7.8.17

Dona Flor e seus dois maridos - notas de aula

Luiz Sergio Coelho de Sampaio
para José Miguel Wisnik

Uma primeira tentativa de mobilização das lógicas – no sentido amplo que lhes damos, incluindo as lógicas fundamentais, transcendental (I) e da diferença (D), e ainda as lógicas derivadas, dialética (I/D), clássica (D/D) e a mãe de todas, a lógica hieperdialética (I/D/D) – como instrumento de análise lingüística/literária foi feita por Edson Garcia em sua tese de doutorado A Difração da Pessoa no Discurso – As linguagens e suas gramáticas (1).

Ainda na década de 80, não sabemos mais precisar se antes, durante ou depois do trabalho de Garcia (à época, ele era funcionário da EMBRATEL sob a nossa direção), esboçamos a análise de Dona Flor e seus dois maridos de Jorge Amado, cujo esquema vai mais à frente reproduzido, com muito poucas alterações em relação ao original, que ainda preservamos na forma de transparência para retro-projeção. Esta “análise lógica” vem, desde então, sendo de hábito apresentada em nossas aulas, ultimamente, nos cursos de Filosofia da Cultura no IFCS-UFRJ, com o propósito de ilustrar a amplitude de uso e o poder das lógicas.

Estas notas, em particular, foram provocadas por dois eventos recentes. O primeiro, de caráter emocional, foi um telefonema recebido em fins de 2000 do sempre sensível e amável José Miguel Wisnik, que nos dizia já estar, por uns longos três anos, para nos contar que vinha se valendo de algum de nossos escritos e/ou idéias lógicas para ajudar na compreensão da problemática cultural brasileira, sempre com sucesso entre seus alunos. Agradecemos imensamente, só reclamando que tivesse demorado tanto para nos passar tão grata informação. O segundo, de caráter mais intelectivo, foi termos percebido, de repente, no transcurso de uma aula no IFCS-UFRJ, que a literatura hoje, mais do que as histéricas, constitui a maneira de, momentânea e imaginariamente, escapar ao mal estar trazido pelo processo de cálculo do mundo, no qual obsessivamente se empenha a Modernidade – este é mesmo o seu desejo mais essencial. A ficção artística (aí incluindo-se também o cinema) estaria funcionando como uma válvula de escape, evitando assim a implosão das subjetividades castradas por todos lados. Os principais antecedentes desta conjectura, que me lembre, foram:

a) o mito da origem da sexualidade a partir do andrógino, tal como narrado por Aristófanes, no diálogo platônico Banquete;

b) a observação que os autores, como igualmente os leitores de ficção só alcançam a mútua compreensão se se deixam elevar a um “plano de existência andrógina”; quem não se apaixona/apieda por Ana Karenina, mesmo sabendo que ela vem ao mundo pela pena de um velho barbudo?!


c) que a posição andrógina é instável (ver figura 1) por estar no extremo superior de um processo de auto-edificação, o que significa que a assunção de gênero é uma condição de estabilização, permitindo ulteriores e mais complexas construções sociais.




Figura 1 – Agregação além de I/D/D entre humanos


d) que Hölderlin pirou, na verdade, por querer se manter no mais elevado, mais perto dos deuses, e por isso caiu de costas (como poderia acontecer a uma criança que após subir a escada de um brinquedo de escorrega, insistisse em se manter de pé lá no topo, para mais curtir a conquista das alturas, ou seja, da contra-gravidade); daí, certa “frieza sexual” na sua poesia.

e) A observação de Yerushalmi, em seu livro Zakhor, que a forte tensão interna no judaísmo de nosso tempo entre a tradição (I) e o historicismo atual (I/D) não se resolverá por um ou outro lado, mas pela verdade dos romancistas: O Holocausto já engendrou mais pesquisas históricas que qualquer acontecimento da história judaica, mas não tenho dúvidas de que sua imagem esteja sendo forjada, não pela bigorna do historiador, mas pelo cadinho do romancista.

E acrescenta: O divórcio entre história e literatura tem sido calamitoso para a narrativa histórica em geral e a judaica em particular,.... Aqueles que estão alienados do passado não podem ser levados a ele somente através da explicações; necessariamente também de evocação.

Além da “análise lógica” de Dona Flor, costumamos fazer uma breve incursão em A Insustentável Leveza do Ser, de M. Kundera, que nos parece um autor especialmente apropriado para este tipo de exercício intelectual. É óbvio que a presente “análise lógica” só ganhará força definitiva quando aprendermos a utilizá-la “contra” quaisquer obras maiores da literatura (aliás, também como um meio para ratificar ou retificar juízos que tais).

Quanto a Dona Flor, cremos que a figura 2, abaixo, diz quase tudo. Fica evidente que Jorge Amado, para enfatizar a qualidade de super-mulher (baiana) de Dona Flor, a faz capaz de ocupar sozinha, na plenitude, as duas posições lógicas femininas: mãe (D) e filha ou virgem (I/D).

Em contrapartida, reforçando esta imagem, precisa convocar dois homens para ocuparem as posições masculinas: de um lado, Vadinho, aquariano, disponível e inaugural (I); de outro lado, o Dr. Teodoro, obsessivo, quadrado, cheio de meias e gavetas (D/D) (para admitir algum pendor artístico neste último, teria que ser o de mero executante, ademais, de um instrumento que assume em geral a condição de fundo/baixo; em resumo, o de fagoteiro (está certo?!).




Figura 2


Caso isto representasse a estrutura social baiana estaríamos diante de um mero ”relatório” (de um pós-modernoso estudo de culturas!) e não de um verdadeiro romance. A obra de ficção emerge precisamente de um giro de 90 graus, dissimulando a crua verdade social, na qual um pai de família (em geral da classe abastada, mas não só) tem uma esposa em casa, que transforma em mãe, e sustenta uma jovem (filha) na “rua” (3), de quem é amante.

Surge então, o caráter incestuoso recôndito das relações: ele dorme com a mãe em casa e com a filha na “rua”, o que faz, para muitos, a trama ainda mais “excitante”. Dormindo com três gerações, entra no “ritmo” do fluir feminino. (Ver figura 3) Ora, como as mulheres são telescópicas, saindo umas de dentro das outras, indefinidamente, a elas se “emparelhando” (na cama), o maleável baiano conquista, sem muito esforço – que ele não é de duro ferro, a exemplo dos pernambucanos –, enfim, a vida eterna, now.





Figura 3




NOTAS

1. GARCIA, E. A. A Difração da Pessoa no Discurso – As linguagens e suas gramáticas, Faculdade de Letras - UFRJ, 1986.


2. Idêntico fenômeno ocorre no reino das partículas elementares, onde próton e nêutron fazem as vezes de masculino e feminino, para permitir a construção, em níveis, do mundo físico tal como o conhecemos.



Para detalhes ver SAMPAIO, L. S. C. de, A re-significação cósmica do homem e do processo de sua auto-realizaçào cultural in Filosofia da Cultura (no prelo).

3. As relações entre a casa e a “rua” são bem mais complexas e menos anedóticas, do que em geral se supõe. A considerações lógicas (ressuscitadas, em que pese Lévi-Strauss e seus assanhados epígonos em Pindorama), aqui ilustradas, podem agora abrir novas e mais criativas perspectivas para o nosso “pensamento” antropológico.

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