Segundo o eminente teólogo protestante Paul Tillich, as culturas se dividem em culturas do tempo e culturas do espaço. E vai ele ainda mais longe afirmando que: a alma humana e a história humana são numa larga medida determinadas pela luta entre o espaço e o tempo. Já o famoso historiador inglês Arnold Toynbee, ao fim de uma longa vida dedicada aos estudos de história, ao enveredar pela especulação filosófica, conclui que na História se alternam culturas espirituais e culturas materiais, acrescentando que às culturas espirituais estariam associadas religiões progressivamente mais abstratas e universais (1). Nós mudaríamos um pouco a terminologia – para aproximá-la do registro lógico – falando, respectivamente, em culturas da identidade e culturas da diferença, empenhadas num processo, cuja complexidade iria bem além da dialética tradicional.
Todos aqui, entrementes, arrolariam de um lado e de outro, as mesmas formações culturais. Entre aquelas do tempo, espirituais ou da identidade, estariam a cultura dos primeiras bandos nômades do paleolítico, a cultura judaica e a cultura cristã patrística; entre aquelas do espaço, materialistas ou da diferença, estariam a cultura dos primeiros impérios da antigüidade de base agrícola, a cultura greco-romana e a cultura científica moderna, habitualmente caracterizada apenas por seu modo de produção – capitalismo, privado e/ou de estado.
Como seria natural, as culturas do tempo, cada uma a seu modo, reconhecem a História como importante faceta de sua realidade, enquanto que as culturas do espaço a renegam quanto podem. Hoje, pois, estando nós na Modernidade, a moda é negar qualquer sentido à História; a Grande Narrativa não passaria de mera ficção, é o que se diz. Tal negativismo aparece sob duas roupagens. De uma lado, estão os que se comprazem no poder ou mesmo na subserviência, que acreditam que chegamos ao fim da História, onde nada há mais para acontecer, apenas o quê negociar, valendo-nos de critérios otimizantes e do concurso de modelos e máquinas calculadoras; o futuro é progresso, história pré-calculada (na forma de taxa de retorno do capital). Há de outro lado os que “protestam”, que acham que o cálculo não passa de um engodo, que o contingente a ele não se rende e se chama verdadeiro acontecimento, essencialmente in-calculável. Esta resposta já tinha sido encontrada pelos gregos quando estes eram a cultura de ponta, e traduzia uma visão trágica ou prometéica do homem e da vida. Na atualidade, diante da dominação avassaladora da cultura científica moderna, ela ainda insiste em se passar por visão trágica como outrora. Na circunstância, entrementes, ela é apenas a outra face (recalcada) do que acredita reprovar. Aproveitando a terminologia nietzschiana, diríamos que o trágico hoje se confunde com o cínico reativo, que denega que o seja, antepondo-se tão só ficticiamente ao cínico afirmativo reinante.
Apesar da divergência aparente, vige pois a concórdia que une, por um lado, neopositivistas e pragmáticos anglo-saxões e, por outro lado, pós-modernos europeus: a Grande Narrativa ou a História morreu, já era, lá se foi junto com os deuses, o Deus Único mais o Trino e ainda de quebra o Homem. É só o que se vê por aí.
Não há pois tarefa subversiva mais urgente, clara a ponto de amedrontar, que devamos assumir senão a de resgatar a história, a história com H.
As sociedades primitivas desapareceram, o tradicionalismo judaicos, desde o despertar da modernidade, convenientemente se abaixou e emudeceu; do cristianismo autêntico só restam museus abarrotados de arte sacra. Do ponto de vista especificamente filosófico, os que acreditavam na dialética debandaram, tanto idealistas hegelianos, quantos seus afilhados materialistas marxista. Que é feito de todos eles? O resgate da história depende de uma crítica radical, em nível lógico, deste profundo e generalizado esquecimento. O grande óbice não é ou está nos inimigos do devir, mas na nossa incapacidade de uma crítica consistente do arcaico ao mais recente historicismo. Consideramos imprescindível recuperar a história da própria historicidade para poder depois enxergar à frente, e isto não nos parece agora tão difícil.
A noção de História estaria originalmente associada à lógica transcendental ou da identidade, que é o modo específico de se poder pensar a temporalidade, a liberdade e a própria consciência. Esta é a primeira dentre as concepções de história, história judaica, solidária à verdade do Deus único, que iremos denominar com o neologismo unária. Trata-se pois de uma história pré-dialética onde não há a afirmação do um vis-à-vis o outro, mas tão apenas do um perante si mesmo.
Ela é a História que se interessa primordialmente pelos extremos, origem e destino, momentos cruciais de criação (Gênese) e de consumação dos tempos (Escatologia); os “acontecimentos” intermédios, para ela, são a mera conseqüência do incidental descumprimento pelos homens dos mandamentos divinos e do justo castigo que lhes é por isso infligido. O que esta concepção reclama de nós não pode ser outra coisa senão a fé inabalável, de que Jó nos dá o mais candente exemplo.
Depois de Hegel, a noção de História ficou indelevelmente associada à lógica dialética, síntese das lógicas da identidade e da diferença, a que damos, por isso, a denominação de concepção trinitária. A verdade da dialética, como enfatizava Lukács (2), é a totalidade, de sorte que a verdadeira história só pode ser aquela da totalidade lógico-dialética em busca de sua auto-realização. Assim, concluiu coerentemente Hegel, a História é o próprio processo de auto-desvelamento do espírito absoluto. Para chegar a tanto, o grande pensador alemão teve que identificar impropriamente a dialética do conceito (no sentido platônico) com a dialética da história, o que o leva irremediavelmente a uma concepção idealista do mundo. A história da cultura é por isso olhada como uma fenomenologia do espírito (Absoluto) em processo de auto-realização, o que deságua deveras num panteísmo. A crítica marxista foi certeira: dialética sim, mas justamente por conta disso, concreta e objetiva, dialética do jogo dos interesses materiais das classes (3). Esta seria a verdadeira razão da história. Chega-se então a uma história materialista de cunho lógico-dialético.
Ao internalizar a diferença, a dialética cria um modo imanente de dinamismo, fazendo do conflito ou das contradições internas o seu verdadeiro motor, o que torna esta história especialmente apta para explicar as mil peripécias do insistente devir. Em compensação, ela apresenta uma deficiência constitutiva que a incapacita para a compreensão de origem e destino – daí, o paraíso, o juízo final, o comunismo primitivo, a revolução, a sociedade sem classes e outras miragens para obnubilar a referida deficiência lógica. Ela é uma história que solicita, sobretudo, o nosso engajamento. Note-se, entrementes, que a dialética, desvinculada do comércio com outras modos de pensar (ou lógicas correspondentes), pode facilmente degenerar em lógica da oportunidade e o nosso engajamento irrestrito se transformar em mero oportunismo.
Dada a alternância de culturas observada por Tillich, Toynbee e nós mesmos, não fica a menor dúvida que a Modernidade não representa um fim de linha, que deverá ser com certeza sucedida por uma cultura da família das culturas do tempo, da espiritualidade ou da identidade. Fixando-nos sobre as características lógicas das sucessivas culturas do tempo, podemos facilmente inferir como há de se desdobrar esta seqüência: tivemos, primeiro, a cultura unária onde se reconhece apenas a lógica da identidade; depois, a cultura cristã patrística lógico dialética ou trinitária, onde se reconhece a lógica da identidade, da diferença e sua síntese dialética; isto posto, não fica a menor dúvida que breve – é o que mais auguramos –, advirá uma cultura de estofo lógico-hiperdialético, qüinqüitário, síntese não só da identidade e da diferença, mas também da própria dialética e da lógica clássica ou da dupla diferença, capaz, justamente por isso, de subsumir a ciência, por conseqüência, também a cultura moderna que a tem por esteio. A história terá que então se revelar, com toda evidência, uma história hiperdialética, não apenas política como no judaísmo originário, nem mesmo restritamente econômica como no marxismo, mas como o que no mais fundo sempre foi, uma história cultural.
Luiz Sergio Coelho de Sampaio
Rio de Janeiro, 22 de outubro de 2002
Notas
1.Toynbee acredita que as culturas espirituais estão associadas a religiões progressivamente mais abstratas e universais, o que representaria uma parametrização religiosa da história da cultura. Aparentemente isto soa como um retrocesso, nada mais nada menos do que a transformação da história humana numa teodicéia. No entanto, se atentarmos que as religiões outra coisa não têm sido que a sacralização de uma lógica, a observação aparentemente extemporânea de Toynbee muda completamente de figura, torna-se um a priori irrecusável, podendo abarcar, inclusive, as próprias culturas por ele ditas materiais.
2.LUKACS, Georg. Histoire et Conscience de Classe, Paris, de Minuit, 1960
3.Tomando-se a história da cultura e “retirando-se” o fenômeno judaico, ou seja, a opção política pela liberdade expressa no Êxodo, estamos escamoteando precisamente o momento da tomada de consciência da importância social da cultura em face dos determinantes materiais da vida, e caímos ou recaímos deveras numa história econômica. Por isso Marx teve que tratar a questão judaica, separadamente, acrescentaríamos nós, magistralmente.
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