser-com-outro, de ser-no-mundo e de ser-por-com-em-Absoluto, em síntese, de uma nova cultura (2). Ou, tal qual certa feita sentiu-se o nosso grande poeta Drumond, vermo-nos confrontados com uma presença maciça insensível e inamovível, compelindo-nos, mesmo que contrafeitos, a seguir pela Estrada do Contorno? Não se deve esquecer, que, de um modo ou de outro, és pedra, que se tem que circundar ou sobre a qual algo de grande e duradouro sempre se pode erigir...

Vamos suscitar e rapidamente comentar três grandes questões que deveriam ser prioritariamente consideradas num projeto de universidade que se pretenda realmente novo para a cidade de Petrópolis.

Começaremos discutindo o papel que a cultura deva ter na Universidade Livre, que, dado seu aspecto existencial, se nos afigura como a mais crucial de todas as questões: sem cultura, não há salvação.

A seguir, examinaremos o papel que a Universidade Livre precisa assumir numa sociedade cujo dinamismo se centra cada dia mais no conhecimento – na ciência e na técnica. Isto, apenas considerada a questão pelo viés produtivo ou da geração de renda. No entanto, ficaremos sobremodo estarrecidos olhando a questão pelo viés anti-simétrico da distribuição de renda: constataremos então, sem sombras e sem dúvidas, onde a perversidade social e seu imediato corolário, a violência, mergulham fundo suas raízes. E, no entanto, a todos nós pareceria que a universidade tinha lá sua importância intrínseca, mas nada a ver com este tipo de problema!

A nossa terceira questão refere-se à relação da Universidade Livre com a Polis, que será a oportunidade para discutirmos a contribuição tanto oblíqua quanto direta que ela poderá dar à melhoria da qualidade de vida e da qualidade das relações sociais (níveis de “cordialidade” e solidariedade, grau de universalização das oportunidades educacionais etc.).

Tocaremos, até com certa timidez, (ou seria pudor?!) em duas outras questões – a polêmica opção entre as tradicionais e as novas tecnologias de ensino e a sempre cansativa questão da viabilidade econômico-financeira da Universidade. A nosso juízo estas últimas são questões de fato menores (o que não quer dizer que não devam ser oportuna e cuidadosamente equacionadas), mas que as elites políticas, econômicas e até intelectuais (mesmo quando nada entendem de teleinformática e de finanças) adoram discutir para não ter que enfrentar as questões de fundo, que seriam justamente aquelas três de saída aqui já postas.

A Cultura e a Universidade Livre


Foram já várias na Modernidade as ondas varrendo o mundo com a pretensão de uniformizá-lo: a primeira delas aconteceu logo após ter sido conquistada a técnica da impressão mecânica totalmente indistinta fosse ela verdade ou mentira (não se diz mesmo por aí que o papel aceita tudo?!). Alardeava então o Ocidente por todos os quadrantes, assim que dava as caras e tão logo também as cartas, chegando por terra ou pelos mares, que a evangelização que junto se oferecia com adereços (as vezes, grilhões) e quinquilharias podia muito bem se harmonizar com qualquer cultura. Dos que acreditaram, nenhum restou para nos contar a história de como passou do ser ao não-ser, que, desde Kant, nem mesmo chega a valer como um simples predicado. Zelando pela veracidade, devemos precisar que da cultura – universo das práticas, significações e valores comuns –, de fato nada sobrou. Não obstante, o discurso colonial demonstra cientificamente que, do pool genético dos respectivos “novos crentes”, 25, 30 e em alguns casos até mais do que 50 % sobreviveu em indivíduos vagando por aí a fora. Sim, do ponto de vista materialista (por ironia, o que então se pregava era a salvação das almas!), da pura e simples lógica da res extensa, convenhamos, foi até bastante o quantum preservado. Pode em princípio parecer, mas não estamos aqui, por enquanto, fazendo qualquer juízo de valor.

Veio depois o colonialismo dos séculos XVIII e XIX estribado economicamente na máquina a vapor e depois na bem mais flexível eletro-técnica; militarmente, o grande “argumento” na retórica política internacional da época foi, sem nenhuma dúvida, o poderio naval. Esta onda globalizante começou rapidamente a refluir com o término da Segunda Grande Guerra.

Entrementes, com o advento da mecânica quântica desdobrada, em muitas técnicas e, especialmente, em microeletrônica pode o Ocidente alcançar à digitalização intensiva e com isto à gigantesca ampliação das possibilidades de medida, cálculo e controle automático de todas as coisas deste e doutros mundos. E hei-nos, por conseqüência, de repente confrontados com o refluxo intensificado do processo “civilizador” – diz-se hoje globalização – agora chegando preferencialmente pelos ares, a jato ou surfando no largo espectro das ondas eletromagnéticas. E tudo, como fora a farsa de uma farsa, se repete... Basta ligarmos a TV e em poucos minutos iremos ver e ouvir, envolta em cores requintadas e música bem temperada, a maligna e melíflua cantilena: os produtos da ciência e da técnica modernas – oferecidos juntos com jeans, bonés de baseball, hambúrgers e cola-cola –, asseguram eles, não trazem o menor dano às cabeças assim como pelo lado de dentro à cultura. E anunciam a mais não poder como microcomputadores, por exemplo, cabem como luvas na vida de todos: dos aborígenes australianos à dos esquimós nos arredores do ártico, o mesmo valendo para um grupo de freiras no pátio de um convento medieval italiano, para uma caravana de berberes tostados cruzando a camelo o Saara, para um pequeno círculo cerimonial de monges budistas tibetanos e até para o diabo na faina administrativa de sua ígnea propriedade. Asseveramos nós, bem ao contrário, que, como dantes, quem nisso acreditar, não viverá para contar como tal possa ter sucedido, embora, materialmente falando, vá com certeza so(ço)brar-lhe uns 25, 30% ou mais, outra vez. Ai, do pobre diabo, perdendo para sempre sua alma!

O esclarecedor estudo de Bill Readings, publicado pela EdUERJ (3), diagnostica que as atuais exigências de “excelência” universitária que acontecem por toda parte são a contrapartida inelutável do tão decantado processo de esvaziamento dos Estados Nacionais; em razão disso, a universidade “abandona o papel de nau capitânia da cultura nacional”, embora, segundo este autor, não tenha ela ainda tomado um rumo definitivo. Entretanto, talvez por lhe ter faltado o olhar distanciado, não se pergunta: quais seriam exatamente estes estados nacionais? Não nos diz que são os dos outros, isto que no entanto é bastante evidente, pois, os que mais apregoam tais “verdades” o fazem à sombra de seu escudo de radares e foguetes, animados por hinos, bandeiras e galhardetes, e com a pronúncia sempre mais arrevesada e metálico-radiotiva, posto que se encontrarem cada dia mais e mais armados até os dentes.

É se fingir de muito boboca, não querer perceber que ainda que tiremos nota dez nos deveres de casa que nos passam semestralmente o FMI e congêneres, continuaremos sob mira severa dos atiradores da elite consensual enquanto representarmos, sim, a mínima possibilidade de irrupção de uma nova cultura, porque todos no fundo sabem (ou deveriam saber), no que tange à sobrevivência a longo curso, apenas isto deveras conta.

Aqui no Brasil, toda esta problemática cultural assume características e proporções inusitadas, pois não estaríamos lutando tão apenas na defesa de um patrimônio acumulado, mas também pela preservação do espaço onde se estaria processando já há séculos o intensamente doloroso processo de caldeamento de uma nova cultura. Quão desmesuradas foram as penas dos que cá estavam, dos que aqui aportavam e de seus descendentes mamelucos para chegarem à unidade e posse deste vasto território; também, dos trazidos a força de África e dos muitos tangidos de outras plagas que aqui vieram violentar-se, violando o leito dos rios e as entranhas da terra para forçá-los a entregar riquezas (ou confessar pobreza); dos que, depois de abrirem vielas sem número e estradas sem fim, construírem milhares de vilas e vilarejos, cidades e capitais imaginadas, vieram morrer à mingua desassistidos pelas ruas ou barrados à porta dos hospitais públicos... Apenas arrolar os nomes de tantas dores e sofrimentos nos tomaria muitas e muitas páginas. Entrementes, seria também prova de desinformação e grave falta de compreensão histórica acreditar que pudesse ser significativamente menor o preço da ousadia (ou inconseqüência) de se por a desvelar/edificar, em nome da humanidade, uma nova cultura.

Assim, mais do que em qualquer outra parte, a universidade entre nós necessita assumir um papel de liderança na defesa do espaço cultural da nação para que toda esta ebuliente e complexa gororoba cultural, depois de tudo, de repente, não desande. É o mínimo que a nossas “elites” políticas, empresariais e, em especial, intelectuais podem fazer para limpar um pouco a própria barra, em verdade, sua face ou pelo menos maquiá-la disfarçando sua já proverbial insensibilidade diante das causas sociais e nacionais.

Podemos ser um pouco mais precisos acerca de como isto poderia realizar-se. Há cerca de dez anos esboçamos o projeto de um Museu da Formação da Cultura Brasileira (4) que, entre muitas outras importantes incumbência teria a de operar um Centro de Estudos, Pesquisas e Informações onde se buscaria aprofundar a compreensão do processo e subprocessos de encontros, dominações, diálogos, conflitos, convergências e sínteses que estão levando à emergência da original variedade cultural brasileira. Como centro de informações ele se esforçaria por fazer circular toda a produção cultural brasileira voltada para a compreensão do próprio processo de formação cultural da Nação em todos os seu aspectos, viesse ela de que quadrante fosse da terra brasileira e mesmo do exterior.

Tanto o Museu como em especial o Centro deveriam se constituir em propulsores da cadeira Formação da Cultura Brasileira compreendendo proposta de currículo, livros textos, bibliografia básica, recursos audio-visuais e informáticos de apoio, programas de formação e aperfeiçoamento de professores para a matéria. Todo esforço deveria ser feito para que esta cadeira - em breve tempo e não de modo impositivo, mas pela excelência - viesse a se tornar um dos pilares dos programas de preparação para a cidadania plena (política, econômica e sobretudo cultural, incluída ai, a consolidação do ser-ético, que no mais fundo, é ser-autêntico), devendo estar portanto presente, de modo ajustado, em todos os três níveis de ensino. Tal proposta nos parece ainda bastante atual para ser adotada, em suas linhas gerais, pela ULP

A questão do Conhecimento e a Universidade


Deixando o âmbito maior e de longo curso das culturas para considerar as circunstâncias e pressões apenas conjunturais do presente, defrontamo-nos com o fenômeno da força crescente do conhecimento que, deveríamos saber, já operava constitutivamente desde as origens da Modernidade, que muito antes de ser capitalista é em sua essência mais profunda tecno-científica. Ela assim é, portanto, desde os tempos de Copérnico, Descartes, Bacon e Galileu; de novidade mesmo, é que só agora a ciência deixa para todos à mostra o riso dúbio, o bom tamanho e as fileiras afiadas de dentes.

Mesmo um fórum internacional burocrático – a UNESCO – por isso mesmo obrigado a harmonizar sutilezas, conveniências, inconveniências e, como de hábito, o descaramento proporcional ao peso das cotas (pagas e outras ainda penduradas), não teve como sobre a matéria se omitir:



...a sociedade vem crescentemente se tornando uma sociedade cujo eixo é o conhecimento. Por isso, a educação superior e a pesquisa são hoje fatores fundamentais para o desenvolvimento cultural e socioeconômico de indivíduos, comunidades e nações. (5)


Caso seja aceito que vivemos hoje na era do conhecimento (não temos sobre isso a mínima dúvida, porque, já o dissemos, desde as origens vem sendo assim!), como desprezar o valor do dito cujo e das instituições que o preservam e difundem, e têm necessariamente que antes produzi-lo? Cremos que até aqui não exista qualquer desacordo, porém, quem estaria dispostos a daí sacar as reais conseqüências?

Ao nos pormos de acordo que ciência e técnica constituam o cerne mesmo da Modernidade – Heidegger chama nossa atenção com insistência para o caráter metafísico da técnica –, ficamos naturalmente obrigados a rebater a essencialidade deste fato sobre o plano da “velha” economia política, e então perguntar: quem, como classe sócio-econômica, faz ciência e técnica e disto acaba possivelmente tirando o maior e melhor proveito. Não é difícil perceber que as sociedades modernas são por essência irredutivelmente tripartites (6): há, como sempre e por toda parte, exploradores e explorados, que no entanto só podem subsistir, na circunstância, em função direta do que realiza um terceiro personagem – a classe média. Esta tem a incontornável responsabilidade da reprodução e continuada ampliação dos níveis de produtividade do trabalho social. Somente desta maneira se pode viabilizar o processo de acumulação (pré-calculada) de capital (7). Em conseqüência, nas nações realmente modernas, que guardam com grande zelo uma razoável dose de autonomia científico-tecnológica, a classe média dispõe de sólido cacife político para pressionar para cima, conseguindo defender e mesmo ampliar de modo continuado seus espaços de ação e sua cota parte na apropriação do produto social (8). Ao contrário, nas nações visceralmente dependentes, a classe média, destituída daquela capacidade de pressão, se faz classe de existência apenas política, conglomerado de pura força bruta (9), que sem ocupação mais digna se ocupa mesmo em pressionar para baixo, sempre a resmungar queixosa pelos cantos que a estão proletarizando. Já é tempo de deixarmos de lado a hipocrisia, de deixarmos de ser coniventes com uma classe que justamente prima pela conivência, que se lixa com a dependência, que se adapta com facilidade á subserviência o que não lhe deixa outra alternativa senão o mal-caratismo sócio-político. É precisamente isto que está por trás do perverso perfil de distribuição de renda nos países dependentes, muito especialmente no Brasil. Ela mesmo colhe os frutos da mesquinhez e omissão que semeia: estar por aí enclausurando-se com grades por todos os lados, a se queixar angelicamente da onda de violência!

Há um simples quadro estatístico que ninguém compulsa e muito menos comenta, e que corrobora com sobras tudo isto que aqui afirmamos: a taxa de mais-valia (10) das nações tem uma correlação fortemente negativa com o grau de desigualdade da distribuição de renda (11). Em outras palavras, considerada uma amostra significativa de nações, verifica-se que quanto mais elevada a taxa de mais-valia melhor o perfil da distribuição de renda. Inacreditável?! Nem tanto! A condição para a ocorrência de altas taxas de mais-valia não é a maior ganância dos empresários (que não negamos exista, mas que necessariamente não encontra quem sempre a ature); muito provavelmente ela tem como condições, primeiro, o fato de se viver em condições naturais relativamente inóspitas; segundo, a disposição em se aceitar elevadas taxas de renúncia aos frutos do próprio trabalho; terceiro, conjugada à anterior, a confiança que tal renúncia de algum modo e em boa medida reverta (12) em benefício da sociedade como um todo. Por isso as maiores taxas de mais-valia ocorrem no Japão e nos países norte-europeus; as menores, na África e boa parte da Ásia; e é para estas últimas que caminha o Brasil, que antes da “Nova República”, junto com ao EUA (capitalista) e URSS (comunista), andava pela média.

A questão da distribuição de renda não é pois, na Modernidade, um affaire envolvendo o trabalho e o capital, ou seja, o proletariado (13) e os capitalistas, mas, sim, o trabalho e o trabalho sobre o trabalho, o proletariado e a classe média encarregada de conservar e continuadamente ampliar os níveis de produtividade do trabalho social.

Não é assim nada surpreendente verificar que onde mais elevada é a taxa de mais-valia, mais eqüitativo é o perfil de distribuição de renda e, como conseqüência, a qualidade do sistema de educação pública, como também a sua cobertura social e geográfica. Podemos compreender agora a verdadeira razão do recente processo de avacalhação do ensino público no Brasil, em todos os níveis. Foi a reação encontrada pela classe média (em condição de dependência e desespero) para fazer frente ao aumento da demanda por educação provocada justamente pela homogeneização da pauta de valores dos diferentes grupos sociais, fenômeno induzido pelo advento da TV quase simultâneo em todo o mundo (14). –Vocês também querem educação? – Pois muito bem, tomem lá. (a parte) Aumentamos a oferta de educação pública, mas esvaziamo-lhe a qualidade e passamos nossos filhos para escola paga (descontando, naturalmente, o aumento de despesas da contribuição ao IR), e temos conversado. Constatamos assim, que a prevalência de mecanismos perversos que levam à má distribuição social de renda estão visceralmente ligados ao grau de dependência científico-tecnológico a que se adaptam certas nações (dito, capitalismo dependente).

Em suma, não há mais como se negar a ver que, no âmbito da Modernidade, impera uma tríplice e férrea correlação: dependência científico-tecnológica Û má distribuição de renda realimentada pelo comportamento perverso da classe média Û abrangência restrita e má qualidade do sistema educacional público, colmatado este último por uma universidade invertebrada, auto-demissionária, in-culta, formalista, ineficaz, ineficiente e vai por aí a fora.

E nós, que a princípio, irrefletida e candidamente acreditávamos que a universidade pouco tivesse a ver com estes nossos graves problemas sociais!


A Universidade e a Polis



Quanto ao valor da instituição escolar para a cidade, desde a pequena escola elementar comunal á grande universidade, não precisamos ir muito longe para nos depararmos com as mais espetaculares constatações históricas: São Paulo nasce, não como a maioria das cidades, isto é, em função de uma convidativa enseada e um porto, ou de uma fortificação no alto de um morro, ou de uma encruzilhada, mas em torno de um colégio – do Pátio do Colégio –, e desde então, atendo-nos apenas ao aspecto econômico, é por si só, desde sempre, cerca de 20% do Brasil. E no mesmo Estado, em cidades médias já consolidadas, temos três excelentes exemplos: Campinas, São José dos Campos e São Carlos. Veja-se a potência econômica e cultural que, em poucas dezenas de anos, veio se transformar Campinas, a romântica e musical Cidade das Andorinhas em razão de nela ter-se instalado a UNICAMP. Na então pachorrenta São José dos Campos, por decisão federal (15), instalou-se, nos primórdios da década de 50, o CTA, particularmente, o ITA – Instituto Tecnológico de Aeronáutica – e lá está uma das pouquíssimas coisas realmente modernas de que nos podemos orgulhar: uma sólida e sofisticada indústria aeronáutica. Não falamos de São Carlos por não termos tido ainda a oportunidade de conhecê-la pessoalmente.

E há para se considerar, sobretudo, a encantadora atmosfera das chamadas cidades universitárias largo senso, como Coimbra, Salamanca, Louvain, Oxford, Cambridge, Heidelberg, Freiburg, Urbana (Illinois), Ann Arbor (Michigan) e bem perto de nós Ouro Preto, com sua prestigiosa escola de minas e metalurgia. Quem já curtiu alguns dias de saudável ócio em algumas destas cidades, sabe e até sente na pele e às vezes mesmo pelo olfato a diferença vis-à-vis as cidades “essencialmente turísticas”, que seria de mal tom aqui nomear. Não distinguir entre cidade universitária e cidade turística é, filosoficamente falando, não saber distinguir entre ser e se vender, mesmo que sendo a bom preço e ainda que pago em dólares ou em austrais com paridade garantida (?!). Dispor de um bem confortável quarto de hóspedes é uma coisa, bem outra é se mudar para um barraco na periferia e alugar a própria casa, dentro, a própria cama e, para completar,... as próprias filhas e assim elevar um pouco mais a renda familiar. Quem disser que estamos exagerando sabe muito bem que está mentindo. Já imaginaram a impropriedade de uma reunião como estas em um bom número de cidades turísticas do Brasil? Pode-se cair na desdita de se tornar uma cidade turística – é cair na vida, e isto acontece! – mas não poderia ser mais ridículo que tal viesse a acontecer por autodeterminação (por um plebiscito!) ou vocação assumida.

Como foi notado por um bom número de i1ustres pensadores da universidade (16), esta, por suas altas funções culturais, manteve sempre um estreito comprometimento com a nação como um todo, no entanto, a cidade que a acolhe recebe sempre enormes benefícios, como ilustramos com bons exemplos, logo ao início deste tópico.

Com a forte tendência de crescimento da participação do setor terciário (serviços de toda ordem) no produto global (17) os vínculos da universidade com a cidade podem se multiplicar e serem significativamente enriquecidos. A administração municipal (legislativo e executivo), associando-se estreitamente à universidade (18) pode seguramente promover um aumento da qualidade de bom número de serviços que dependam pouco de grandes investimentos em instalações e equipamentos e bem mais da reciclagem de pessoal, tanto à nível de formação quanto de treinamento. A universidade pode também se constituir num elemento extremamente dinâmico para a reorganização dos diferente setores de serviços, pelo que se poderá a muito curto prazo alcançar importantes objetivos: prévio credenciamento dos prestadores; garantia de atendimento profissional competente; reciclagem periódica do pessoal técnico-especializado; supervisão permanente com eventual assistência de nível técnico superior; financiamento para aquisição de equipamento profissional; e ainda muitos outros. Dado, como observamos, o peso crescente do setor serviços, os efeitos positivos sobre os indicadores da qualidade de vida no município serão imediatos, palpáveis e facilmente monitoráveis.

Um segundo ponto a considerar, que se articula com as considerações do tópico anterior, seria a contribuição direta da Universidade para a retomada do processo de integração social que, finda a Guerra Fria, sofreu aqui no Brasil uma extremamente imprópria e perigosa reversão. Pode-se e deve-se assumir a luta por uma rápida e progressiva equalização das oportunidades educacionais. O perfil social do alunato da Universidade Livre deveria refletir o mais acuradamente possível o perfil social da comunidade petropolitana, sua estrutura econômico-financeira devendo ser expressamente planejada para viabilizar tal propósito. Neste mesmo sentido, a Universidade Livre deveria assumir a responsabilidade pela coordenação de um grande programa de melhoria da qualidade do ensino básico, tanto público como privado, especialmente pela requalificação de professores. Tudo isto irá constituir a grande ação afirmativa (19), sem efeitos colaterais, bem diferente da experiência americana homônima, que a médio e largo prazo só faz fomentar os ódios inter-sociais.

Apenas este último passo, dado com coragem e determinação, tornar-se-á, sem dúvida, o principal fator para a diminuição dos atuais índices de violência urbana e, sobretudo, de índices futuros ainda maiores prenunciados pelo atual andar da carruagem. Mesmo do simples e cínico ponto de vista econômico, a sociedade petropolitana e mesmo a municipalidade ficarão destarte no lucro, pois as despesas com este tipo de ação educacional serão bem menores do que aquelas que, de outro modo, elas teriam que incorrer com segurança “preventiva” (em sua maior parte privada) e “corretiva” (preponderantemente pública).



A questão das Tradicionais e Novas Tecnologias de Ensino



Muito graves são nossas carências educacionais, principalmente porque nossas políticas e práticas pertinentes ao invés de tenderem a equalizar as oportunidades, atuam justamente no sentido contrário, de mais e mais acentuam as diferenças sociais. Desta sorte qualquer coisa deve ser aproveitada como pretexto para atacar com vontade este sério problema. Na verdade, uma escola de nível, para todos, poderia ser resolvida apenas com cuspe e giz, embaixo de uma bem frondosa mangueira, mas nossas “elites” jamais tiveram a necessária vontade política para tanto. As novas tecnologias são portanto um excelente pretexto; prezo que não o sejam, como de costume, para adiar a solução deste que é talvez nosso mais angustiante problema social, mas para atacá-lo de rijo. Este problema não é de esquerda ou de direita, mas de sociedade mais ou menos perversa. Deixá-lo em mãos da esquerda não garante em absoluto uma solução, tanto quanto deixá-lo com a direita. O que não se pode é deixa-lo na mão dos perversos, que usam qualquer pretexto, inclusive as novas tecnologias de ensino para fingir que estariam realmente a fim de alguma coisa... A propósito, lembro bem de uma vez que vi, dentro de uma Secretaria Estadual de Educação, a defesa do método Paulo Freire por “intelectuais progressistas” (adivinhem egressos da faculdade de educação de que Universidade do Rio?) que não pretendiam outra coisa senão estreitar mais e mais o universo lexical dos filhos de suas empregadas e de seus porteiros. Pedir a uma criança do interior do Estado que faça um redação sobre um domingo na praia não é nada de catastrófico, caso o professor a julgue literariamente e não do ponto de vista estético do realismo (socialista). Havendo menos ódio de classe e mais sensibilidade humana, poder-se-ia estar assim dando oportunidade, ainda que de maneira um tanto canhestra, a que se manifestasse um gênio ficcional!

Que venham as novas tecnologias de ensino, mas que por isso não se fechem as portas da universidade pública (o que não é sinônimo de 100% estatizada) tradicional ao mais capazes dos grupos sociais economicamente desprovidos, que, como um todo, formam o povão. O Brasil não pode dar-se ao luxo (isto é, à burrice) de desperdiçar talentos, não importa onde eles venham surgir.



A questão da viabilidade Econômico-financeira



Sempre nos recusamos a discutir a questão de recursos para iniciativas realmente sérias. Mas para não dizer que não falamos de grana, sugerimos que se reserve para a Universidade Livre 10% do que é destinado às atividades não muito sérias; ou 5% dos desperdícios; ou 2% de sobras de campanha; ou tão apenas 1% do que vai para o exterior (não seria necessário que fosse de tudo, mas tão só daquilo que se remete irregularmente). E o dinheiro irá sobrar...


Conclusão

Colocar em questão o que vale e valeu sempre a cultura; ou, quanto pesa negativamente hoje para a sociedade a incapacidade e conseqüente dependência científico-tecnológica; ou, a importância que possa ter para uma cidade o fato de sediar a mais alta dentre as instituições educacionais, a Universidade, me parece coisa bem de “elite” brasileira. Senhores e senhoras, por favor, já não dá mais para continuarmos procrastinando a decisão em favor da Universidade Livre de Petrópolis; mas que seja uma universidade realmente para valer.







NOTAS



1. Conferência realizada em 21 de março de 2001 no Fórum de Debates sobre a Universidade Livre de Petrópolis sob os auspícios da Prefeitura da Cidade

2. Não se trata aqui de invenção e menos ainda de mera invencionice. Algo parecido já foi daqui mesmo predito por Stefan Zweig (Brasil, país do futuro), petropolitano por opção, e que não o fazia pelas alvíssaras, mas sim com a autoridade e responsabilidade que trazia de muito longe no mais profundo da alma – a tradição de respeito maior aos profetas bem acima do que se possa prestar à classe sacerdotal.

3. READINGS, Bill. Universidade sem cultura, Rio de Janeiro, EdUERJ, 1996

4. Transcrevamos aqui as considerações gerais do projeto: “Criação do MUSEU DA CULTURA BRASILEIRA, mais precisamente, de um museu das fontes da cultura brasileira e das etapas do seu processo de formação; um centro de referência para todos os brasileiros, que lhes possa fornecer os meios lógicos e simbólicos para o seu auto-reconhecimento, pressuposto essencial para a consolidação, mais célere e em elevado grau, de sua auto-estima. Consoante com sua época, o MUSEU DA CULTURA BRASILEIRA será, concomitantemente, um espaço cívico e de lazer, um espaço de visitação física e virtual, disponível também à tele-visitação.”

Nas justificativas, dizíamos: “ Não é possível negar hoje a força do processo de globalização freqüentemente qualificado como de natureza econômica (tecnológica), mas cuja dimensão cultural torna-se cada vez mais difícil de elidir. Um razoável conhecimento histórico leva-nos facilmente a concluir que, considerado o longo ou mesmo o médio prazo, o que está verdadeiramente em curso é um gigantesco esforço de universalização que, fora consumável, logicamente significaria o fim da história; em suma, outro ele não é senão o empenho delirante de transformação de uma hegemonia histórica (circunstancial) numa hegemonia absoluta. Chegando-se ao pensamento (ou paradigma) único, que poderia mais acontecer senão a eterna repetição de si mesmo?! Não estamos diante de um processo sem “sujeito”, como tanto se propala, mas sim diante do feroz empenho na consecução de uma missão, pretensamente civilizadora, com todo o esplendor sacro que este tipo de auto-imputação coletiva sempre suscita.

Nestas circunstâncias, se aquela missão não é totalmente a nossa, será preciso, de um lado, aceitar o desafio da após-modernidade como se fora ele apenas de natureza econômica, mas, de outro lado, preservar a todo custo nosso acervo cultural vivo onde repousam, em última instância, a integridade e as potencialidades afirmativas futuras da Nação.

Trata-se aqui, pois, de uma proposta de ação estratégica, visando a preservação, a longo curso, de nossa sensibilidade, dos nossos esquemas interpretativos e parâmetros valorativos, enfim, de nossas experiências e tradições histórico-culturais. Sem a justa valorização de nossas raízes, do nosso particularíssimo processo de formação social e de nossas especificidades culturais já afirmadas, a Nação correria sério risco de ser arrastada à desfiguração, à dissolução de seus ainda frágeis laços de solidariedade social, enfim, à perda de sua dignidade ou até mesmo, tragicamente, de sua existência enquanto tal.”

Por fim, assumíamos como objetivos gerais: “Criação do MUSEU DA CULTURA BRASILEIRA (MCB), mais precisamente, de um museu das fontes da cultura brasileira e das etapas, ainda que não completamente acabadas, do seu processo de formação; um centro de referência para todos os brasileiros, que lhes possa fornecer os meios lógicos (a organização conceitual do MCB.), concretos (o acervo físico do MCB) e simbólicos (a significação emergindo no próprio ato de visitação do MCB) para o seu auto-reconhecimento, pressuposto essencial para a consolidação, em elevado grau, de sua auto-estima.

Para se formar uma visão mais objetiva do significado do que aqui se pretende, vale a pena lembrar o papel que exercem o Museu de Antropologia no imaginário mexicano e os museus de American History que encontramos, ao lado dos museus de ciência, em quase toda grande cidade americana. Não é preciso enfatizar que o museu ora proposto, consonante com sua época, já começaria existindo como espaço cívico e de lazer, como espaço de visitação física e virtual, desde a origem, disponível à tele-visitação.”

Esta idéia foi levada às altas instâncias políticas em nível federal, estadual e municipal, porém jamais prosperou. A única observação que deles ouvimos (de todos, com exceção apenas do deputado federal Arolde de Oliveira) foi se nós não achávamos conveniente trocar a palavra ‘museu” por outra de caráter não pejorativo...

5. Declaração mundial sobre educação superior no século XXI: visão e ação – Preâmbulo in ALVES PEREIRA, A. C., PORTELLA, E. et al. Visão e Ação – A Universidade no Século XXI, Rio de Janeiro, EdUERJ, 1999, p. 58

6. Nada pior que o abusivo dualismo do Manifesto Comunista para obnubilar este fato. O problema não seriam em si nem Marx, nem os comunistas, mas todo mundo (particularmente, a classe média) que finge, por conveniência, que nisso acredita.

7. Pode-se provar matematicamente que a acumulação de capital. mantido estagnado ou decrescente o nível de produtividade, leva inexoravelmente à pauperização crescente, e à desintegração violenta da sociedade. Isto já era uma intuição de Marx.

8. As revoluções socialistas foram, de certo modo, a radicalização das posições da classe média onde, à classe dominante, por complexas razões históricas, veio faltar o ímpeto da “iniciativa” empresarial. Onde isto também acontecia, mas no entanto á classe média eram oferecidas compensações consumistas, gerou-se a maior das excrescências – o capitalismo dependente, o capitalismo de livre iniciativa na qual esta, no âmago, isto é, de dentro, raro ou jamais comparece.

9. Não há porque se surpreender com o poder de uma classe social que se constitui no braço armado e na cabeça “pensante” da sociedade global, sem falar de sua presença pouco visível nos meandros da (i)legalidade instituída.

10. É óbvio, que não estão publicamente disponíveis estatísticas acerca da taxa de mais-valia. Entretanto, como a maior parte da formação de capital se dá em âmbito empresarial e assume a forma de lucros reinvestidos, pode-se tomar a taxa de formação bruta de capital como uma medida aproximada da taxa de mais-valia, mormente, para uso em analises comparadas. Nas nações periféricas, temos que convir, a enorme evasão de recursos para o exterior faz com que a aproximação aqui sugerida subestime de fato a referida taxa.

11. SAMPAIO, L. S. Coelho de. Lógica e Economia, Rio de Janeiro, IC-N, 1988 (xerografado)

12. Aliás, não se tratando de um capitalismo predatório como o nosso, isto é o “normal”. Uma característica essencial do capitalismo é que o excedente, ainda que privadamente apropriado, volta ao âmbito econômico sob a forma de investimento – capital é precisamente isto. Por devolvê-lo, ainda que em parcelas diferidas (isto e o que chamamos depreciação) é que o capitalista tem que aumentar progressivamente sua taxa de exploração para não passar por rematado idiota. Daí, por conseqüência, a necessidade que o capitalista se veja obrigado a promover a injeção continuada de ganhos de produtividade a fim de que os trabalhadores não morram ou, antes, preventivamente, o trucidem.

13. Proletariado deve ser aqui compreendido num sentido muito amplo: aqueles que vendem sua “força de trabalho”, incluindo portanto não apenas o proletariado clássico, mas também os trabalhadores do campo e uma série de outros mais.

14. É lugar bem comum dizer que a TV universalizou os modos e modas de Ipanema em todo Brasil. Como não iria igualmente universalizar sua pauta de valores, onde a educação não tem o menor lugar?!

15. O grande mentor deste projeto foi o Brigadeiro Casimiro Montenegro, que por isso deveria ter seu nome posto e reverenciado no Panteon Nacional, ao lado de José Bonifácio, Cândido Rondon e certamente muitos outros (naturalmente, a pesquisar e resgatar do nosso contumaz esquecimento cívico!)

16. Todos os grandes pensadores da Universidade – CASPER, Gethard e HUMBOLDT, Wilhelm von. Um Mundo sem Universidades, Rio de Janeiro, EdUERJ, 1997; FICHTE, J. G. Por uma Universidade Orgânica, Rio de Janeiro, EdUERJ, 1999; ORTEGA y GASSET, José, Missão da Universidade, Rio de Janeiro, EdUERJ, 1999; TEIXEIRA, Anísio. A Universidade de Ontem e de Hoje. Rio de Janeiro, EdUERJ, 1998 – atribuem à Universidade um papel crucial na vida cultural das nações modernas. READING, já citado, de certo modo reconhece isto, apenas acredita que este papel fosse hoje declinante.

17. O setor serviços já estaria representando cerca de dois terços do produto bruto nos países mais avançados. Apenas os serviços médicos em breve totalizaram 20% do PNB americano, que era precisamente o fato econômico por trás da polêmica atuação da Sra. Clinton no início do governo de seu marido. E todos nós vidrados nos jornais e vídeos acompanhando as estripulias sexuais das estagiárias...

18. Dentre as tarefas mais urgentes hoje no Brasil está a de promover a paz do poder político com o saber acadêmico. Céus! um ex-Secretário de Governo de nosso Estado me confidenciou que seu Governador lhe recomendava expressamente não confiar em “gente de canudo”, embora, ele (Governador) não deixasse passar a oportunidade de se dizer bacharel. Ato falho?! A propósito, nada mais anti-pedagógico para o povo brasileiro do que o tipo de “intelectual” que ocupa hoje a Presidência da República.

19. Grupos sociais postos em situações similares apresentam “desempenhos” bastante díspares. Favorecimentos irrefletidos, feitos a uns destes grupos (e não a outros, por não carecerem) é, em certas circunstâncias, passar-lhes um diploma oficial de inferioridade. A nosso juízo, devem ocorrer favorecimentos, porém, de caráter ainda genéricos. Um exemplo do que aqui pensamos foi dado pelo ITA, que fazia concurso em diversas Regiões, reservando-lhes sempre um número mínimo de vagas.

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