5.4.17

Bases para a urgente formulação de uma estratégia (cultural) brasileira


Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização 

Manoel Bandeira. 


Triste situação, a brasileira: ao mal-estar na Modernidade, junta-se o mal-estar da condição de “marginalidade voluntária”. Deveras, que pode haver de mais constrangedor do que estar sempre por baixo, de bruços, na era da prostituição generalizada? Os ônus por anos a dentro chegam sempre de véspera e agigantados; os gozos minguados e quase sempre frustros ou ad eterno diferidos. A insistência e os repetidos fracassos dos projetos de modernização geram o cansaço. A causa, dizem: um dualismo, alguns nos chamam Belíndia, que, no entanto, é flagrante paradoxo; não somos nós coetâneos à Modernidade? Já não seria tempo de trocarmos o nosso crônico mazombismo acadêmico classe média pelo gosto de uma autêntica auto-compreensão?

A nulidade crítica das ideologias não autoriza mais esperanças. O século XX demonstrou, com enxurradas de fotos, filmes e tapes e às vezes por trás também fatos, a violenta impotência (que era já constitutiva) das ideologias. Elas visavam apenas substituir o sujeito liberal (sujeitado) da ciência, concomitante a uma furtiva inversão de mando: a esquerda, optando pelo sujeito coletivo; a direita, pelo sujeito romântico ou telúrico. Almejavam, todas, o capitalismo sem jaça, o círculo quadrado perfeito. Não há mesmo saídas laterais, daí, o império hoje do pensamento único. Mas, não se provou que não possa haver alguma saída, o que, por suposto, nada tem a ver com a rósea e nauseabunda terceira via(dagem) social-democrata (mais uma!). Torna-se agora óbvia a carência de uma compreensão histórica profunda (logo, histórico-cultural) para mais além das ideologias.

E a filosofia e mais as outras tantas “ciências” do homem? Embora precisem ser todas elas levadas em conta e muito a sério, é inegável a insuficiência, de um lado, do hegelianismo e do marxismo, de outro lado, da psicanálise, da lingüística e do estruturalismo antropológico. Idem para os híbridos: a “história” das mentalidades e o conglomerado frankfurtiano. Heidegger, vale ser atentamente ouvido mas não seguido (tal como valem os poetas). Propõe-se então a releitura da história da cultura parametrizada pela lógica. Como condição, obviamente, exige-se sejam as lógicas - as mesmas que lá estão mais ou menos soterradas na tradição - antes ressuscitadas, por si e conjuntamente reavaliadas, entretecidas e pró-jetadas. Uma história hiperdialética é o mínimo que se requer, por coerência, para dar conta do processo de auto-desvelamento do ser lógico-qüinqüitário do homem. Em retrospecto, contemplamos a seqüência já realizada, muito nítida, das culturas, desde a irrupção das tribos nômades de caçadores/coletores do paleolítico à atual modernidade científica.

Necessidade de uma pirueta, a mais ousada: a passagem da estática à dinâmica cultural. Uma cultura e doravante três lógicas associadas. Em conseqüência, também três tempos para cada: o tempo morno da lógica que ela sacraliza, o tempo intenso do desejo de sua lógica recalcada, o tempo desesperado fingindo ter-se tornado a lógica de sua própria superação. A força do impossível desejo de regressão lógica é o melhor guia no retrospecto reiterado: na vertente lógico-identitária, sucessivamente, o desejo da volta à animalidade (o mais velho ancestral do “desejo de morte”), o desejo da terra prometida (à exceção dos primos palestinos preteridos!) e o desejo do corpo espiritualizado incorruptível (é só lembrar quantos, hoje, são os museus abarrotados de arte sacra!); na outra vertente, lógico-diferencial, sucessivamente, o desejo de origem (o mito), o desejo do ser-uno (a velha filosofia) e, ora, ainda vigente, o desejo do ser-uno-trino (a física, da mecânica newtoniana de pontos materiais ao campo escalar de Higgs ).

Um zoom sobre a Modernidade, que queremos ver pelas costas (não nossas, mas dela). Recordando: o confronto com o fingimento escolástico (reza a anedota que um ‘lixo’ no dizer, moribundo, do disciplinado e terno Doutor Angélico); a pré-modernidade ibérica, as navegações e a expulsão suicida - que o diga Vieira! - dos cognominados ‘da nação’; a tortura metódica (para que se confessassem números) de todas as coisas por meio de instrumentos e a medida pela fé de imaginários excessos sexuais femininos – enquanto se forjava o novo órganon exercitava-se à larga a caça às bruxas; o Protestantismo e a incontornável invenção, pela sola fide, do sujeito liberal (no cinema, o didático herói john fordiano). Inicialmente, o capitalismo calvinista de acumulação intensiva (a história desnaturada, “história” calculada) e, na continuidade, o mesmo já do avesso, o capitalismo consumista extensivo (desejos, sim, mas domesticados adrede pelo marketing); daí, pela ordem, note-se, as correlatas “contestações” ideológicas, à esquerda e à direita. Tudo tão célere que talvez se tenha hoje já à mostra os primeiros sinais do inexorável declínio. Como tanto se almeja (mais os tempos; nem tanto, meio sonolentos, os homens só de carne e osso!), a história desbloqueada. Enfim, a certeza de uma futura cultura hiperdialética ou lógico-qüinqüitária.

Para desvelar e seduzir (e por que não também um pouco para iniciar uma mobilização?), eis alguns traços marcantes do que será a cultura lógico-qüinqüitária: o remanejamento das relações indivíduo/sociedade no plano político, econômico (entre as surpresas, aqui, a viabilização da oferta planejada!) e cultural; a re-significação cósmica do homem (tanto quanto do cosmos pela cultura!); a re-significação religiosa (o fim das idolatrias, por conseqüência, do fundamento lógico de todas as dominações sacerdotais), expressa pela reversão do desejo da cultura, pela primeira vez, em direção ao ser de fato transcendente; o ser-feminino à altura exata do ser-masculino, o mesmo valendo para as respectivas verdades: gozo e vitória nivelados à alétheia e adaequatio (o que nada tem a ver com o retorno ao mítico andrógino de Aristófanes). Sobretudo, a nova verdade qüinqüitária e seu método correlato: o amor pela “leitura”.

Agora nós, os brasileiros. O peculiar processo de formação da cultura brasileira. Fontes diversas recapitulando a história hiperdialética da cultura. Etapas intermediárias: a formação de uma territorialidade, obra de desmedidos mamelucos; após, com a descoberta das minas, a formação de uma interioridade, obra de seletos mulatos; por fora, a tez e, por dentro, a inteligência e a sensibilidade destes e muitos outros, cada um trazendo sua cota parte à nossa bela geleia geral. Entrementes, porque não se tratar até agora de obra acabada, é preciso estar alerta aos perigos da globalização, que em essência é cultural e por isso, em seu propósito último, resolutamente etnocida. Na linha de frente (do inimigo), nossa elite burra, pedante, prepotente, cruel e debochada, para baixo; subserviente, despudoradamente entreguista, para cima; para nossa sorte, na linha de resistência, sempre viva, a grande “marginalha” rural e suburbana, que é a gente que de fato conta se o caso é cultura (não economia & finanças). Clarifica-se, afinal, o paradoxal dualismo: na verdade, uma resistência não reativa, mas prospectiva, em tudo clarividente (um reservar-se, um se pôr sempre um pouco à parte) à modernização: trata-se do povão fiel ao seu destino. De modo algum somos Belíndia, mas a vontade de Pasárgada, onde, em verdade, seremos tudo e por cima todos amigos do rei.

Há opções, deveras, para quem possa e as queira: uma, trombeteada, como se fosse a última e única, a elitista retardatária pelo luxo (a rigor, apenas pelas suas sobras e dejetos); a outra, à capela e murmúrio, a popular auroreal pela originalidade. E por que não, a originalidade? Trata-se da edificação da cultura nova hiperdialética ou lógico-qüinqüitária - um novo modo de ser-consigo-mesmo, de ser-com-o-outro, de ser-com-todo-mundo-às-pazes-com-o-Absoluto. Ela é o cumprimento de uma destinação por demais humana, sem deixar de ser também sobre-humana (ao invés do super-homem, o super-cosmos, elevado à altura do homem logicamente à sua espera, dando alma a uma nova versão - nem forte, nem fraca, mas significante - do princípio antrópico).

Reagindo à inexorável superação, está a artimanha do inimigo: se fingir de sua própria posteridade. Eis, na cara, escancarada, a pós-modernidade. Na TV e por todo canto, todos os dias, a boa nova: os prodígios da biopirotecnia, a promessa do homem quimicamente puro e sem defeitos de usura ou de fabricação - a vida eterna, now. Pessoalmente, é bem difícil resistir?! No entanto, virá a grande depressão (econômica), depois outra e mais outra, seguida, de repente um dia, pela grande depressão psíquica (ou cultural). Nas ruas, nenhuma marcha interminável de fileiras todos de braços dados, nenhuma classe atrás das barricadas, nem explosões de casacos, carros ou aeronaves bombas. Dentre todos os fundamentalistas (reacionários), haverá um (bastará um) pequeno grupo (LXX é um bom número!) que irá se propor, ademais, não repudiar, mas deveras subsumir a ciência (com sua lógica, seus cálculos e seus três indefectíveis instrumentos – a balança, a trena e o cronômetro), tornando-se destarte a decisiva força revolucionária. Como sempre, em última instância, se verá a reação desesperada: a ordem virá para a degola dos perigosos terroristas recém-nascidos. Ou será que, biblicamente instruídos, já não se anteciparam financiando programas de esterilização em massa?!

Por isso, a necessidade iniludível de uma estratégia de sobrevivência pelo tempo que resta à Modernidade para que não faltemos ao encontro com a nossa destinação. Talvez, por uns tempos, seja preciso refugiarmo-nos no Egito ou nos agacharmos no mato. Na circunstância, a ordem tem que ser (culturalmente) sobreviver a qualquer preço, falando mais e o melhor possível para não perder a língua, batucando, ainda que numa caixa de fósforos, para não perder o fôlego. Se fracassarmos, outro, alhures, ainda que bem menos dotado e pré-destinado, por certo fará vir ao mundo a cultura nova... e, por desídia, grave impiedade ou, como de costume, por amarelamento (como em 50 e 98), teremos, sim, nos atirado de alma e corpo inteiro à lata de lixo, não só da história hiperdialética da cultura, mas da própria cosmogênese. Com que cara iremos nos apresentar no Juízo Final...?!








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