15.9.17

Os guardiões da normalidade contra a Lógica da Diferença, por Ricardo S. Kubrusly


No escuro corredor da universidade onde o saber talvez se esconda entre penumbras e acontecimentos, um grupo entre cafés, são doutos com certeza, invisível e pontiagudamente becados, discutem os destinos mais diversos de nossa academia. De um lado, onde uma porta entreaberta separa a lógica da sabedoria, surge e caminha uma idéia recém moldada no infinito, com suas cabeleiras e seus óculos de inventar pirâmides. Dali se escuta o murmurinho da discussão que o grupo anima. Não se distingue palavra mas percebe-se importância. E à medida que deles se aproxima, a idéia atenta, ouvido em riste, o murmurinho se aquieta, até que ao se cumprimentarem, por gesto apenas, um absoluto silêncio corta o corredor vazio. E a idéia que se queria discutida e avaliada além do jeito e maneirismo de quem a transporta trafega o corredor deserto, o murmurinho retorna lentamente, e já distante se ouve claro as discussões bramidas. Não se distingue palavra, mas percebe-se importância. A idéia vaga um corredor sem rumo. Do outro lado talvez, uma outra porta devolva-a de volta a vida.

A Lógica da Diferença aqui apresentada em oito capítulos quase independentes, abre janelas por entre os corredores do pensamento permitido, dando lugar ao outro, o sempre esquecido e o que teima em não contentar-se em ser o mesmo. Reafirma o compromisso da lógica com o pensamento restabelecendo suas ligações eternas com a filosofia, sem porém destruir as tantas estradas físico matemáticas por onde a lógica formal vem caminhando há tempos, mas sim utilizando-as de maneira brilhante para localizar num mapa lógico as lógicas que só a diferença pode e sabe iluminar.

Para a matemática a lógica é um éter por onde navegam as certezas. Quando resolvo uma equação, submetendo a natureza e seus encantos ao governo improvável do número, sei que não faço justiça à sutileza de minhas próprias observações e percepções, mas presumo, enquanto crio a fumaça em que o progresso voa, que este é o um só caminho, o inexorável de um destino homem e pensamento. O resto resíduo e outro que se contente em produzir poemas. Assim crio o que o futuro me espera, alma fausta, sem me dar conta que há uma farsa no fingimento da armadura que me veste.

Será a verdade atenta antes ao poema? O certo tão distante ao verdadeiro que já não possamos mais sem sermos louco, permanecermos cientificamente livres? Seremos condenados à dominação perpétua de ser ou não ser sem poder sermos e não sermos tão contrária e humanamente ou mesmo, indiferentes, nem sermos nem não sermos e atoamente vagarmos pelas maravilhas do pensamento e de suas múltiplas possibilidades? Como iludir e com que ventos, os guardiões da normalidade e libertarmo-nos da prisão exterior de um pensamento elaboradamente complicado e que explica sim, mas ao preço hermético da reação que só permite o novo aos velhos abrindo mão da verdadeira novidade que surge sempre no olhar surpreso e surpreendente dos que vem de fora, onde a luz domina e os corredores tem janelas.

O compromisso de Luiz Sérgio Coelho de Sampaio com o novo é antigo. Temendo menos expor-se ao riso da normalidade científica do que ao risco da falsa compreensão da cópia repetitiva de idéias preestabelecidas, caminha nestes ensaios sobre o saber e o lugar das lógicas, suas classificações e aplicações, indo, ora aliado ao tempo, ora independente das amarras cronológicas, passo a passo, da construção à desconstrução do pensamento.

Iniciando seu trajeto organizacional, Sampaio analisa a lógica transcendental, ou lógica da identidade, onde pelo menos um existe, o primeiro incluído, lembrando no entanto que o ser consciente tem que ser consciente de que é consciente e estruturando esta recursividade de uma maneira algébrica simples e clara que há muito se fazia necessária na literatura filosófica. Sua lógica da diferença aparece então dando lugar ao outro, que também pensa e existe, o segundo incluído, formando com a da identidade um par fundamental e inaugurador de todas as possíveis lógicas. A noção matemática espacial de base geradora aponta as combinações que formam as diversas lógicas, incluindo entre outras, a clássica como a lógica da dupla diferença.

A determinação dos valores verdades como eigenvalues, os valores próprios das equações determinantes de cada lógica e sua explicação através da analogia dos processos de medidas na mecânica quântica é de uma beleza espontânea que não só auxilia a compreensão das diversas possibilidades lógicas, como também, dos modelos quânticos utilizados em sua analogia.

Como demonstra Sampaio, é a lógica da diferença que melhor possibilita o entendimento das novas tendências de libertação do aprisionamento causado pelo princípio do terceiro excluído que impossibilita a inconsistência e/ou a incompletude necessárias a uma lógica que se quer humana, embora racional. É a liberdade de poder errar, tão afeta aos devaneios da poesia, que é recuperada no domínio da ciência, sem concessões ou apelos dramáticos tão comuns nas tendências esotéricas que hoje visam resgatar os ditos valores humanos esmaecidos pelo frenesi numérico computacional que nos vemos mergulhados nesta virada de milênio.

Lógicas paraconsistentes e paracompletas surgem espontaneamente da lógica da diferença. Numa análise criteriosa das diversas tendências, Sampaio, tomando emprestado a estrutura de um grupo algébrico, propõe um teste para os cognitivos lógicos, que se mostra preciso e simples permitindo uma análise definitiva das qualidades e defeitos dos modelos lógicos recentemente propostos.

Nos últimos capítulos, nos divertimos e nos encantamos pelos caminhos da filosofia, psicanálise, história e suas interligações com as lógicas. A lógica do significante usada por Lacan em suas teorias psicanalíticas é analisada de maneira clara e seus matemas perdem a aparência de horrores matemáticos reaparecendo cristalinos dentro da lógica da diferença. Finalmente a história das culturas é apresentada. Desejo, fingimento e superação produzindo o movimento necessário que leva o homem da sua pré-história aos dias de hoje. O Brasil de hoje também é visitado pelas óticas lógicas de Sampaio. Imperdível.no paragrafo 10

A Lógica da Diferença não pode faltar a qualquer biblioteca que se queira atual. Tem seu lugar garantido nas prateleiras tanto de filosofia como de lógica e/ou matemática. São textos que ensinam e promovem criatividade, paixão e as vezes a ira do leitor, que se vê irremediavelmente envolvido pela trama lógico literária de Sampaio. É impossível atravessá-los impunemente, sem ver-se a si modificado e modificando, página após página, o próprio conceito de verdade e de sua construção. É um trabalho na linha direta das desconstrucões dos mitos e verdades matemáticas, herda a coragem das geometrias não euclidianas, a musicalidade e a arquitetura dos transfinitos de Cantor e a previsão humano-futurista dos teoremas de Gödel. É o raro, mas uma vez deixando sua marca indelével no pensamento humano. Os corredores universitários continuarão empoeirados e não se abrirão em luzes após a lógica da diferença. Talvez alguma janela se abra, alguma nuança de cor reaviva os cantos e as sombras, mas não se iludam, a penumbra ainda será o esconderijo da idéia que solitária trafega sem ser ouvida por entre o murmurinho dos guardiões da normalidade. As portas não se abrirão ao grito novo do novo, mas vida e desejo, quem sabe, hão de encontrar saídas e o outro lado, este lado como queria a poesia, superará o fingimento da modernidade globalizada, dando lugar à múltiplas possibilidades onde verdades se encantam em se saber humanas e verdadeiras. Será finalmente, num tempo reinventado e sopro, a vitória e o entendimento da razão, ou não?

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