X – Poder-se-ia, por exemplo, juntar um volume sobre a lógica do futebol e outro sobre a lógica feminina. O que você acha?
Y – Idéias geniais! Pena que Lacan, ladino como só, já nos tenha passado a perna na sexualidade; mas, quem sabe, no futebol...?
De acordo com os formalistas existiriam hoje duas grandes acepções do termo ‘lógica’: uma, rigorosa, que muda todo dia porque extensiva, “empirista” e corporativa, que é aquela que se pode sacar da enormidade do que eles mesmos estão a produzir e publicar; de outro lado, estaria o resto, o uso vago corrente da gentalha em que se sobrepõem, em diferentes proporções, noções como ‘fundamental’, ‘básico’, ‘primevo’, ‘essencial’, ‘interessante’, ‘supimpa’ e ‘alguma coisa que se vai ainda pensar’. Em princípio, poderíamos não dar muita atenção para isso, aceitando este radicalismo chulo como se fora mera má-formação profissional, até, de certo modo, bem corriqueira. Contudo, isto é o que eles dizem, mas não o que com toda certeza têm fundo no coração (e de modo subsidiário, em mente). A questão aparece com sua verdadeira face e grandeza quando revisitamos a tradição filosófica em que nasceu e prosperou a própria lógica, e na qual estão, malgrado, ainda preservadas acepções do termo ‘lógica’ completamente distintas daquela que é defendida pelo partido aristocrático conspícuo e preciso, mas que não podem de modo algum ser acoimadas de carentes de rigor e por isso tão facilmente atiradas á vala comum do partido popular bruto e ambíguo. Com o propósito de melhor esclarecer, tomamos dois exemplos berrantes: como (des)classificar a lógica dialética de Hegel (1) e a lógica transcendental de Husserl (2), ainda mais, sabendo-se que estes desbravadores fizeram questão de justificar estas suas lógicas em aberta contraposição à lógica clássica formal? E mais grave: argumentavam que assim faziam, explicitamente, pela necessidade de encontrar um modo de pensar apropriado a novas modalidades de ser ou realidades que então se empenhavam em desvelar – o primeiro, buscava a História, o segundo, o sujeito a priori da ciência já em época de crise. Nestas circunstâncias, é preciso ter coragem de enxergar e dizer que o radicalismo lógico-formal aqui em pauta tem evidente cunho ideológico, representa uma postura ultra reacionária, uma tentativa de bloquear a qualquer custo a emergência do novo (no caso presente, como já demonstramos alhures, uma nova cultura, um novo modo de ser e pensar (3)).
O saber cientificista há muito vinha se impondo com facilidade a uma filosofia alquebrada e cabisbaixa, por isso não podia jamais imaginar que, fosse quem fosse, ousasse lhe atacar. Mas o golpe lhe veio de dentro, daquilo que estava oculto na própria dobra que a constituía: a realidade inconsciente. Por ironia, esta era justamente a reserva estratégica que o modo econômico moderno acabava de mobilizar para se dar mais meia vida, passando do capitalismo produtivista brutamontes ao capitalismo consumista etnocida (4). Se estava ele – o inconsciente – já mobilizado como meio combustível de um modo de produção renovado, na condição de instância domesticada e teleguiada pelo marketing, não se poderia evitar que alguém de repente buscasse pensá-lo como era antes, ou melhor, por sob, em estado selvagem e bravio. Este acontecimento onto-lógico, sabemos, se deveu a Freud/Lacan.
Imagine-se o estrago feito particularmente pelo último, identificando, com notável precisão, lógica do inconsciente e lógica do significante (bom significante é justo aquele que sai da frente conduzindo-nos a outro, o significado). E que dizer quando o psicapeta francês usa, de maneira metafórico/ expressionista e sem o menor pejo, fórmulas solenes e bem conhecidas do cálculo de predicado clássico para caracterizar modos de ser, simples e compostos, entre estes, sobretudo, o par masculino/feminino?
Depois das lógicas masculinas e femininas postas a circular, era bem fácil prever que, aportando tal novidade a Pindorama, logo logo algum imaginoso quisesse se doutorar na lógica da mulata, na lógica da loura burra, na lógica do oprimido, na lógica dos sem terra e, inevitavelmente, na lógica do futebol. Não vamos falar das quatro primeiras – da mulata, da loura burra, do oprimido e dos sem terra –, que são assuntos difíceis, envolvendo articulações de diferentes e já complexos arranjos lógicos. Ficaremos aqui apenas com o desafio da lógica do futebol, e ver o que aí poderemos fazer. Enquanto se toma fôlego: veja o leitor como é difícil pensar no Brasil, posto que a burrice nos ataca de todos os lados, inclusive de parte dos que se proclamam os mais doutos!
* * *
Liminarmente, como seria natural, temos que nos defender do formalismo insidioso, que já se imiscuiu no campo do aleatório (5) e no próprio jogo (6), com o obsessivo intento de decretar-lhes o enquadramento ou morte, ou seja, as respectivas teorias formalizadas. E o ideal emblemático, como todos nós bem sabemos, seria o computador chegar a derrotar o grande mestre numa seqüência de partidas de xadrez. Finge-se que dentro da carcaça metálica não há ninguém, apenas chips, ou como na piada, apenas um anão (em caso extremo, à força, um chinês...). Na verdade, ali dentro está, o trabalho de uma enorme equipe de lógicos, matemático, neurocientistas e muito capital, todos juntos empenhados em representar a grande farsa: que história não há mais (7).
A matemática, já o mostramos (8), deriva da linguagem natural pelo congelamento ou esterilizazação de suas três propriedades identitárias: reflexidade (I), historicidade (I/D) e dependência contextual (ou ilimitada complacência metafórica) (I/D/D). Assim, ficam operantes, apenas a potência lógico- diferencial (D) e o correlato ente significante e a potência lógico formal ou calculadora (D/D) e seu correlato mundo fisgado (9).
Kolmogorov (10), já em 1930, ao lançar os fundamentos da teoria axiomática das probabilidades adjudicava probabilidades (valores numéricos no intervalo fechado [0, 1]), não aos eventos singulares (por exemplo, 1/6 a cada uma das 6 faces de um dado regular), mas sim a cada um de todos os subconjuntos de possíveis eventos, isto é, a cada um dos elementos do chamado conjunto potência do conjunto de eventos elementares. Por exemplo: 2/6 ao conjunto de faces {2, 5} ou {3, 6}; 3/6 ao conjunto {2,4,6} ou {1, 2, 5}; 6/6=1 ao conjunto único {1,2,3,4,5,6}; 1/6 a {1} ou {3}, 0/6=0 a {nenhuma face} e assim por diante. Por que o fazia desta maneira? Porque desta feita garantia que suas probabilidades constituíssem uma função sobre um espaço essencialmente já matematizado, em razão de que o conjunto potência constitui um monóide (11), isto é, possui aquelas três propriedades lógicas identitárias das linguagens naturais adrede esterilizadas – possui um elemento neutro à esquerda e à direita, é fechado e associativo. Quando é introduzida a seqüência aberta de eventos (jogadas sucessivas do mesmo dado, indefinidamente) se está obviamente internalizando à teoria a seqüência dos números naturais e nestas condições, a teoria também fica sujeita às limitações do teorema de Gödel (12). Em suma, um belo esforço de reduzir tudo ao simplesmente calculável, D/D, mas que se revela infrutífero, porque a teoria será sempre incompleta, denunciando que D está pressuposto em D/D e que, ademais, o ultrapassa (o que é um truísmo em nossa taquigrafia). Só se consegue mesmo é esterilizar as potências lógicas I, I/D, I/D/D, porque isto já acontecia a priori, pois estava na essência mesma do ser matemático. Para a teoria dos jogos valem, sem qualquer dúvida, estas mesmas considerações.
Veja-se o ridículo. Diante de todos os supercomputadores do Pentágono, ainda assim sentiu que eles não eram capazes de calcular (D/D) os possíveis, os riscos e as ações adequadas para fazer face ao terrorismo a cavalo, armado de facas e garfos. Então convoca-se uma reunião de gente de Hollywood para gerar possibilidades incalculáveis (D). Ainda que risível, isto só faz algum sentido se esta gente não viesse a se comportar como mera roleta ou gerador de números aleatórios (D matemático, isto é, sem estar contraposto a I), e sim como verdadeiros “artistas” (D de gente viva, criativa mas obscuros deste mundo, na circunstância, também se haveria de convocar para a pajelança antepassados já mortos, desde que ainda por aqui e na ativa. Tudo isto, nos parece óbvio, com a precípua finalidades de reanimar D, que sempre comparece, contudo já exangue, ao reino da matemática.
* * *
Ensinam-nos os doutores que no século XIX os ingleses criaram o futebol como seu mais insidioso produto de exportação, assim como depois os americanos do século XX teriam criado os filmes de Hollywood com o propósito expresso de fazer a nossa cabeça. Discordamos: tanto num como noutro caso, trata-se de produto cultural de largo uso e consumo interno. É verdade que foram depois exportados em grande escala, mas só deixaram que isto acontecesse porque tinham a certeza de que eles seriam compreendidos, no máximo, só pela metade. O futebol cai na classe dos ritos de inversão, cuja função em geral, sabemos, é dar estabilidade às estruturas vigentes de dominação.
O futebol é jogo, como todo jogo, uma criação humana, e por isso compreende obrigatoriamente uma regra convencional; portanto, nele não se pode de modo algum desconsiderar a presença da lógica clássica ou da dupla diferença D/D. Ela governa as famigeradas regras do Football Association, e que nos chegam de Londres (ver figura 1).
Por serem regras convencionais podem ser transgredidas e para que, ainda assim, possam se manter, precisa-se de um pai, de um príncipe, ou ainda melhor, de um árbitro absoluto, realidade lógico transcendental I, capaz de fazê-las suas e impor estas (suas) regras (ou a lei) a qualquer preço. Até pode eventualmente marcar um pênalti inexistente que venha alterar completamente o destino de uma partida; sendo erro material, nada há que contestar.
Teremos agora, o principal: dois (D) times determinados (I) a quebrar um a determinação do outro, isto é lutando pela vitória, a conhecida verdade da lógica dialética (13). O modo de ser da vitória é o impossível, de tal sorte que, tão logo terminada uma partida, se tem que começar a encarar a peleja seguinte. A vitória mal chega para uma noite de festa.
Figura 1 Lógica do futebol
Mas não é tudo; ainda virão intervir no jogo fatores aleatórios, de ordem física, emocional e cultural. O dramaturgo Nelson Rodrigues sintetizava tudo isto em dois personagem vindos do excessivamente longe. De um lado, o Sobrenatural de Almeida, contumaz na ajuda ao seu time, o Fluminense, realizando pequenas intervenções providenciais como deslocar levemente um travessão para que um pênalti indefensável batido pelo adversário se perdesse ou que uma bola descrevesse uma curva, que a mecânica não subscreveria, para entrar indefensável na meta adversária no derradeiro instante de jogo. De outro lado havia o Gravatinha, que só comparecia a campo para infernar a vida do seu Fluminense. Fazia os mesmo tipos de intervenções que aquelas do Almeida, mas sempre no sentido de beneficiar o adversário. É evidente que eles personalizam fatores aleatórios, portanto, sob a égide da lógica da diferença D, com seus indefectíveis modos simétricos de realização: paracompleto e paraconsistente. Agora, se quisermos abrasileirar um pouco a lógica, podemos falar em “realização” Sobrenatural de Almeida e “realização” Gravatinha, ao invés de paracompleta e paraconsistente.
O conjunto destes aspectos integrados, em princípio pareceriam formar um todo governado pela lógica hiperdialética I/D/D. Quase. Na realidade, aparentes são logicamente os aspectos ligados a família I, no caso, a partida ou os times em disputa (I/D) e o juiz (I). Entrementes, o juiz só é considerado realmente bom quando sua presença passa desapercebida, como se dá naturalmente com as regras do jogo (D/D), que se mantêm como um fundo ou referencial invisível. Ora, regras do jogo e juiz formam o conjunto dos aspectos masculinos (D/D e I), o que nos leva a concluir que no futebol, estes é que devem assumir a posição do recalcado. Um juiz aparentemente homosexual e exibido quebra o encantamento do jogo, a menos que ele se assuma supermachão e parta para o confronto com o mais forte e agressivo dos jogadores em campo. Isto acrescenta uma nota dissonante e ao mesmo tempo humorística ao jogo.
O que deve pré-valecer é tão apenas o conjunto dos aspectos femininos do jogo: de um lado, o “aparente”, as equipes em disputa pela vitória (I/D) e de outro lado a eventual intromissão do acaso (D). As torcidas sobretudo torcem ou tentam torcer a realidade, usando de todos os recursos imagináveis – rezar, fechar os olhos, desligar o rádio, gritar para afugentar, cruzar dedos, descruzar pernas, beijar santinho, torcer a fralda da camisa,... não há mesmo como enumerar – para, no fundo, convocar ou conjurar os “não aparentes” nossos já conhecido: Sobrenatural de Almeida e Gravatinha.
Como a técnica é a pseudo-síntese qüinqüitária masculina associando ciência (D/D) e autodeterminação (I), isto é, (I)½(D/D), podemos inferir que o jogo de futebol deve trazer em si algo dual, pseudo-síntese qüinqüitária (I/D)½(D), vale dizer, uma espécie de versão feminina da técnica. Dá para reconhecer?!
Por tudo que dissemos, o jogo encanta muito mais aos homens do que às mulheres: eles não escondem que amam o futebol (e quando o transam, jogando ou assistindo, esquecem as mulheres, como todas elas bem sabem e tanto odeiam). Já para as mulheres o jogo exerce bem menor fascínio: as regras (que por si já lhes incomodam) e um juiz sem virilidade aparente, sumido, mero “soprador de apito”, não lhes pode suscitar qualquer paixão.
A posição hierárquica no futebol, feminino dominante, masculino dominado, é o inverso da característica lógica da Modernidade, conforme o plano edificante que vige desde a caça às bruxas (14). Isto posto, não surpreende que o jogo de futebol tenha sido uma invenção inglesa, um entre os muitos ritos de inversão que ajudam a manter a estabilidade da estrutura de dominação. Note-se que o Carnaval também é um rito de inversão, mas que preserva a mesma característica lógica da formação cultural Moderna. O rei (I) é substituído por uma figura subalterna, o rei-momo, mas este ao ganhar as chaves da polis passa a ocupar a posição lógica (I). Por isso o Carnaval só pode rolar por alguns dias (a não ser na Bahia, que se resguarda sempre um pouco da Modernidade!), enquanto que, por representar uma inversão radicalmente lógica, pode o futebol rolar quase que dia e noite, em paralelo com as fábricas e os negócios.
Há sem nenhuma dúvida jogos semelhantes, mas não tão perfeitamente invertidos. Há ainda detalhes, como onze de cada lado, totalizando vinte e dois jogadores, que apresentam uma inequívoca ressonância cabalística.
Ficam ainda muitas perguntas. Entre elas, por que o futebol apaixona tanto brasileiros e argentinos. Por que, tão abaixo da média, os americanos?
Notas
1. HEGEL G. F. Science of Logic, 2 v. London, Allem & Unwin, 1951.
2. HUSSERL, E. Logique formelle et logique transcendantale, Paris, PUF, 1965.
3. SAMPAIO, L. S. C. de. Filosofia da cultura – Brasil, luxo ou originalidade, Rio de Janeiro, Ágora da Ilha, 2002.
4.______.ibid, especialmente, capítulo 5
5. KOLMOGOROV, A. N., Foundations of Probability, N. Y. Chelsea, 1950
6. NEWMANN, J. von and MORGENSTERN, O., Theory of games and economic behaviour, Princeton, N. J.,1944.
7. É justamente aqui onde se unem pós-modernos continentais e pragmáticos anglo-saxônicos, em coro, contra a Grande Narrativa, apelido que dão hoje à História.
8. SAMPAIO, L. S. C. de Lógica Ressuscitada – Sete ensaios, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2000. Capítulo 4
9. A linguagem natural é logicamente homóloga ao ser humano, por isto este pode ser dito com propriedade ente falante. Comportam ambos cinco lógicas: transcendental I, da diferença D, dialética (trinitária) I/D, clássica ou da dupla diferençca D/D e hiperdialética (qüinqüitária) I/D/D. É portanto óbvio que pondo fora de ação as lógicas identitárias, I, I/D e I/D/D, sobrem apenas operando as lógicas diferenciais, D e D/D.
10. KOLMOGOROV, op. cit.
11. SAMPAIO, L. S. C. de. Lógica Ressuscitada, op. cit, Capítulo 4.
12. NAGEL, N., NEWMAN, L. R., GÖDEL, K., GIRARD, J-Y. Le Théorème de Gödel, Paris, Seuil, 1989. Ver também SAMPAIO, L. S. C. de O Grande Teorema – Generalização do teorema de Gödel e de outras artimanhas que se lhe poderiam associar. Rio de Janeiro, 2001 (xerox)
13. SAMPAIO, L. S. C. de Lógica Ressuscitada, op. cit. pp. 165-166
14. SAMPAIO, L. S. C. de O Futuro da Psicanálise em obra coletiva homônima. Rio de Janeiro, UERJ/FINEP/etc...(no prelo) e também Filosofia da Cultura – Brasil, luxo ou originalidade., op. cit. Especialmente capítulo 5, onde se mostra que o episódio da caça às bruxas não é o último da Idade das Travas, mas o primeiro da Modernidade: trata-se da construção dos alicerces, do recalque do feminino, com isto, também de suas lógicas I/D e D. A seguir, sim, desponta a ciência (D/D) e seu sujeito liberal sujeitado (I), ou seja a face masculina risonha e dominadora da Modernidade.
Rio de Janeiro, setembro de 2001
Nenhum comentário:
Postar um comentário