Não há nada de arbitrário ou exagerado no juízo histórico que aqui fazemos; ele é apenas a tranqüila e justa avaliação do que foi o século XX. Um século perdido, gasto em atrito, em que a humanidade a bem dizer andou de lado, procurando alternativas imaginárias ao capitalismo perverso que, a rigor, feito o balanço, não passaram da busca insana pelo capitalismo perfeito (perverso). Isto, porque não se colocava a menor dúvida (1) a respeito do que mais importava: o domínio da ciência, movida pelo obsessivo propósito de calcular, literalmente, Deus e o mundo. Toda contestação resumia-se, no fundo, apenas em querer ver a ciência desassociada do subjetivismo extremado ou do sujeito liberal. A esquerda, queria vê-lo substituído pelo sujeito tirânico coletivo (os sovietes), ao passo que a direita, pelo sujeito romântico carismático ou “espírito do povo” uniformizado. No auge das confrontações, Walter Benjamim fazia o seu bem conhecido repto/diagnóstico: a direita se propõe à estetização da política ao que a esquerda responde com a politização da arte, porém, não se apercebendo que, enquanto assim especulava, acontecia a reincidência aprofundada do mesmo: a ciência seguia sua marcha batida pelo século a dentro (2).
No final do século XX, que se viu? A arte se des-fazendo em instalações e performances descartáveis e a política transformada em um mega-espetáculo tragicômico, com reduzidíssima platéia (alguns poucos empresários, banqueiros, traficantes, “bispos” e marqueteiros). Sem que ninguém se desse conta, o capitalismo brutamontes de acumulação dos primórdios se reciclava, já agora mobilizando sua grande reserva estratégica – o imaginário das massas –, consolidando-se afinal como consumismo globalizado, o capitalismo etnocida compulsivo de nossos dias. O século XX, acabava até um pouco pior do que começara.
Mas não há que desesperar. Ingressar de fato no terceiro milênio, hoje, já não exige nenhum acontecimento catastrófico, nenhuma grande convulsão social, nenhuma onda de sacrifícios heróicos, pois os tempos já estão para lá de maduros. Não estivéssemos ainda tão apegados aos graves equívocos do século que passou (ou que ainda não passou), negando-nos a um pequeno deslocamento de cabeça, apenas meia volta, daríamos de cara com a cara risonha do novo milênio paciente sentado nos esperando.
É bom alertar: o que vamos expor não é difícil de ser compreendido (e vamos tentar explicar com todo zelo e paciência), mas também não é nenhuma trivialidade que permita ao vidiota infantilizado continuar crendo que a verdade só lhe chega pela TV, no intervalo entre dois plin-plins. Há que se fazer um mínimo esforço para voltar a pensar.
Seriam apenas três, a nosso juízo, as condições para o efetivo ingresso no terceiro milênio:
1. Desbloquear a lógica, fazendo explodir o atual monopólio lógico-formal; como conseqüência, re-visar a história, trocando a dietética dialética por uma mais ancha e complexa hiperdialética, esta sim, capaz de abarcar a cultura científica atual
Nenhum poder perdura pela força das armas, mas pelo insidioso controle das cabeças, ou seja, pela ideologia. Na modernidade, também acontece assim, mas com uma peculiaridade, na circunstância, também um agravante. Porque ela é a cultura que sabe de onde provém sua força, deslocou subtilmente a potência controladora da idéia para a logia (ou lógica). É dado a qualquer um virar de cabeça para baixo as mentiras e meias verdades do discurso do poder, desde que preserve sua lógica. Seja qual for a carantonha revolucionária, seja qual for a contundência do slogan crítico/subversivo, basta estampá-los em milhões e milhões de posters e camisetas e distribuí-los por toda parte; e tudo vira moda. Impõe-se a lógica do sucesso, que é a lógica da eficiência, que é, por sua vez, a lógica formal ou do cálculo.
A tarefa primordial para uma subversão possível é explodir com o exclusivismo da lógica formal (se vige o pensamento único, é porque vige a lógica única, nada mais óbvio!). Isto significa primeiramente historicizar a lógica formal, desvelar seus antecedentes concomitantemente lógicos e históricos, o que resulta numa imediata iluminação de horizontes, deixando-nos ver algo que ali já se delineia com alguma nitidez. È difícil saltar um fosso de 1 metro e meio estando de pé parado à sua borda; basta no entanto recuarmos 3 ou 4 metros, tomar um pouco de impulso e facilmente atingimos a outra borda.
Ao contrário do que divulgam os especialistas, inclusive os mais ilustres, a lógica não nasceu com Aristóteles (3), mas com Heráclito (o logos), Parmênides (o pensar transcendental do ser) e Platão (a dialética da idéia), e só depois, sim, puderam advir os formalistas estóico-megáricos (lógica proposicional) e Aristóteles (lógica de predicados).
Havendo a honesta disposição de pensar os antecedentes da lógica formal, se nos abre automaticamente a possibilidade de pensar para além dela, e assim, igualmente pensar para mais além da ciência, não para aboli-la, mas para forçá-la a passar de fim a meio.
Aqui, o paralelo com o que aconteceu à filosofia nos primórdios do cristianismo, é mais do que eloqüente. A teologia cristã não aboliu a filosofia grega precedente, mas fez dela sua serva e é bem disso que hoje se trata. Heidegger diz com precisão que a ciência não pensa e sim calcula, como se administra um capital. Lacan vai mais longe e nos diz que há quatro tipos de verdade: a verdade total (verdade transcendental, do tipo penso logo existo), verdade parcial (a do gozo, pois se fagocitarmos por inteiro o outro, não haveria mais do que gozar), a verdade total e parcial (verdade política, a da parte – o partido – que se pretende também verdade da sociedade como um todo) e, por fim, a verdade que nem é total nem parcial, em suma, a verdade que nada quer saber da verdade, a “verdade modelar” (4) da ciência. Abolir a modernidade e o seu peculiar modo de produção é sinônimo, pois, de fazer da ciência serva do pensamento. Não temos dúvida que a classe sacerdotal dos físicos ouvindo isto é bem capaz de querer nos mandar para a fogueira.
Agora aparece evidente o grave erro dos marxistas: querer enfrentar a lógica da ciência armados apenas com a dialética hegeliana. Esta é, na circunstância, como o rio heraclitiano, um fio d’água que desce a montanha, ajuntando pequenos afluentes, em mil peripécias até chegar ao mar. Um dia aparece a ciência e constrói uma enorme represa e ali o rio se acaba. A jusante da represa doravante não há mais rio, mas um fluxo d’água administrado. Quando eventualmente acontece uma cheia, o reservatório a absorve e se ainda assim há excesso d’água, abre-se quantum satis o vertedouro. O reservatório é a lógica formal capaz, pelo que foi calculado, de paralisar o fluir das águas; o vertedouro é uma espécie de válvula de escape, assim como é o sonho em relação aos nossos desejos recalcados. A única saída agora é pensar um rio caudaloso que faça ir abaixo a represa e seu vertedouro, ignorando todos os cálculos feitos pelos engenheiros a serviço do capital. Se doravante quisermos voltar ao cálculo, o façamos antes pensando, isto é, a serviço do homem, mas, respeitando o grande rio hiperdialético da história, aqui acolá retificando seu curso, fazendo aproveitamentos elétricos ou de irrigação, sem a pretensão, no entanto, de refazer a obra telúrica, ou divina, se quisermos.
Desvelar a lógica verdadeiramente humana acima da lógica da ciência não deve, entretanto fazer-nos cair no mesmo erro de Hegel. A nova lógica hiperdialética é a máxima lógica mundana, hierarquicamente superior à dialética, mas não é necessariamente a lógica do Absoluto. Ao contrário; agora, sim, pela primeira vez em sua história o homem estará concebendo a religião de modo não idolátrico; estará se perguntando pela vez primeira por um Deus além de sua própria lógica, portanto, não susceptível de ser capturado por velhas ou novas classes sacerdotais.
Marx pensava a religião como ópio do povo, Freud como uma neurose obsessiva compartilhada; tinham toda a razão pelo que chegaram a conhecer da história cultural da humanidade. No entanto, depois da modernidade tudo será diferente...Deus estará enfim a salvo das artimanhas lógicas dos sacerdotes (5) do mundo. Se quiser, agora pode retornar e nos salvar – como ansiava Heidegger –, se é que estaria ainda disposto...
2. Abandonar a história econômica (materialista) em proveito de uma bem mais compreensiva história da cultura
Acreditar que a história da humanidade é uma história econômica, uma sucessão de modos de produção cada vez mais eficientes; que o objetivo das comunidades humanas é aumentar ano a ano sua produtividade para poder assim aumentar a produção até o completo esgotamento de todos os recursos naturais, poluindo irreversivelmente seu próprio habitat, é acreditar que, diferente de todas as demais genes (egoístas), o nosso é por excelência suicida. O homem, por ter perdido, com o advento da modernidade, o sentido da vida (ainda que fosse aquele um sentido limitado e até parcialmente equivocado), deu-se como compensação, a transformação de meios em fins, de gramática em discurso, do sentido (posto em suspenso) seu exato contrário.
Quando olhamos de longe, vemos que de certo modo assim estava escrito: por três vezes o homem negaria o Ser ou o Sentido. Primeiro, na cultura sedentária neolítica, através da classe sacerdotal e seu corpo de escribas, tentou corromper os deuses, lançando mão de sacrifício de mamíferos domésticos de médio porte (inclusive gente), de presentes caros, sem falar, naturalmente, dos encantos mitopoéticos. Depois, na cultura trágica ou prometéica grega, destemida, encarou de frente os deuses e sua picardia, valendo-se da engenhosidade retórica de seus filósofos. Finalmente, na cultura cínica científica moderna, empenha-se em banir de vez os deuses por força do escarafunchar, medir instrumental e cálculo de todos as coisas e recantos do mundo. Tínhamos mesmo que passar por isto.
Já está na hora, entretanto, de pormos a cabeça no lugar e perceber que a história do desenvolvimento das forças produtivas de fato acontece, mas só de maneira subsidiária. A história da humanidade, em sua primeira fase esotérica, teria mesmo que ser a história do seu auto-desvelamento, da busca de um encontro consigo mesma ou de sua destinação logicamente constitutiva (impressa, parte em seu ADN, parte em sua neocórtex). É, tal como especulava Hegel, a história do auto-desvelamento do espírito, mas não de um espírito trinitário e pretensamente absoluto, e sim de um espírito maior, qüinqüitário, contudo, decididamente não absoluto. Isto quer dizer que só a partir deste encontro começará uma Outra História: nesta segunda fase exotérica, o homem reconciliado consigo mesmo, irá assumir então, na plenitude, sua responsabilidade cósmica. A história da humanidade como mera história econômica nos parecerá simplesmente ridícula, o que não pode ser elidido por mais sofisticado e caro que sejam o fato e a armação (de óculos e outras) do ministro que o diz.
3. Reinterpretar o dualismo brasileiro com a conseqüente valorização e assunção plena do nosso particularíssimo ponto de vista histórico
Atendendo-se às duas condições precedentes – trocar a dialética pela mais potente hiperdialética da história; trocar o registro econômico pelo bem mais abrangente registro cultural –, nós brasileiros podemos ter então uma idéia bastante mais justa e precisa de qual o nosso lugar presente na história e qual possa ser o nosso melhor destino. Conclui-se imediatamente que o Brasil não é Belíndia (6), como interpretado pela "elite intelectual". O dualismo que todos diagnosticam não representa a conjunção de modernidade e atraso (obviamente dos mais pobres e excluídos), mas, de adesão parcial à modernidade coetânea à repulsa a seus perniciosos e falsos encantos, especialmente, na ótica do "povão".
Essa recusa teimosa em ingressar todo como um tolo na modernidade é, fundamentalmente, um guardar-se para algo maior e mais além; não se trata de algo tão estúpido como “exportar ou morrer” e sim, de escolher entre a insignificância e relativa independência cultural, entre o luxo e a originalidade. Portanto, o que para nós mais importa e deve contar, não é o risco Brasil, mas o ponto de vista Brasil (7) – quinhentos anos de agruras e sofrimentos que nos dão o privilégio de algo bastante nobre e singular, conquanto que também bastante singelo: ser um ponto de vista, o mais relevante, para hoje, olhar a frente e de frente, o futuro da humanidade.
Luiz Sergio Coelho de Sampaio
Rio de Janeiro, 8 de agosto de 2002
Notas
1. Havia, na verdade, a voz de Heidegger, mas que acabou se anulando por vir de mistura com uma certa cacofonia histórico-filosófica germânica.
2. A física desde sua consolidação no século XVII, vinha sendo, em essência, a mesma; apenas testemunhávamos seus profundos e vastos desdobramentos. De 1900 a 1930, menos do que o tempo médio de vida útil de um único cientista, vimos surgir a relatividade restrita e geral, a mecânica quântica e a eletrodinâmica quântica, esta última, a mais precisa das teorias até hoje desenvolvida pelo homem. Que seria então razoável esperar desse inesperado acúmulo de revoluções teóricas, logo ao alvor do século XX?
3. Ver a lapidar Pequena história da lógica contemporânea, de Newton da Costa ; Caderno MAIS! da Folha de São Paulo, de 4 de agosto de 2002, pp18-19
4. A noção de modelo conota justamente esta falta de comprometimento ontológico (com a verdade) do saber científico. Lembrar, a propósito, que toda a enorme roubalheira das privatizações foi precedida de um badaladíssimo processo de modelagem. E estão todos soltos por aí ...
5. É preciso ouvir 10 minutos do discurso do bispo Macedo para se convencer do que ele pensa quem seja Deus e meditar outros 10 minutos acerca das razões palas quais aquele discurso funciona. Concluirá que trata-se de um discurso perfeitamente homólogo ao do Ministro Malan, que por sua vez é homólogo a qualquer comercial da TV. Ou Deus se curva às regras do mercado, ou roda.
6. Não é apenas a “letra” que se desfaz, mas também a própria ignorância metafórica, pois do ponto de vista cultural a Bélgica (perdoe-me a encantadora Bruges) nem de longe se pode comparar à Índia.
7. Esta noção de ponto de vista Brasil pode ser de certo modo generalizada em duas direções: uma, para abarcar a totalidade da América Latina , noutra para abarcar o Atlântico Sul, incluindo assim a parte sul do continente africano. Ou, quem sabe, ambas?
Creio que estamos sem visão, sem perspectiva, sem mensagem, e o pior, sem esperança. A cultura atual pode de uma hora para outra entrar em profunda crise, mas voltará revigorada porque nada pensado há hoje para ser posto em seu lugar. É necessário abrir espaço para a insurgência de um renovado pensamento e vontade utópicos. Três condições para o efetivo ingresso no terceiro milênio é um esforço quase desesperado de buscar uma solução para tão grave problema. Tudo aqui se resume a três propostas de certa radicalidade:
a) visar a história não mais pela dialética, mas por uma lógica mais complexa, ainda que da mesma família, que vamos denominar hiperdialética;
b) trocar o registro econômico pelo bem mais abrangente registro cultural (o capitalismo é apenas o modo de produção de uma coisa maior: a cultura moderna de base científica)
c) por sua saga já vivida, considerar o Brasil, um ponto de vista privilegiado, tanto para a compreensão, como para o exercício de uma praxis socio/cultural realmente transformadora.
Apenas o item (a) pode, a princípio, apresentar alguma dificuldade de compreensão. Vejamos: nós somos de modo incontestável uma consciência, um poder identitário (I) – podemos dizer um disto e daquilo, especialmente, de nós mesmos. No entanto, vivemos numa condição encarnada, espacialmente limitada; temos um corpo que nos articula ao outro, (D). Isto nos obriga à luta ou ao diálogo, vale dizer, ao pensar dialético (I/D). Um animal evoluído, dotado de sistema nervoso central, chega até aqui.. Mas o homem inventou a lei convencional, e daí, a cultura, que dá consistência ao ser social. O fez, inicialmente, forçando a dialética contra a verdade do corpo num movimento contradialético. Destarte, provocou o aparecimento de um outro, D, que não dialoga, simplesmente fala em nós, o inconsciente; ele nos obriga a ouvir. Governado pela identidade, acabou tendo que juntar tudo. A situação humana na sua plenitude implica pois uma identidade e duas diferença, um outro lá fora e um outro (inconsciente) aqui dentro, isto é, a hiperdialética I/D/D e não apenas a uma identidade e uma diferença, isto é, a dialética I/D. A lógica da ciência, e por isso também a da modernidade, opera com duas diferenças, D/D, como um microcomputador, situando-se pois entre a dialética e a hiperdialética. Para enfrentar o capitalismo, precisamos necessariamente mais que um pensar dialético, precisamos de um pensar maior, hiperdialético. As revoluções socialistas marxistas estavam por isso condenadas a priori. Marx serve para dar partida à crítica do capitalismo, mas não para acabar com ele, que é o que precisamos. O resto, daí por diante, torna-se mais ou menos trivial.
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