6.4.17

Lógica da diferença II - princípio básico, operador característico e valores de verdade

Não poderia ser que “a lógica” é o que se perde da essência do lo’goV? ...

... temos razões suficientes para afirmar que precisamente “a lógica” não apenas bloqueou, como impediu e impede o desdobramento essencial do lo’goV.

M. Heidegger. Heráclito



Consideramos como um fato incontestável a existência de uma lógica da diferença(2), distinta da lógica clássica, ao mesmo tempo mais originária e menos constringente que esta última. A lógica da diferença é a lógica do outro, do pensar inconsciente e da espacialidade, assim como a lógica da identidade ou transcendental é a lógica do mesmo, do pensar consciente e da temporalidade; e são precisamente estas que ensejam a insurgência da síntese lógico-dialética.

Nosso principal objetivo aqui é avançar um pouco mais no desvelamento desta lógica tanto tempo esquecida, a lógica da diferença. Desdobrando esta intenção, abordaremos os seguintes temas: a justificação do atributo fundamental que será adjudicado à lógica da diferença; a explicitação de seu princípio básico e, depois, sua expressão de maneira similar àquela que já se pode dar aos princípios das demais lógicas; a definição de seu operador característico e o cálculo de seus respectivos valores próprios - valores estes que constituem representações numéricas precisas de valores de verdade -; por fim, a ilustração daquilo que especificamente visa o pensar lógico-diferencial.


1. Lógica da diferença, uma lógica fundamental

Lógicas fundamentais são aquelas que não podem ser concebidas como resultantes da síntese (3) de outras lógicas. Caso contrário, a lógica será tida como derivada e este seria o caso, por exemplo, da dialética hegeliana, considerada uma síntese das lógicas da identidade e da diferença.

Referindo-nos à tradição filosófica do Ocidente, a lógica da identidade seria aquela que governa o cogito cartesiano, o sujeito transcendental da crítica da razão pura kantiana, o eu tal que eu=eu da doutrina da ciência fichteana e também o sujeito da ciência na fenomenologia husserliana. É a lógica do pensar consciente em sua generalidade, transparente a si próprio, responsável pela nossa capacidade de pensar o ser e o nada, de afirmar tanto a própria existência quanto a auto-identidade - eu sou o que sou - como também a existência ou a identidade objetiva - isto é uma cadeira, aquilo é um gato, tal coisa existe etc.

Em paralelo, será preciso admitir em nós mesmos uma capacidade elementar sincrônica de diferençar, discriminar, atentar para, segregar, delimitar, todas elas correlatas à capacidade diacrônica de negar, perder e reaver, transgredir, se espelhar em, complementar, reter ou evacuar, escolher, passar de um para outro etc. que denominamos capacidade lógico-diferencial.

Como se hierarquizam as lógicas da identidade e da diferença? Seria possível fazer derivar uma da outra? Como condição preliminar de uma resposta está a tomada de um certo distanciamento que nos permita assumir um ponto de vista externo aos termos desta problemática. Este poderia ser o ponto de vista subjetivo, aquele de nossa própria e imediata vivência e aí, neste caso, não teríamos dúvida de que a identidade (a própria auto-identidade) tem que ser necessariamente primeira, pois, toda diferenciação a tem como pré-condição. Este é o ponto de vista assumido por Descartes, Kant e Husserl, só para citar os mais iminentes. Mas poderíamos também assumir o ponto de vista oposto, aquele da objetividade, caro aos homens de ciência. Chegaríamos então à conclusão exatamente contrária: a capacidade lógico-identitária é um a posteriori, produzida pelo colapso de uma diferença. Ela se dá em um preciso momento, no término do processo de invaginamento do ectoderma lombar, ainda no feto, e que vai conferir foros de “interioridade” ao sistema nervoso central (4).

Não vemos como escapar ao dilema; a simples opção por um ponto de vista - subjetivo ou objetivo -, nos faz ortogonalmente oscilar entre a primazia da identidade e da diferença (5). Não se pode, portanto, fazer derivar uma destas lógicas da outra, o que nos obriga a considerar ambas como fundamentais.

É também um fato que todas as demais lógicas, a começar pela dialética, podem ser expressas como resultado da síntese reiterada das lógicas da identidade e da diferença (6), razão pela qual estas e somente estas serão por nós consideradas como verdadeiramente fundamentais.



2. Princípio básico e caracterização operatória

Um dos mais urgentes problemas da lógica, a nosso ver, é a expressão, de maneira relativamente homogênea, dos princípios das lógicas já reconhecidas. Somente a lógica formal tem apresentado uma certa estabilidade e clareza no enunciado dos seus princípio - da identidade, da não contradição, do terceiro excluído e, sem justificada razão, às vezes, o da razão suficiente (7) -, mas o mesmo não se pode dizer da lógica da identidade e ainda menos da dialética.

Por causa disto, resolvemos atacar a questão em sua generalidade, tomando como noção de referência a inclusão (ou seu contrário, a exclusão)(8). Começamos, estipulando como fundamento da lógica da identidade o princípio do primeiro incluído ou do pelo menos um, uma variante (por sinal, mais coerente) do penso, logo existo cartesiano. Teríamos então: penso, logo, pelo menos um - eu - existe.

Este princípio recebe facilmente uma expressão operatória se não olvidarmos de levar em conta:

a) o caráter intencional da consciência - toda consciência é necessariamente consciência de algo ou de um estado de coisa (Brentano/Husserl (9));

b) que o ser consciente de algo não pode de maneira alguma deixar de ser consciente de que é consciente deste mesmo algo, caso contrário cairíamos no absurdo de admitir uma consciência total ou mesmo parcialmente não-consciente (Sartre (10)).

Associando estas duas determinações, chegamos de modo quase que unívoco a que toda consciência de - representada pelo operador I( ) - um estado de coisas genérico - representado pela função y - fica estruturalmente bem caracterizada pela equação I(y)=I(I(y)) ou, de maneira ainda mais compacta, por I(y) = I2(y) (11).

Seguindo este mesmo procedimento, podemos tomar como princípio básico da lógica da diferença (ou da negação originária) aquele do segundo incluído ou do pelo menos dois. Penso que outro pensa, logo pelo menos dois - eu e outro - existem, concomitantemente, para si e para o outro. Trata-se de uma operação de ciclo dois, que não é reflexiva e que afirmada num sentido qualquer, pode sê-lo também no exato sentido oposto, o que, de certo modo, anula o efeito da primeira afirmação, de sorte que, em conjunto, as duas afirmações teriam um efeito nulo. Em suma, com o outro do outro volta-se ao mesmo.

Poder-se-ia pensar então que o operador característico da lógica da diferença é um operador D tal que D aplicado a D retorna ao mesmo, ou seja, D(D(y))=I(y). Próximos, sim, mas não inteiramente corretos, porque ainda estaríamos fazendo o operador D depender do operador I (característico da identidade), o que contraria a tese já estabelecida do caráter fundamental da lógica da diferença.

Como então conciliar a estrutura cíclica binária com a independência de D? A solução, de todas a mais simples, é começar com uma tríplice diferença e fazê-la igual a um simples diferença. Chegaríamos assim à expressão D(D(D(y)))=D(y), ainda uma operação de ciclo dois, porém, agora completamente livre de qualquer referência operatória externa. Em suma, negar originariamente, só se pode se indistintos forem negar e três vezes fazê-lo.

Esta é uma equação mais primitiva que a anterior D(D(y))=I(y), pois, como é fácil constatar (12), desta deduz-se aquela, mas nunca ao contrário.

Em resumo, a lógica da diferença é a lógica governada pelo princípio da negação originária, do segundo incluído ou, ainda, do pelo menos dois, e formalmente representada por um operador D tal que D(D(D(y)))=D(y).



3. Valores de verdade

O grande problema da microfísica estava em que a observação neste âmbito necessariamente vinha perturbar o que estava sendo visado e/ou medido. Os físicos teóricos se deram conta de que a observação, na física clássica, era meta-física, até pior, fantasmagoria, porque uma intervenção que absolutamente não intervinha ou perturbava. A solução estava pois em encontrar um meio de passar para “dentro” da física o próprio ato de observar, de fazê-lo coerentemente também físico.

A resolução de tal problema veio significar, nada mais, nada menos, do que a invenção da mecânica quântica. Assim é que vamos encontrar entre os postulados desta teoria um que se refere especificamente à mensuração - dentre todos eles, sem dúvida, o mais típico e inovador desta nova física.

Tudo começa com a associação de um operador matemático específico Ox a um hipotético instrumento próprio à mensuração da grandeza física x - podendo este x ser a posição, velocidade, energia, quantidade de movimento, carga, spin ou qualquer outra grandeza servindo à descrição de parte ou do todo de um sistema físico. Suponhamos que o sistema em questão se encontre num estado qualquer representado pela função yi; a mensuração da grandeza x é o resultado da operação Ox sobre esta função yi que a deixa invariante, a menos de um fator numérico de escala li. Simbolicamente, Ox(yi) = li.yi , que se lê: o operador Ox atuando sobre o estado de coisa representado pela função yi é igual a esta mesma função yi multiplicada por um fator numérico li. Este é justamente o postulado da mensuração a que aludíamos.

Os números li que resolvem esta equação, ditos valores próprios do operador Ox, são os valores mensuráveis da grandeza em questão correlatas a cada um dos possíveis estados do sistema yi. Complicado?

Nem tanto. O que se encontra aqui em questão é tão apenas o sentido da expressão observar objetivamente ou, especificamente, medir (13). Doravante, não poderemos mais perder esta precisão: medir uma certa grandeza x própria a um sistema físico que se encontra no estado yi, é operar sobre o sistema (através do instrumento de medida adequado, representado por Ox), daí extraindo um número li (aquele que aparece no mostrador do instrumento), porém, deixando o sistema no mesmo estado yi em que antes se encontrava. É precisamente isto que ilustra a parte direita da figura 1.

Convenhamos: como poderíamos afirmar que algo teria sido realmente medido, se, de um lado, não dispuséssemos de um instrumento Ox e um estado de coisas por ser medido yi; e, de outro lado, se não nos fosse fornecido um e único número li e a garantia de que no ato da mensuração não houvéssemos provocado uma abrupta mudança de estado yi ou mesmo a destruição do sistema?!



Figura 1. Formalização do ato de medir

A situação só fica um pouco mais complicada porque somos forçados a aceitar um estranho comportamento do mundo microfísico: um sistema pode aí estar num estado múltiplo y*, mistura de vários estados simples. Por exemplo, um elétron pode estar parcial e simultaneamente em várias “órbitas” em torno de um mesmo núcleo; um fóton pode passar parcialmente por cada uma das pequenas fendas paralelas que vão provocar o conhecido fenômeno de interferência luminosa. É exatamente daí que provém o caráter de incerteza dos fenômenos microfísicos.

Assim, por ocasião da primeira medição, o sistema que estivesse neste estado misto y* necessariamente se perturbaria, sendo forçado a “escolher” - embora respeitando uma certa regularidade estatística -, entre algum de seus estados simples. É precisamente desta maneira que a observação se faz verdadeiramente física e perturbadora do mundo. (Ver parte esquerda da figura 1).

Digamos que o sistema tivesse “optado” pelo estado yi, ao qual corresponderia a medida li. Neste caso, o sistema teria que permanecer neste mesmo estado yi pelo menos nos momentos imediatamente subseqüentes à medida, para que ficasse assim assegurada a continuidade da natureza, ou seja, que numa medição também imediatamente posterior viéssemos a encontrar o mesmo resultado li. Caso contrário, é preciso convir, se desvaneceria a noção de lei física e com ela a própria possibilidade da Física. O postulado refere-se precisamente a esta segunda mensuração. (Ver figura 1 em seu conjunto)

A rigor, isto deveria ter sido descoberto, como o próprio nome exigia, pela psico-logia ou talvez pela filosofia e depois transferido para a física. Porque o inverso aconteceu, pode ser motivo de um certo embaraço para psicólogos e filósofos, mas não para que eles, e muito menos outros, aleguem que se trata de um procedimento teórico especialmente escabroso, vedado à compreensão de pobres mortais. Logo, o simples ato de visar ou observar... !

A solução encontrada pelos físicos pode ser agora transposta para o mundo da lógica, bastando substituir a noção de grandeza física pela noção de correlato a uma lógica específica. Em outras palavras, cada lógica deverá ser doravante concebida como um particular modo de extrair informação do mundo, com a peculiaridade, entretanto, deste ser um mundo por ela mesma pré-in-formado. Teríamos assim de conceber cada lógica como um particular e primordial instrumento mental que ao mesmo tempo in-forma e desvela o mundo.

Daqui por diante, tudo seguirá um roteiro já bem conhecido no mundo da física quântica: associação de um operador específico a cada lógica, determinação de estados possíveis a que corresponderão valores próprios, valores estes que serão naturalmente interpretados como valores de verdade da lógica em questão, de que o par verdadeiro e falso na lógica clássica é o mais óbvio exemplo.

Ilustremos tudo isto com o caso da lógica da identidade: já vimos que seu operador característico I obedece à equação I(y) = I(I(y)), traduzindo a especificidade da “visada transcendental”. De acordo com o postulado importado da mecânica quântica, representativo do “visar em geral”, o operador I terá que concomitantemente obedecer à equação genérica I (y )= l.y.

Os valores de l satisfazendo ao par de equações I(y) = I(I(y)) e I (y) = l.y, determinados por uma manipulação algébrica bastante elementar (14), seriam 1 e 0, correspondendo aos valores de verdade ser e nada. Considerados em conjunto, o par {1, 0} representa a tão fugidia noção de temporalidade.

Para a lógica da diferença teríamos também um par de equações: uma, específica, representando a “visada diferencial”, D(y) = D(D(D(y))), outra, representando o “visar em geral”, D(y) = l.y. Os valores de l que satisfazem simultaneamente a estas duas equações são 1, -1 e 0 (15), que vão corresponder aos valores de verdade verdadeiro, falso e indeterminado, os quais, em conjunto, representam a espacialidade.

É a presença ou não do valor de verdade zero que faz, na aparência, a distinção entre lógica clássica e lógica da diferença, entre a negação formal do nosso dia a dia e a negação originária. Esta problemática é muito bem captada por Heidegger, que se pergunta e responde:

“Existe o nada apenas porque existe o “não”, isto é, a negação? Ou não acontece o contrário? Existe a negação e o “não” apenas porque “existe” o nada? Isto não está decidido; nem mesmo chegou a ser formulado expressamente como questão. Nós afirmamos: o nada é mais originário que o “não” e a negação. (16)

Fica contextualmente claro que o “não” e a negação de que fala Heidegger são de natureza clássica ou formal, sujeitas, pois, ao princípio do terceiro (o zero) excluído. E mais, que eles são modos derivados ou abstratos de um não e de uma negação mais profundos e originários, onde decididamente pesa o nada. Em suma, fica ali dito que a negatividade formal deriva de uma outra negatividade - precisaríamos nós - do pensar da diferença, cuja lógica - vimos de explicitar - inclui, entre seus valores de verdade, necessariamente o zero.

Podemos alcançar uma compreensão mais profunda desta presença do valor de verdade 0 - por enquanto caracterizado apenas como indefinido - considerando a reflexão especular, uma das mais justas e poderosas metáforas da operação de negação originária D. (Ver figura 2)

É importantíssimo ali notar o fenômeno da inversão da imagem especular - efeito catóptrico -, que é o exato correlato da presença do valor de verdade zero entre os valores simétricos 1 e –1.



Figura 2. Reflexão especular

Está ali também implícita uma proibição ou limitação radical: que não se pode passar de um lado a outro do espelho sem uma anulação, sem atravessar por um gargalo pontual ou “espaço zero”, ou seja, sem uma passagem pelo avesso. Esta é a matriz (ou mãe) de todas as proibições ou limitações que um ser humano, em razão de apenas ter nascido, precisará na vida reiteradamente enfrentar.



4. O que visa a lógica da diferença

Como a lógica da diferença é a lógica do outro, não poderia haver melhor estratégia para ilustrar o seu mundo próprio do que mostrá-lo em contraste com o mundo da lógica do mesmo. É o que fazemos na tabela abaixo:


Mundo da lógica Mundo da lógica

da identidade da diferença

o mesmo (I) o outro (D)

consciente I(I)=I inconsciente D(D(D))=D

temporalidade {1, 0} espacialidade {1, 0, -1}

res cogitans res extensa

forma a priori da forma a priori da

sensibil. - interna sensibil. - externa

ser e nada (1,0) ente versus ente (1, 0, -1)

diferença ontológica diferença ôntica

insurgência 0 ® 1 especularidade 1 «0« -1

sentido significante

ser (I) ter (D)

pai mãe

ímpar par

A maior parte destas adjudicações já foi justificada no próprio curso do presente texto ou é de imediata compreensão. Valeria a pena, portanto, concentrarmo-nos apenas nos pontos que nos pareçam os mais interessantes e/ou ainda um pouco duvidosos.

Para nós, o mais importante deles refere-se à lógica dos verbos ser e ter, porque através dessa adjudicação pode-se estabelecer uma ponte das mais sólidas e sugestivas entre lógica e linguagem, como também, indiretamente, entre lógica e cultura.

A associação do verbo ser à lógica transcendental (o pensar em sua essencialidade) é antiga, está no cogito cartesiano, e se nos afigura como relativamente pacífica, porém, a do verbo ter à lógica da diferença pode levantar algumas suspeitas. A nosso juízo elas seriam parcialmente justificadas em virtude do uso largo e ambíguo que este verbo tem na nossa linguagem corrente. A base para a adjudicação proposta por certo existe, mas teríamos que buscá-la na acepção mais intensamente afetiva - poderíamos também dizer psicanalítica - do uso do verbo ter, onde ele é vivido fundamentalmente como perda (como não-ter). Partimos então da estrutura da perda onde se equivalem perder e não-não-perder (parte esquerda da figura 3) e a transpomos para o âmbito da lógica (parte direita da mesma figura).

Vê-se alí então que o não-ter se iguala ao não-não-não-ter, enquanto que ter e não-não-ter diferem ou se ignoram na medida em que o primeiro permanece excluído do realmente vivido.



Figura 3. Lógica do verbo ter

Uma segunda questão refere-se à lógica da diferença como modo próprio de pensar o significante. Trata-se de um tema de grande importância para a compreensão dos pressupostos lógicos, tanto da semiologia, quanto da psicanálise.

Um enorme passo para a compreensão desta problemática foi dado por Lacan (17), inventando uma lógica do significante (contraposta à lógica aristotélica), que pudesse dar conta do pensamento inconsciente, a grande descoberta de Freud em A interpretação de sonhos.

Esta estória, entretanto, não começa aí. Em que pese a natural antipatia dos pensadores da diferença por Platão, a verdade é que a ele se deve a descoberta de que a idéia, o conceito ou o ser simbólico exige um pensar lógico-dialético, síntese do pensar da identidade e da diferença (ou do múltiplo) (18). Ora, se depois de constituído o ser simbólico, por qualquer motivo fosse rompida a ligação intencional (I) que vai do significante ao significado, ou seja, fosse perdido o sentido, quê restaria? O significante, como qualquer um (à exclusão dos búlgaros) pode constatar pela simples experiência de folhear uma revista escrita em búlgaro. O ser simbólico, reduzido ao significante, escapa à jurisdição totalizante da lógica dialética e cai naturalmente sob a legalidade aberta lógico-diferencial.

Podemos chegar a esta mesma conclusão por um caminho inteiramente diferente e talvez mais direto. Basta que atentemos para o fato de que no ser simbólico, o significado é o que vale por si, o que remete, insistente, sempre a si; enquanto isto, o significante é precisamente o que se esgota na função de remeter a um outro, que só vale na exata medida em que se anula para fazer aparecer o outro - o significado. Não fica dúvida, pois, que o significante seja governado pela lógica do outro, ou o que é o mesmo, pela lógica da diferença.

Feita a identificação das lógicas da diferença e do significante, e aceitando-se a postulação lacaniana da lógica do significante como lógica do pensar inconsciente, somos imediatamente levados à conclusão que a lógica da diferença é também a lógica do inconsciente. E nada mais natural: sendo a lógica da identidade ou do mesmo a lógica do pensar consciente, por que não seria a lógica da diferença ou do outro a lógica do pensar inconsciente? Tudo isto pode ficar ainda mais convincente quando futuramente nos debruçarmos sobre os modos efetivos de “realização” da lógica da diferença e mostrarmos sua exata homologia com os já bem conhecidos processos primários do inconsciente.

Finalizando, valeria a pena dar uma palavra sobre a lógica da diferença como saber sobre o pensar da res extensa. Ela só não é uma evidência imediata porque é absolutamente próprio do processo civilizatório forçar a transmutação da res extensa em geometria, em espaço convencionalmente fechado e calculável mesmo em seus confins (uma boa imagem disto é justamente o espaço regrado por coordenadas cartesianas).

Que assim de fato venha acontecendo, pode ser testemunhado de modos estonteantemente diversos: pelo que se conhece como a mais antiga arte e pela física mais atual.

Pela arte, lembraríamos as magníficas pinturas rupestres que nos foram legadas pelos povos caçadores/coletores do paleolítico. Em geral, são figuras de animais selvagens e cenas de caça, prováveis obras de xamãs com fins propiciatórios para uma caça mais regular, segura e abundante (19). Entrementes, ao lado ou em meio àquelas cenas aparecem, insistentes, mãos e mãos e ainda mais mãos em negativo; que significariam? A interpretação que se vem consolidando (20) é que para os protagonistas de então as paredes das cavernas onde estão estas pinturas funcionariam como uma interface com um outro mundo, mundo dos antepassados e dos deuses, e aquelas mãos e mãos em negativo estariam ali a indicar, precisamente, a natureza catóptrica da relação entre as coisas deste e do outro mundo, mundos de que os xamãs conservavam o monopólio da travessia. Como forma cultural mais primitiva, os povos caçadores/coletores estariam assim ainda próximos da experiência da espacialidade originária, aquela governada, não pela lógica formal e pela geometria, mas pela lógica da diferença.

Quanto à física moderna, sabemos que se pretende justamente a teoria da res extensa. De fato, como sutilmente observou Bergson (21), a primeira e essencial coisa que faz a física é espacializar o tempo. Einstein vem reforçar este desiderato levando-o às últimas conseqüências, se propondo, primeiro, a espacializar radicalmente o tempo – a Relatividade Restrita faz do tempo a quarta coordenada do espaço –, depois, a espacializar a matéria – a Relatividade Geral identifica densidade de massa com um parâmetro geométrico, a curvatura local do espaço(22). Acontece que a física se pretende também um cálculo, física matemática, governado pela lógica clássica enquanto que a res extensa permanece sob o império da lógica da diferença. A conseqüência disto é que, ao contrário do que acreditam físicos e quase toda gente, não existe a tão decantada harmonia entre o real e a matemática. Isto fica evidente com a incontornável necessidade teórica de uma mecânica quântica, que não se propõe ao cálculo do real, mas tão apenas o cálculo de uma expectativa de comportamento do real. Não há pois que se estranhar o irreconciliável conflito entre a mecânica quântica – linear, discreta, probabilística – e a relatividade geral – não linear, contínua, determinista.





Notas

1. Este é o segundo artigo de uma pretendida série visando trazer à luz do dia aquela que na modernidade filosófica ficou por longo tempo semi-velada, sempre a outra, outra de uma outra lógica - a lógica da diferença.

2. O primeiro artigo da série - A LÓGICA DA DIFERENÇA - apareceu em Revista Brasileira de Filosofia, Vol. XL.... Fasc. 19...

3. A noção de síntese tem aqui uma acepção ainda mais ampla do que a síntese dialética hegeliana (Aufhebung), podendo ser mesmo considerada como a sua generalização. Ela não pode de modo algum ser reduzida à noção matemática de produto, em particular, de produto cartesiano. Isto significa, fundamentalmente, que só se pode ter acesso à síntese enquanto tal por sua vivência direta.

4. SAMPAIO, L. S. C. de. Noções Elementares de Lógica - Compacto, Rio de Janeiro, ICN, 1988, especificamente, nota 2, pp.61-63.

5. SAMPAIO, L. S. C. de. A matematicidade da matemática surpreendida em sua própria casa, nua, na passagem dos semigrupos aos monóides, em Sete ensaios a partir da lógica ressuscitada. Rio, UERJ. (no prelo)

6. Na verdade, esta é a mais velha questão filosófica - onde se cruzam a problemática do um/múltiplo com aquela da subjetividade/objetividade -, e para dar-lhe um tratamento condigno, ficaríamos obrigados à recapitulação de mais de 25 séculos de reflexão, a menos que dispuséssemos de novos elementos e estratégias para dirimi-la. Cremos que a revisão profunda da lógica é este caminho, mas isto pressupõe, como um de seus primeiros passos, justamente, o trabalho que ora aqui desenvolvemos.

7. Não estamos de modo algum concordando com isto. Em nosso trabalho Noções Elementares de Lógica, v. I e II, Rio de Janeiro, ICN, 1988/89, fazemos uma severa crítica destes princípios, a começar pelo chamado princípio da identidade que a rigor ali é negado e não afirmado - A=A não é a identidade A2=A, mas apenas sua múmia. Ver também nota 11 adiante

8. Qualquer que fosse o conceito de referência (e o seu contrário) acabaríamos sujeitos a uma petição de princípio, o que só não é grave, na circunstância, porque a lógica clássica, em que a petição se estaria estribando, está também aqui em questão. Nossa obrigação será, portanto, apenas aquela do absoluto rigor e do auto-compromisso de não trapacear.

9. HUSSERL, E. Méditations Cartésiennes. Paris, J. Vrin, 1966.

10. Pourtant la condition nécessaire et suffisante pour qu’une conscience connaissante soit connaissance de son object , c’est qu’elle soit connaisance d’elle-même comme étant cette connaisance. C’est une condition nécessaire: si ma conscience n’était pas conscience d’être conscience de table, elle serait donc conscience de cette table sans avoir conscience de l’être ou, si l’on veut, une conscience qui s’ignorerait soi-même , une conscience inconsciente – ce qui est absurde. SARTRE. Jean-Paul. L’Être et le Néant. Paris, Gallimard, 1943. p. 18

11.Não se pode esquecer que a noção de identidade na matemática foi sempre representada pela propriedade da indepotência, ou seja: I é uma operação ou elemento identidade se e somente se I for tal que I(I) = I, ou, I2 = I.

12. Partindo-se de D(D(y)))=I(y), e operando com D de ambos os lados, temos D(D(D(y)))=D(I(y)). Como a diferenciação do mesmo está implícita na própria noção de diferenciação, isto é, como D(I) =D chega-se finalmente a que D(D(D(y)))=D(y).

13. À primeira impressão, um exagero, porém repete-se aqui o caso da relatividade restrita, cuja essência se esgota na correta definição da noção de simultaneidade.

14.Nosso ponto de partida são as equações (a) I(y) = I(I(y))) e (b) I(y) = l.y. Aplicando-se o operador I à esquerda e direita de (b), temos I(I(y)) = I(l.y); admitindo-se que I seja linear (não há qualquer razão para não sê-lo), temos então (c) I(I(y)) = I(l.y)= = l.I(y) = l.l.y = l2 .y. Dada a validade de (a), de (b) e (c) tiramos que l2 .y = l .y, e que, portanto, l2 = l . Esta é uma simples equação numérica de segundo grau com raízes 0 e 1.

De passagem, podemos agora bem aquilatar o tamanho do “estrago epistemológico” produzido por Boole, que associou à lógica clássica justamente os valores numéricos representativos dos valores de verdade (1 para verdadeiro e 0 para falso) que deveriam ser adjudicados à lógica transcendental.

15. Nosso ponto de partida são as equações (a) D(y) = D(D(D(y))) e (b) D(y) = l.y. Aplicando-se o operador D a esquerda e direita de (b), temos D(D(y)) = D(l.y); admitindo-se que D seja linear, temos então (c ) D(D(y)) = D(l.y) = l. D(y) = l.l.y = l2 .y. Aplicando novamente D aos dois lados de (c ), chegamos a (d) D(D(D(y))) = D(l2 .y) = l2 . D(y) = l2.l.y = l3 .y . Dada a validade de (a), de (b) e (d) tiramos que l3 .y = l.y, e que, portanto, l3 = l . Esta é uma simples equação numérica de terceiro grau com raízes 0, 1 e –1.

16. HEIDEGGER, M. Que é metafísica., v. XLV de Os Pensadores. S. Paulo, Abril, 1973. p. 235.

17. LACAN, J. Écrits I et II. Paris, du Seuil, 1971.

18. PLATÃO.Théétète, Parménide. Paris, Flammarion. 1967

19. SAMPAIO, L. S. C. de. Desejo, Fingimento e Superação na Hitória da Cultura, Rio de janeiro, 1998.

20.La Peinture Préhistorique – Lascaux ou la Naissance de l’Art (texte par George Bataille). Genève, SKIRA, 1980 e CLOTTES, J. et LEWIS-WILLIAM. D. Les Chamanes de la Préhistoire. Paris, Seuil, 1996.

21. BERGSON, H. Essai sur les Données Immediates de la Conscience, Paris, PUF, 1948.

22. SAMPAIO, L. S. C. de Apontamentos para uma História da Física Moderna. Rio de Janeiro, UAB, 1993/1997.

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