6.4.17

Multiculturalismo: a insidiosa verdade do inimigo - II

Brasileira sempre jeitosa – Vim reivindicar minha inclusão na cota de negros. Eis o retrato e o requerimento.

Funcionário zeloso – Desculpe, mas por aqui, só pela cara não dá; é preciso agregar ao requerimento seu mapa genético. Compreenda, se não cuidarmos, isto aqui vai acabar enchendo só com garotas morenas de Ipanema


Obviamente, o multiculturalismo não pode ser considerado uma mal em si. Como seria possível gerar uma nova cultura sem emergir dentre os despojos de uma cultura ou, o que seria hoje o mais provável, sem passar por um processo dramático de encontro/confronto de culturas?

Entretanto, não podemos desconsiderar a evidência que, na circunstância, o que mais pode auxiliar o capitalismo em sua fase consumista é a proliferação anárquica de minorias. Para tanto, que haveria de mais útil que a defesa cega do multiculturalismo, especialmente, lá para as bandas do quintal alheio? São bem conhecidos os casos e destinos de muitas “formações muticulturais”: a Iuguslávia, a Índia pós independência, o ex-Congo Belga, Ruanda, a União Soviética, para ficar apenas nos mais recentes e trágicos.

Quanto à última, se quer insistentemente marcar o seu esfacelamento pela queda do Muro de Berlim, justamente pelo muro que nunca houve, tendo-se em vista que de ambos os lados, malgrado, jamais deixou-se de falar a mesma língua, de ler Goethe, Novalis, Hölderlin, de ouvir Bach, Beethoveen, Brahms, a meditar sobre o que disseram Kant, Fichte, Hegel, Marx, Nietzsche, Heidegger, e quão gigantescamente mais! A união Soviética foi destruída por dentro, na medida em seu Soviete das Nações era uma farsa a encobrir um imperialismo cultural que viabilizava um real imperialismo econômico interno. Porque cultivou o multiculturalismo simplista e pouco ou nada fez na direção do diálogo necessariamente tenso e arriscado, sim, que levasse à constituição de uma nova síntese cultural, é que outro não poderia ser o seu destino. O homem novo soviético jamais foi além do homo economicus pretensamente aperfeiçoado. Os muros que verdadeira e historicamente contam são os que ainda lá estão inteiros de pé: entre a Rússia e a Ucrânia, entre Rússia e Bielo-Rússia, entre a Rússia e os países bálticos, entre a Rússia e a Chechênia, e outros mais que seria fastidioso prosseguir enumerando.

O multiculturalismo só é uma benção numa circunstância: como fato histórico e sentimento de profunda reverência em relação ao conjunto de culturas que se fizeram fonte de uma nova síntese cultural; culturas que deram ensejo à edificação de um novo modo de ser-coletivo que, de certo modo, é verdade, as consumiu, porém, para assim também conservá-las, como há muito ensina-nos Hegel. Uma conjuntural multiplicidade co-espacial de culturas pode ser uma excepcional oportunidade para fazer surgir o significativamente novo, mas apenas para os que disso tornarem-se dignos, para aqueles que tiverem coragem para suportar as inevitáveis dores deste doloroso parto, que se dispuserem a amar o pardo, o cafuzo, o mameluco e, a mais, a mistura destas mistura, que em determinada circunstância, como a nossa na atualidade, já significa a pura e simples decisão pela auto-estima, literalmente, pelo amor próprio. O diabo é que ela é também a oportunidade, dados a violência e os riscos imanentes, para os grandes e trágicos fracassos históricos.

A propósito, o ódio de boa parte de nossas “elites” a Getúlio Vargas vem de que em seus governos, fato excepcional em toda a nossa história, os donos do poder resolveram assumir os já explorados como sendo desde então seus, desistindo de embranquecê-los ou trocá-los por outros menos broncos; continuavam explorados, sim, no entanto, como assumidos, tornava-se preciso preservá-los, primeiro, reforçando o mercado interno (até como condição de um ulterior voltar-se para fora, de que, aliás, não há qualquer exemplo histórico em contrário), depois, construindo um sistema público de educação básica eficiente e tendencialmente universalizante, em suma, proporcionando-lhes as condições de subsistir e educar-se. A alienação de nossas elites é tal que acabou hoje culpando a si própria pelos reiterados fracassos nos esforços de “modernização” da nação, e decidiu não mais substituir os explorados, mas a si mesma, a entregar o País por inteiro a administradores estrangeiros.

Ao posicionarmo-nos contra o multiculturalismo, não estamos fazendo o mesmo frente à diversidade cultural, ou, ao que se diria com um pouco mais de precisão, usando um termo técnico caro aos estatísticos, a variança cultural. Ao contrário do multiculturalismo, o termo variança cultural é essencialmente relativo a uma espessura cultural comum. A relação entre esta e a diversidade cultural pode ser até altamente positiva; quanto mais consistente a espessura cultural, mais ela poderá dar suporte à diversidade, sem maiores perigos para a integridade do grupo social em questão. Para qualquer formação sócio-cultural uma larga variança - aqui incluída a sobrevivência, até com um elevado grau de autonomia, das formações culturais que se fizeram fontes e que foram ou tornaram-se minoritárias - passa então a ser um fator dos mais significativos para a preservação do seu vigor adaptativo e mesmo condição de sua maior longevidade.

Interesses externos bem visíveis aliados a boa parte de nossas elites econômicas, não por maldade intencional, mas por simples obediência à nova lógica do capitalismo, não fazem outra coisa hoje no Brasil, senão investir na sua desagregação cultural, como se faz manifesto em boa parte da mídia. E o que é de estarrecer, com a cumplicidade quase que unânime de nossas elites intelectuais. Um de seus motes preferidos não poderia ser outro que o multiculturalismo.

A insistência nas quiméricas virtudes do multiculturalismo, quando sincera, nada mais é do que cegueira economicista e, assim, contribuição graciosa à inexorável estratégia etnocida do capitalismo de marketing; em síntese, é fazer o jogo do inimigo. Quando pouco sincera, sonsa, nada mais é que um exercício de cafetinagem de minorias artificiosas ou “virtuais”, que pode sim dar seus pequenos rendimentos econômico-financeiros, limitados frutos eleitorais. Tanto de uns como de outros quase nada que se possa deveras temer em termos de graves estragos culturais porque, afinal, nós, culturalmente mestiços, em vias de consolidação de um enormemente sofrido processo de invenção de uma nova cultura, de um novo modo de ser social, já constituímos a maioria da nação, nação que só falta tornar-se o que deveras é, essencialmente nossa.



Nota

1. O Conde d’Arcos, governador da Bahia em tempos coloniais, relata em suas memórias que fora constantemente cobrado pelos Particulares da terra para impedir os agrupamentos para papo e batuques dos negros escravos, aos domingos, por toda a cidade de Salvador - era uma vergonha aos olhos de qualquer visitante, diziam. Ele confessa sua inação, argumentando que só assim se conservariam as idéias de aversão e raiva recíproca que eles traziam da África. Mais ensinava: a dissolução do multiculturalismo provocaria a imediata união dos negros pela só identidade de sua situação desgraçada, e isto, diz com todas as letras, não podia trazer senão terríveis consequências. Afinal, quem tudo isso afirma, é um intelectual - e se não chegava a príncipe, era pelo menos um conde psico-sociólogo avant la lettre -, por isso, cremos, pôde ser assim tão esperto e, ao mesmo tempo, didático.

Rio. 24/10/2002

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