Laboratório para a convivência das diferenças - de raça, de cor, de cultura e de religião -, o Brasil cada vez mais parece incapaz de diminuir suas indecentes desigualdades sociais. A economia afasta irremediavelmente o que a cultura aproxima.(nda) [1]
Zuenir Ventura
Existem hoje uma multiplicidade de discursos marcadamente ideológicos com o propósito deliberado de ocultar a dimensão cultural do ser social. O mais comum e grosseiro é afirmar que o social está composto de três dimensões básicas: o político, o econômico e o social. Isto é hoje repetido à exaustão e estrutura todos os discursos públicos e privados. Outro, um pouco mais sutil, está na defesa irrestrita do multiculturalismo, discurso já com uma certa áurea de nobreza acadêmica.
O primeiro discurso constitui uma absurdidade tão grande quanto afirmar que o corpo humano está dividido em três parte - cabeça, tronco e corpo humano - ou, que a Trindade é formada pelo Espírito Santo, pelo Filho e pela Trindade mesma, ocultando, lacanianamente, o nome do Pai. Trata-se de um discurso facilmente desmontável, desde que não lhe sejamos também coniventes. O correto seria ter o cultural no lugar do social [2], e assim deve ser não por capricho ou revelação, mas porque a cultura é o fundamento da unidade do ser social, o econômico, necessariamente fonte de suas diferenciações internas, e o político, o lugar da síntese que permite recuperar seu ser uno, agora uno/trino ou dialético. Quanto maior a espessura e consistência cultural de um grupo social, mais ele pode dar largas à inventividade tecnológica e ao dinamismo competitivo, pois a nível político pode-se tudo remediar e assim recuperar a imprescindível integridade grupal. Estas prosaicas observações servem também para deixar a nu o caráter ideológico, e novamente absurdo, do discurso filo-multiculturalista: o múltiplo que é, ao mesmo tempo, um. Algo equivalente ou pior do que um círculo quadrado! Em que pese ser logicamente supérfluo apresentar novos argumentos, nossa andanças e vivências nos dizem que, infelizmente, continuar é preciso.
Há muito testemunhamos o acordo de essência entre cavalheiros de esquerda e liberais de centro e direita quanto ao primado ou mesmo exclusivismo da dimensão econômica. Mesmo a tese do fim das ideologias, de Bell a Fukuyama, se nos afigura como um artifício ideológico para impor universalmente o econômico como determinante em última instância do ser social. Não haveria mais o que se inventar em termos de sociabilidade, tão só calcular, vender e comprar; os direitos humanos confundir-se-iam com os direitos do produtor e do consumidor.
Em tempos recentes [3] começamos a ouvir as primeiras vozes dissonantes chamando a atenção para a importância crucial da dimensão cultural da sociedade. Para exemplificar, citaríamos Samuel Huntington, da Universidade de Harvard, abordando a questão cultural de modo amplo em seu recém traduzido The Clash of Civilizations [4] e Lawrence Harrison, do Massachusetts Institute of Technology, que em Pan-American Dreams [5] retoma, em termos culturais, a velha questão das diferenças entre as Américas, abaixo e acima do Rio Grande.
Não é possível negar hoje a força do processo de globalização implícita ou explicitamente tido como de natureza econômica, mas cuja dimensão cultural torna-se cada vez mais difícil de elidir. Um razoável conhecimento histórico leva-nos facilmente a concluir que, considerado o longo ou mesmo o médio prazo, o que está verdadeiramente em curso é um gigantesco esforço de des-dialetização do mundo que, fora consumável, logicamente significaria o fim da história; praticamente, um empenho delirante de transformação de uma hegemonia histórica contingencial numa dominação para sempre, absoluta. Chegando-se ao pensamento (ou paradigma) único, que poderia mais acontecer senão a eterna mesmice?! Não estamos diante de um processo sem sujeito intencional, tecedura de uma mão invisível como tanto se propala, mas sim diante de um processo de feroz empenho na consecução de uma missão, pretensamente civilizadora, com todo o esplendor sacro que este tipo de auto-imputação coletiva sempre suscita. Algo já visto e provado: a “paz” romana universalizando (civilizando o mundo) via cultura filosófica grega, tal como agora a “paz” americana universaliza (civiliza o mundo) via cultura científica anglo-saxônica.
Na arena competitiva mundial, atacando ou defendendo, em última instância, está desde sempre uma cultura. Quando o espaço de uma cultura ou variedade cultural coincide com um espaço de soberania política, temos uma só nação; estará também presente aí uma política cultural, desiderato e ações de um sujeito coletivo muito bem definido. O exemplo mais contundente de política cultural é o dos EUA, embora se tenha uma certa dificuldade para percebê-la, na medida de que ali se confundem as políticas de segurança econômica e cultural. Pela particularidade de que a cultura por eles considerada ser a cultura de massa, cultura das massas [6], cultura de “classe média”, esta praticamente se confunde com a sua política comercial ou de marketing e vice versa; na prática, ali ocorre uma verdadeira fusão de estratégia de marketing e estratégia cultural. No caso da França, nação com política cultural das mais consistentes e exuberantes, as coisas nos parecem mais visíveis. A razão disto está em que lá não acontece o mesmo tipo de fusão que pudemos constatar no caso dos EUA, dado o caráter “cultivado” da cultura ali considerada; ao invés de filmes de farwest, bandas de rock, carros, jeans, cigarros e beberagens com seus anúncios de fundo invariavelmente sexual (ou esportivo, o que é o mesmo) que “vendem” a cultura americana, os franceses enviam-nos filósofos e seus livros para “venderem” a sua. Para encerrar esta pequena amostra, citamos o Estado de Israel, exemplo notável, onde há também fusão, no caso, entre o cultural , com seu sólido núcleo religioso e o político propriamente dito e não entre o econômico e o cultural, como nos EUA, dada a desproporção destas dimensões considerado o aspecto meramente físico do país. Sem quaisquer dúvidas, cada um a seu modo, ótimos exemplos para serem imitados!
O segundo discurso não vela a dimensão cultural do ser social. Deixa que ela apareça, mas desnaturada em sua essência lógica: ao invés da defesa da cultura, loas às delícias do multiculturalismo.
O moderno capitalismo deixou de ter seu centro dinâmico na acumulação, no retorno projetado do capital, vale dizer, na historicidade dominada pelo lógica do cálculo - capitalismo produtivista/calvinista na terminologia de Baudrillard, Agoira, o tem no marketing, na domesticação do inconsciente desejante, vale dizer, reinventou-se como capitalismo consumista/hedonista [7]. Nestas circunstâncias, o dinamismo do núcleo duro do capital - espaço onde mais fortemente se harmonizam as formações cultural, econômica e política, e, por conseqüência, também o poderio político-militar - passa a te, como condição de efetividade, a preliminar destruição da cultura do outro. Este último fenômeno não é novidade, e um exemplo que nos é bem próximo é o do etnocídio ocorrido de uma ponta a outra da América com a “descoberta” e que continua hoje ainda um pouco por toda parte. Acontece que antes, a agressão à cultura era uma consequência da intrusão econômica, enquanto que hoje, dada a mutação mencionada, tornou-se desta última um iniludível pré-requisito. Passou a ser próprio e essencial segmentar o outro - em termos “técnicos”, segmentar o mercado -, não como um “ato de pensamento”, mas como um ato concreto da ação social. Para ilustrar, recordemos o percurso da mídia no Brasil, nos últimos trinta anos: primeiro a promoção da jovem guarda, para segregar a faixa de 15 a 20 anos e constituí-la classe consumidora independente; depois os Menudos, para fazer o mesmo com a faixa de 11 a 15; ao que se seguiu o fenômeno Xuxa, segregando a faixa de 4 a 11 e especula-se nos laboratórios de psicologia aplicada como descer um pouco mais, para chegar a alcançar um hipotético inconsciente fetal. Já se trabalha hoje com eficácia o inconsciente “virtual” de animais doméstico, como se pode ver nos anúncios de comidas, remédios, shampoos etc. para cães e gatos.
Tudo passou a ser discriminatório, não pela irrupção de um súbito e universal sentimento de solidariedade social, mas como fundamento categorial para alimentar o processo sem fim de segmentação mercadológica. Não se trata de piada: recentemente anunciou-se em Londres a instalação de uma cadeia de móveis especializados para casais homosexuais. Talvez, com camas com lados de um lado só!
Nestas circunstâncias, que mais poderia auxiliar o capitalismo nesta nova fase senão o empenho na proliferação anárquica de minorias, e sobre tudo a defesa do multiculturalismo, obviamente, lá para as bandas de seu quintal [8]. São bem conhecidos os casos e destinos de muitas “formações muticulturais”: a Iuguslávia, a Índia pós independência, o ex-Congo Belga, Ruanda, a União Soviética, para ficar apenas nos mais recentes e trágicos.
Quanto à última, se quer insistentemente marcar o seu esfacelamento pela queda do Muro de Berlim, justamente pelo muro que nunca houve, tendo-se em vista que de ambos os lados, malgrado, jamais deixou-se de falar a mesma língua, de ler Goethe, Novalis, Hölderlin, de ouvir Bach, Beethoveen, Brahms, a meditar sobre o que disseram Kant, Fichte, Hegel, Marx, Nietzsche, Heidegger, e quão gigantescamente mais! A união Soviética foi destruída por dentro, na medida em seu Soviete das Nações era uma farsa a encobrir um imperialismo cultural que viabilizava um real imperialismo econômico interno; por que cultivou o multiculturalismo e pouco ou nada fez na direção do diálogo necessariamente tenso e arriscado, sim, que levasse à constituição de uma nova síntese cultural, outro não poderia ser o seu destino. O homem novo soviético jamais foi além do homo economicus pretensamente aperfeiçoado. Os muros que verdadeira e historicamente contam são os que ainda lá estão inteiros de pé: entre a Rússia e a Ucrânia, entre Rússia e Bielo-Rússia, entre a Rússia e os países bálticos, entre a Rússia e a Chechênia, e outros mais que seria fastidioso prosseguir enumerando.
O multiculturalismo só é uma benção numa circunstância: como fato histórico e sentimento de profunda reverência em relação ao conjunto de culturas que se fizeram fonte de uma nova síntese cultural; culturas que deram ensejo à edificação de um novo modo de ser-coletivo que, de certo modo, é verdade, as consumiu, porém, para assim também conservá-las, como há muito ensina-nos Hegel. Uma conjuntural multiplicidade co-espacial de culturas pode ser uma excepcional oportunidade para fazer surgir o significativamente novo, mas apenas para os que disso tornarem-se dignos, para aqueles que tiverem coragem para suportar as inevitáveis dores deste doloroso parto, que se dispuserem a amar o pardo, o cafuzo, o mameluco e, a mais, a mistura destas mistura, que em determinada circunstância, como a nossa na atualidade, já significa a pura e simples decisão pela auto-estima, literalmente, pelo amor próprio. O diabo é que ela é também a oportunidade, dados a violência e riscos imanentes, para os grandes e trágicos fracassos históricos.
A propósito, o ódio de boa parte de nossas “elites” a Getúlio Vargas vem de que em seus governos, fato excepcional em toda a nossa história, os donos do poder resolveram assumir os já explorados como sendo desde então seus, desistindo de embranquecê-los ou trocá-los por outros menos broncos; continuavam explorados, sim, mas, como assumidos, tornava-se preciso preservá-los, primeiro, reforçando o mercado interno (até como condição de um ulterior voltar-se para fora, de que, aliás, não há qualquer exemplo histórico em contrário), depois, construindo um sistema público de educação básica eficiente e tendencialmente universalizante, em suma, proporcionando-lhes as condições de subsistir e educar-se. A alienação de nossas elites é tal que acabou hoje culpando a si própria pelos reiterados fracassos nos esforços de “modernização” da nação, e decidiu não mais substituir os explorados, mas a si mesma, a entregar o País por inteiro a administradores estrangeiros.
Ao posicionarmo-nos contra o multiculturalismo, não estamos fazendo o mesmo frente à diversidade cultural, ou, ao que se diria com um pouco mais de precisão, usando um termo técnico caro aos estatísticos, a variança cultural. Ao contrário do multiculturalismo, o termo variança cultural é essencialmente relativo a uma espessura cultural comum. A relação entre esta e a diversidade cultural pode ser até altamente positiva; quanto mais consistente a espessura cultural, mais ela poderá dar suporte à diversidade, sem maiores perigos para a integridade do grupo social em questão. Para qualquer formação sócio-cultural uma larga variança - aqui incluída a sobrevivência, até com um elevado grau de autonomia, das formações culturais que se fizeram fontes e que foram ou tornaram-se minoritárias - passa então a ser um fator dos mais significativos para a preservação do seu vigor adaptativo e mesmo condição de sua maior longevidade.
Interesses externos bem visíveis aliados a boa parte de nossas elites econômicas, não por maldade intencional, mas por simples obediência à nova lógica do capitalismo, não fazem outra coisa hoje no Brasil, senão investir na sua desagregação cultural, como se faz manifesto em toda a mídia. E o que é de estarrecer, com a cumplicidade quase que unânime de nossas elites intelectuais. Um de seus motes preferidos não poderia ser outro que o multiculturalismo.
A insistência nas quiméricas virtudes do multiculturalismo, quando sincera, nada mais é do que cegueira economicista e, assim, contribuição graciosa à inexorável estratégia etnocida do capitalismo de marketing; em síntese, é fazer o jogo do inimigo. Quando pouco sincera, sonsa, nada mais é que um exercício de cafetinagem de minorias artificiosas ou “virtuais”, que pode sim dar seus pequenos rendimentos econômico-financeiros, limitados frutos eleitorais. Tanto de uns como de outros quase nada que se possa deveras temer em termos de graves estragos culturais porque, afinal, nós, culturalmente mestiços, em vias de consolidação de um enormemente sofrido processo de invenção de uma nova cultura, de um novo modo de ser social, já constituímos a maioria da nação, nação que só falta tornar-se o que deveras é, essencialmente nossa.
Luiz Sergio Coelho de Sampaio
Rio, 8 de agosto de 1997
Notas
1. Zuenir Ventura, Jornal do Brasil, 28 de março de 1998.
2. Existe uma enorme variedade deste mesmo tipo de discurso, que nem poderíamos comentá-los todos. Entrementes, pela importância que assume em determinados círculos da elite brasileira, vale a pena citar as 4 expressões do Poder Nacional conforme a doutrina da ESG; seriam elas a política, a militar a econômica a e a psico-social. A militar, a rigor, é política, mas em se tratando de uma doutrina emanada do meio militar, compreende-se bem a razão do destaque. O psico-social é que ali ocupa o lugar do cultural, ou melhor, pelo teor de seu conteúdo, trata-se do próprio cultural reduzido apenas à sua expressão operativa.
3. O assunto não é obviamente novo em âmbito mais acadêmico, em especial para os que chegaram a ter contato com Hegel (Fenomenologia do Espírito, Lecciones sobre la filosofia de la história univesal) ou leram qualquer das obras de Toynbee (particularmente A Study of History).
4. HUNTINGTON, Samuel p. The clash of civilizations and the remaking of the world order. N. York, Simon and Schuster, 1996.
5. HARRISON, Lawrence. Pan-American Dreams. MIT
6. Remetemos o leitor ao famoso livro A rebelião das massas de ORTEGA E GASSET, onde vamos assistir a reação de uma poderosa e cultivada mente européia à irrupção avassaladora da cultura de massa no mundo. Hoje, não se pode ter dúvidas de ele visava especialmente os EUA.
7. Não se fez até hoje uma análise realmente séria do nazi-fascismo, que o mostraria, em essência, como uma resposta antecipada ao capitalismo de marketing, assim como o comunismo soviético foi uma resposta retardada ao capitalismo de acumulação. Esta tese é respaldada pelos estudos que identificam o movimento soreliano francês como uma das principais fontes do fascismo europeu (Sternhell, Sznajder, Ashéri - Naissance de l’idéologie fasciste - Gallimard). É precisamente esta conexão real, mas não esclarecida, que possibilita hoje acusar de fascista todo aquele que esboça qualquer gesto significante de resistência cultural e, assim, mantê-lo profilaticamente afastado da mídia.
8. O Conde d’Arcos, governador da Bahia em tempos coloniais, relata em suas memórias que fora constantemente cobrado pelos Particulares da terra para impedir os agrupamentos para papo e batuques dos negros escravos, aos domingos, por toda a cidade de Salvador - era uma vergonha aos olhos de qualquer visitante, diziam. Ele confessa sua inação, argumentando que só assim se conservariam as idéias de aversão e raiva recíproca que eles traziam da África. Mais ensinava: a dissolução do multiculturalismo provocaria a imediata união dos negros pela só identidade de sua situação desgraçada, e isto, diz com todas as letras, não podia trazer senão terríveis consequências. Afinal, quem tudo isso afirma, é um intelectual - e se não chegava a príncipe, era pelo menos um conde psico-sociólogo avant la lettre -, por isso, cremos, pôde ser assim tão esperto e, ao mesmo tempo, didático.
Nenhum comentário:
Postar um comentário