6.4.17

Realizações paraconsistente e paracompleta da lógica da diferença


Aí há um pequeno parêntese - quando um faz dois, não há retorno jamais. Não volta a fazer de novo um, mesmo um novo. A Aufhebung é um desses bonitos sonhos da filosofia.

Lacan. O Seminário, l. 20

A lógica da diferença pode ser intuitivamente pensada como a lógica clássica subtraída ao governo do princípio do terceiro excluído, tomado este em seu pleno e verdadeiro sentido (2). Mais fraco do que o terceiro excluído será, portanto, o seu princípio básico, que nos garante apenas o segundo incluído. O mais essencial deste princípio, só pelo nome se depreende, é deixar livre a possibilidade de um terceiro valor, indefinido, além do verdadeiro e do falso, cujo sentido pode tanto ser de sobre-determinação, verdadeiro e falso, paradoxal, quanto de sub-determinação, nem verdadeiro nem falso. Estas alternativas determinam os dois modos de realização da lógica da diferença, ora como lógica paraconsistente - que aceita a sobre-determinação, sem contudo trivializar seu inteiro contexto -, ora como lógica paracompleta ou intuicionista - que aceita a sub-determinação, deixando parcialmente aberto o seu contexto. As duas realizações da lógica da diferença se excluem radicalmente; caso houvesse qualquer superposição, a região comum deixaria de ser lógico-diferencial para se tornar lógico-formal, caindo pois sob o império da lei do terceiro excluído. Isto significa que o pensar visado pela lógica da diferença é um pensar cambiante, de modos extremos que se recusam a um compromisso ou a encontrar um ponto de equilíbrio. Deste ponto de equilíbrio aqui jamais alcançável, trata exatamente a lógica clássica ou formal.

As duas realizações da lógica da diferença, paraconsistente e paracompleta, a nível proposicional e a nível de “cálculo” de predicados, serão aqui os nossos assuntos.



1. A negação originária e seus modos

O princípio do segundo incluído tem como representação a mais geral um operador D (negação) tal que D(D(D(y)= D(y), ou seja, a tríplice negação de um estado de coisas qualquer y é equivalente à sua simples negação. Mostramos (3) - seguindo os mesmos procedimentos criados pela mecânica quântica para integrar à própria física a ação de medir - que um operador está associado a um conjunto de valores l, denominados valores próprios do operador - que, na física, são os possíveis valores mensuráveis -, que aqui irão representar os valores de verdade da lógica sob consideração.

Os valores próprios do operador D, característico da lógica da diferença, são 1, 0 e –1, que irão corresponder aos valores verdadeiro, indeterminado e falso (4).

Tendo-se em conta que a essência da negação originária é a de se constituir numa operação de ciclo dois, isto é, que, a partir de um certo ponto, aplicada e reaplicada retorna sempre ao ponto de partida, chegamos à conclusão que só existem três possibilidades de negação para o conjunto de valores de verdade 1, 0 e –1. Seriam eles:



 x D(x) D(D(x) D(D(D(x)    x D(x) D(D(x) D(D(D(x)    x  D(x) D(D(x) D(D(D(x)

 1   -1      1        -1          1   -1      1        -1          1   -1       1      -1
 0    0      0          0          0   1      -1        1           0   -1       1      -1
-1    1     -1         1         -1    1     -1         1         -1    1      -1       1
 
 
  x = D(D(x))                         D(x) =  D(D(D(x)))          D(x) = D(D(D(x)))



Destas três, a primeira é uma forma dissimulada do princípio do terceiro excluído, onde o valor zero representa apenas uma proposição em estado de ignorância ou de pré-definição de seu valor de verdade. Assim, sobram apenas as duas alternativas seguintes autenticamente lógico diferenciais.

A negação de um indeterminado estado zero que leva ao verdadeiro obriga que o interpretemos como sobre-determinado, concomitantemente, verdadeiro e falso. Ver parte esquerda da figura 1. A negação do estado zero que leva ao falso obriga que o interpretemos como sub-determinado, nem verdadeiro nem falso. Ver parte direita da figura 1.



Figura 1. Negações paraconsistente e paracompleta


A negação do sobre-determinado (~0=1) será doravante denominada negação paraconsistente, e a do sub-determinasdo (~0 = -1), negação paracompleta.


2. A implicação originária


Seguindo aqui o estilo formalista, buscaremos fixar o sentido da implicação originária ou diferencial basicamente pela força de uma estrutura axiomática. Como a diferença essencial entre lógicas da diferença e lógica clássica está na sujeição da última ao princípio do terceiro excluído, conviria tomar como ponto de partida um sistema clássico que tivesse como características: primeiro, a utilização explicita apenas da implicação (fora a negação, naturalmente); segundo, que tivesse por axioma o princípio da dupla negação (~~p®p e p®~~p). O sistema que vem bem a calhar é o de Frege (5):

I. p®(q® p)
II. (p®(q®r)) ® ((p®q) ® (p®r))
III. (p®(q®r)) ® (q® (p®r))
IV. (p®q) ® (~q®~p)
V. ~~p®p
VI. p®~~p


Entrementes, a supressão apenas do axiomas V ou VI não é capaz de livrar o sistema do jugo do princípio do terço excluído, que ainda se sustenta pela presença dos demais axiomas, o que revela uma provável falha de elegância no sistema. Por isso, vamos optar por tomar como ponto de partida o sistema de Lukasiewicz (6), ainda que com o inconveniente de não apresentar a dupla negação como axioma explícito. Temos:

I. p®(q® p)
II. (p®(q®r)) ® ((p®q) ® (p®r))
III. (~p®~q) ® (q®p)

Os axiomas I e II são indiferentemente paraconsistente e paracompleto pelo simples fato de não terem a presença explícita da negação. Deste modo toda nossa atenção poderá se concentrar no crítico axioma III, que precisará ser substituído por algo convenientemente mais fraco. Em princípio, teríamos as seguintes alternativas de substituição:

IIIs. (~p®~q) ® (~~q®p)     ou
IIIp.(~p®~q)® (q®~~ p)
     

Acontece que IIIs torna-se exageradamente débil, permitindo, sim, deduzir ~~~p®~p, mas não o inverso. Desta sorte, para garantirmos o princípio da terceira negação - que em última instância caracteriza o ser lógico diferencial (~pÛ~~~p) -, será preciso acrescentar também como axioma: IVs: ~p®~~~p. Procederíamos de modo análogo com o axioma IIIp, agregando desta feita o axioma IVp: ~~~p® ~p.

O axioma II é suficiente para demonstrar que existem apenas duas matrizes ternárias para a implicação. Fazendo p=1, q=0 e r=-1, tem-se:
(1®(0®-1)) ® ((1®0) ®(1®-1).
Caso (1® 0)=1   Þ (1®(0®-1)) ® (1®(1®-1)) Þ 
        (1®(0®-1)) ®(1®-1) Þ (1®(0®-1))®(-1) Þ          
        (1®(0®-1)) = -1  Þ  (0 ®-1) = -1 ;
caso (0 ®-1) = 1  Þ (1®1) ® ((1®0) ®-1) Þ
        (1)®((1®0) ®-1) Þ ((1®0) ®-1)=1 Þ (1®0) =-1

   Em suma, se (1® 0)=1, então necessariamente (0 ®-1) = -1 e se (0 ®-1) = 1, então também necessariamente (1®0) =-1. Admitindo-se, o que é bem razoável, que a matriz da implicação lógico-diferencial para os valores verdadeiro (1) e falso (-1) coincida com a matriz clássica, chegaríamos às possíveis matrizes parciais:
   ®s   1    0   -1                 ®p   1     0    -1
 
 1    1    1   -1                   1    1    -1    -1
 0    1         -1        ou       0    1            1
-1    1          1                  -1    1            1

Por um simples imperativo de continuidade (entre valores iguais em uma linha ou coluna, estará necessariamente um valor também igual), podemos completar as matrizes sem qualquer ambigüidade

     ®s   1     0    -1                    ®p  1     0    -1
 
             1   1     1    -1                      1   1    -1    -1
             0   1     1    -1       ou           0   1     1     1
    -1   1     1     1                     -1   1     1     1



A matriz a esquerda, onde (1®0) =1, é incompatível com a negação paracompleta ~0=-1 porque nesse caso poderíamos deduzir (pÛ~~p), que é justamente do que estávamos procurando escapar. Isto é bastante intuitivo, pois tendo os valores 1 e 0 a mesma negação, e coincidindo na matriz da implicação as respectivas linhas e colunas, não há mais qualquer dúvida que 1 e 0 em conteúdo nada diferem - seriam, na circunstância, tão somente dois nomes para a mesma coisa! Assim, a sua incompatibilidade com a negação paracompleta faz com que a identifiquemos como uma implicação paraconsistente.

Semelhante raciocínio pode ser feito em relação à matriz à direita, onde (1®0) =-1, que se mostra também incompatível com a negação paraconsistente, ~0=1. Por este último fato, deve ela ser considerada como a implicação paracompleta. Podemos concluir então com segurança que as matrizes acima representam as implicações originárias lógico-diferenciais: a da esquerda, onde (1®0)=1, é a implicação paraconsistente, e a da direita, onde (1®0) =-1, é a implicação paracompleta.



3. O grupo dos conectivos lógicos



Precisaremos começar aqui com uma breve digressão acerca dos conectivos lógicos clássicos. Eles podem ser representados por um conjunto de 16 matrizes 2 por 2 conforme mostra a tabela 1.
 
Tabela 1. Valores de verdade para os conectivos clássicos
 
p · q     )-  ®   Ú  ¬    ü    ë    «  ù     û   ><   Ù    é   -<   +  >-  -(
 
 1   1     1   1   1   1   -1   1    1  -1    1  -1  -1   1   -1  -1  -1  -1
 1  -1     1  -1   1   1    1  -1   -1  -1   1   1   1  -1    -1  -1   1  -1
-1   1     1   1   1  -1    1   1   -1   1   -1   1  -1  -1    1  -1  -1  -1
-1  -1     1   1  -1   1    1  -1    1   1   -1  -1   1  -1   -1   1  -1  -1
 


Pode-se mostrar que estas matrizes formam um grupo, que é a quarta potência do grupo binário {E,C}, ou seja, {E,C}4, que se constitui igualmente no quadrado do conhecido grupo de Klein. Doravante, por uma questão de economia, denominaremos o grupo {E,C}4, tão simplesmente, grupo lógico.

Para demonstrar o caráter de grupo dos conectivos clássicos precisamos encontrar uma conveniente operação produto sobre todo o conjunto. Um exemplo, pode ser o produto Mk = MiÄMj especificado da seguinte maneira:
       Mk (x,y) =  1 se  e somente se  Mi (x,y) =  Mj (x,y)
       Mk (x,y) = -1 se  e somente se  Mi (x,y) ¹ Mj (x,y),                      
       Podemos ilustrá-lo com o produto da implicação (®) pela disjunção (Ú):
 p    ®     q       Ä       p     Ú    q
 
 1      1      1        1        1      1      1
 1     -1     -1       -1        1      1    -1
-1      1      1        1       -1      1      1
-1      1     -1       -1       -1    -1     -1



Vemos aí que ao produto ® Ä Ú corresponde à matriz de ë, também pertencente ao mesmo conjunto de conectivos. Não é difícil constatar que o conjunto dos dezesseis conectivos clássicos, com respeito a esta operação, é fechado e associativo, que possui um elemento identidade (o conectivo )- ) e que todo conectivo apresenta um inverso; em síntese, que formam um grupo algébrico.

Retomemos agora a questão geral dos conectivos lógico-diferenciais ou originários. A partir tão apenas da negação e da implicação paraconsistente é possível construir um conjunto de dezesseis conectivos proposicionais homônimos ao grupo dos dezesseis conectivos clássicos conforme se mostra a seguir:

p® q                                  p >- q =d  ~(p ® q)
p  )-  q =d p® (q® p)          p -(  q =d  ~(p  )- q)
p  û   q =d  ~p® p                p  ù  q =d  ~( p  û  q)
p   ë  q =d  ~q® q                p   é q =d   ~( p   ë q)
p  Ú  q =d  (p® q)® q          p  +  q =d  ~( p  Ú  q)
p  ¬ q =d  q® p                  p -< q =d  ~( p  ¬ q)
p   |  q =d  p® ~(~q® q)       p Ù  q =d  ~( p   |   q)
p « q =d  (p®q) Ù(q® p)     p >< q =d  ~( p  « q)

A tabela completa de todas as matrizes trivalentes para estes conectivos paraconsistentes é mostrada na   tabela 2.


 
Tabela 2. Valores de verdade para os conectivos paraconsistentes
 
     p · q     )-  ®  Ú  ¬   ù     ë    «  ù     û   ><   Ù   é   -<   +  >-  -(
 
     1   1     1   1   1   1   -1   1    1  -1    1  -1  -1   1   -1  -1  -1  -1
     1   0     1   1   1   1   -1   1    1  -1    1  -1  -1   1   -1  -1  -1  -1
     1  -1     1  -1   1   1    1  -1  -1  -1    1   1    1  -1   -1  -1   1  -1
     
     0   1     1   1   1   1   -1   1    1  -1    1  -1  -1   1   -1  -1  -1  -1
     0   0     1   1   1   1   -1   1    1  -1    1  -1  -1   1   -1  -1  -1  -1   
     0  -1     1  -1   1   1    1  -1   -1  -1   1   1   1   -1   -1  -1   1  -1

    -1   1     1   1   1  -1    1   1   -1   1   -1   1  -1  -1    1  -1  -1  -1
    -1   0     1   1   1  -1    1   1   -1   1   -1   1  -1  -1    1  -1  -1  -1
    -1  -1     1   1  -1   1    1  -1    1   1   -1  -1   1  -1   -1   1  -1  -1


       

Quando tratamos com lógicas trivalentes cria-se uma grande ambigüidade em torno da questão de que conectivo deva corresponder a um determinado conectivo bivalente clássico. A questão pode agora ser facilmente resolvida dando-se liberdade de escolha, porém, exigindo-se que o seu conjunto seja isomórfico ao grupo dos conectivos clássicos.

Torna-se uma tarefa bastante simples constatar que as matrizes da tabela 2 para os conectivos paraconsistentes, referidas ainda à mesma operação sugerida para os conectivos clássicos, formam também um grupo lógico. Para ilustrar a propriedade de fechamento do conjunto com respeito à operação em questão, nos restringiremos a apenas um exemplo, o do “produto” Ä das operações disjunção Ú e conjunção Ù paraconsistentes:


 p     Ú     q       Ä        p    Ù    q
 
 1      1      1         1         1      1      1
 1      1      0         1         1      1      0
 1      1     -1        -1         1     -1     -1

 0      1      1         1         1      1      1
 0      1      0         1         1      1      0
 0      1     -1        -1         1     -1     -1

-1      1      1        -1         1     -1      1
-1      1      0        -1         1     -1      0
-1     -1     -1         1         1     -1     -1



Vemos que a matriz correspondente ao produto Ú Ä Ù é uma matriz também paraconsistente, que vai corresponder ao conectivo eqüivalência «. Ilustra-se com isso, o fechamento do conjunto para a referida operação. O conjunto também é associativo, nele todo elemento tem um inverso em relação ao conectivo neutro )-. Em suma, estes conectivos paraconsistentes formam um grupo lógico isomórfico ao grupo dos conectivos clássicos.

Tudo isto se reproduz, de forma simétrica para a lógica paracompleta. As definições dos conectivos seriam as seguintes:

p® q                                  p >-  q =d  ~(p ® q)
p  )-  q =d  p® (q® p)          p -(  q =d  ~(p  )- q)
p  û   q =d   ~(p®~p)             p  ù  q =d  ~( p  û  q)
p   ë  q =d   ~(q® ~q)            p  é  q =d   ~( p   ë q)
p  Ú  q =d   (p® q)® q          p  +  q =d ~( p Ú  q)
p  ¬ q =d   q® p                  p-< q =d  ~( p ¬ q)
p   |   q =d  p® ~(q®~q)        p Ù  q =d  ~( p   |  q)
p  « q =d  (p®q) Ù(q® p)     p>< q =d  ~( p « q)


Na tabela 3 mostramos de maneira exaustiva o conjunto das matrizes de cada um dos conectivos que, de modo evidente, formam também o já mencionado grupo lógico.

Tabela 3. Valores de verdade para os conectivos paracompleta
 
p · q     )-  ®   Ú  ¬    ü    ë    «  ù     û   ><   Ù    é   -<   +  >-  -(
 
 1   1     1   1   1   1   -1   1    1  -1    1  -1  -1   1   -1  -1  -1  -1
 1   0     1  -1   1   1    1  -1   -1  -1    1   1   1  -1   -1  -1   1  -1
 1  -1     1  -1   1   1    1  -1   -1  -1   1   1   1  -1    -1  -1   1  -1

 0   1     1   1   1  -1    1   1   -1   1   -1   1  -1  -1    1  -1  -1  -1
 0   0     1   1  -1   1    1  -1    1   1   -1  -1   1  -1   -1   1  -1  -1
 0  -1     1   1  -1   1    1  -1    1   1   -1  -1   1  -1   -1   1  -1  -1

-1   1     1   1   1  -1    1   1   -1   1   -1   1  -1  -1    1  -1  -1  -1
-1   0     1   1  -1   1    1  -1    1   1   -1  -1   1  -1   -1   1  -1  -1
-1  -1     1   1  -1   1    1  -1    1   1   -1  -1   1  -1   -1   1  -1  -1
 

4. Cálculo de predicados na lógica da diferença

A axiomatização do cálculo de predicados clássico de primeira ordem pode ser feita com a introdução de apenas dois axiomas tratando dos quantificadores universal e existencial (7). São eles:
a)  "xf(x) ® f(a)    e    
b) f(a) ®$xf(x) 
        Destes axiomas deriva um bloco de 4 teoremas tratando da equivalência entre universalidade e  existência (8):
c)  "xf(x)   « ~$x(~f(x))
d)  $xf(x)    « ~"x(~f(x))    
e)  ~$xf(x)  «  "x(~f(x)
f) ~"xf(x)  «  $x(~f(x))

Também podemos derivar um bloco de 4 teoremas de implicação. O primeiro é diretamente deduzido dos axiomas a e b:
g) "xf(x) ®$xf(x).
 Como o princípio do terceiro excluído garante o mesmo grau de definição de qualquer predicado f e de sua negação  ~f, tem-se que de g deriva:
h) "x(~f(x))  ® $x(~f(x)).
Levando-se em conta os teoremas de equivalência e e f, derivamos de h o teorema:
i) ~$xf(x) ® ~"x(f(x)  
  Valendo-nos uma vez mais do princípio do terceiro excluído,  que garante a “equivalência” resolutiva de f e ~f, derivamos diretamente de i o teorema:
j) ~$x(~f(x)) ®~"x(~f(x))

Podemos finalmente articular o conjunto das equivalências  c, d, e e f com o conjunto das implicações g, h, i e j, para formar o quadro geral de equivalências e implicações característico do cálculo de predicados na lógica clássica:

"xf(x)   « ~$x(~f(x))
 

$xf(x)    « ~"x(~f(x))    

~$xf(x)  « "x(~f(x)
 

~"xf(x)  « $x(~f(x))

Nossa tarefa, doravante, pode ser definida como aquela de buscar os correspondentes quadros característicos  para as realizações paraconsistente e paracompleta do cálculo de predicados da lógica da diferença.
Para tanto, do quadro clássico só podemos preservar integralmente as implicações g, h, i e j, porque elas dependem somente da essência das noções de universalidade (") e existência  ($). Já as equivalência do bloco de teoremas c, d, e e f precisarão ser integralmente revistas e convenientemente enfraquecidas.
A quantificação paraconsistente pode ser efetivada com a introdução do axioma:
cs) "xf(x)  ¬ ~$x(~f(x)).
  Este axioma pode ser justificado com o apoio da figura 2, a mesma que nos serviu de base para a definição da negação paraconsistente, convenientemente incrementada. Pode-se ali constatar que a não existência de qualquer x em ~f  faz com que necessariamente todos os x fiquem inteiramente contidos em f, tal como estabelece formalmente o axioma em questão.

Figura 2. Quantificação paraconsistente

Com os axiomas clássicos a e b incorporados à axiomática paraconsistente, a que se agrega o axioma suplementar cs, podemos deduzir o seguinte bloco de teoremas:

ds)  $xf(x)  ¬ ~"x(~f(x))

es)  ~$xf(x) ® "x(~f(x)
 fs)  ~"xf(x) ® $x(~f(x))            

 A quantificação paracompleta seguirá o mesmo roteiro anterior. Primeiro, a incorporação dos axiomas clássicos a e b; segundo, a agregação de um novo axioma especificamente paracompleto, simétrico ao correlato axioma paraconsistente:
cp) "xf(x)   ® ~$x(~f(x)).

 
Sua justificação se pauta pela figura 3, a mesma que já nos serviu de base para a definição da negação paracompleta. Fica ali evidente que se todos os x  tiverem contidos em f, eles estarão necessariamente    excluídos de ~f.



Figura 3. Quantificação paracompleta

Deste novo axioma, juntamente com os axiomas a e b, podemos derivar o seguinte bloco de teoremas:

dp) $xf(x)    ®  ~"x(~f(x))

ep) ~$xf(x)  ¬   "x(~f(x)
fp)  ~"xf(x)  ¬  $x(~f(x))

Todos estes resultados em conjunto  permitem a construção dos quadros característicos da quantificação das realizações paraconsistente e paracompleta da lógica da diferença. Seriam eles:
      Quantificação                   Quantificação
Paraconsistente                Paracompleta

"xf(x)  ¬ ~$x(~f(x))           "xf(x)   ® ~$x(~f(x))
 

$xf(x)  ¬ ~"x(~f(x))          $xf(x)    ® ~"x(~f(x))     

~$xf(x) ® "x(~f(x)             ~$xf(x) ¬  "x(~f(x)
 

~"xf(x) ® $x(~f(x))            ~"xf(x) ¬  $x(~f(x))



5. Considerações finais

Estas duas realizações da lógica da diferença não são de modo algum ilustres desconhecidas. Não é difícil perceber que a lógica paraconsistente de Newton da Costa, a lógica do coração em Pascal, a lógica do paradoxo em Kierkegaard, o logos heraclítico em Heidegger são exemplos mais ou menos acabados, mais ou menos formalizados da realização paraconsistente ou paradoxal da lógica da diferença. Paralelamente, as diversas lógicas intuicionistas são exemplos da realização paracompleta ou intuicionista da lógica da diferença. O que vinha sendo estranhamente ignorado é que elas eram realizações perfeitamente simétricas e necessariamente excludentes de uma mesma lógica. Isto só começou a ser desvelado com a identificação dos processos primários do inconsciente com Freud, condensação e deslocamento, homólogos àquelas duas realizações. Lacan, explicitando as determinações propriamente lógicas do discurso freudiano dá um novo passo no sentido do aludido desvelamento.

A complementaridade disjuntiva das realizações paraconsistente e paracompleta da lógica da diferença é fundamental não só para a compreensão em profundidade da própria estrutura do universo lógico, mas também - ficando apenas em três exemplos extremos - para a compreensão de fenômenos psíquicos, como a psicose maníaco-depressiva, da dinâmica da criação matemática, onde o surgimento de paradoxos suscita soluções intuicionista e dos processos de criação literária, onde o poeta, capaz de perceber as subdeterminações do mundo as enuncia de modo sobredeterminado (Pessoa, nisto, é o inigualável mestre).




Notas

1. Terceiro de uma série de artigos sobre a lógica da diferença. O primeiro, A Lógica da Diferença apareceu em RBT, fasc. ... S. Paulo, 19...e o segundo, Lógica da Diferença - Princípio Básico, Operador Característico e Valores de Verdade, também em RBF, fasc. ...S. Paulo 19...

2. O princípio tradicional do terceiro excluído, pÚ~p, na verdade exclui apenas um tipo de terceiro, o sub-determinado, nem verdadeiro, nem falso. É o chamado princípio da não contradição, ~(p Ù~p) que exclui o outro terceiro, o sobre-determinado ou paradoxal. Chamamos autêntico princípio do terceiro excluído à conjunção dos dois anteriores, (pÚ~p) Ù (~(p Ù~p)), que eqüivale a ~~p«p.

3. SAMPAIO. L. S. C. de. As lógicas da diferença, Rio de Janeiro, EMBRATEL, 1983/84; Noções elementares de lógica -Tomo I. Rio de Janeiro, I.C-N. 1988. Mais recente, Lógica da Diferença - Princípio Básico, Operador Característico e Valores de Verdade, RBF, fasc. ...S. Paulo, 19...

4. Ibid.

5. KNEALE, W. e KNEALE, M. O Desenvolvimento da Lógica. Lisboa, Gulbenkian, 1962. p. 530

6. LUKASIEWICZ, J. Select Works. Amsterdam, North-Holland, 1970.

7. HILBERT, D. and ACKERMANN, W. Principles of Mathematical Logic. N. York, Chelsea, 1950. p. 68.

8. Ibid. Teorema 33, p. 76 

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