Le coeur a ses raisons que la raison ne connait point; on le sais en milles choses.
Pascal. Pensées, 423-27
Não há quem ignorre a existência da lógica clássica (aristotélica, formal ou do terceiro excluído). E, desde que iniciado na filosofia geral, não terá como desconhecer que outras duas lógicas tenham sido propostas pela tradição: primeiro, a lógica dialética - pensar que visa a idéia ou o conceito conforme Platão(2), ou, lógica da História em seu processo de auto-realização, em versão especulativa com Hegel(3) ou em versão materialista com Marx/Engels(4) -, depois, a lógica transcendental - lógica do sujeito da ciência moderna que emerge triunfante, em Descartes e Kant(5), ou lógica do sujeito da ciência em época de crise, em Husserl(6).
Ora, a dialética se define precisamente como um saber acerca do pensar que se faz síntese do pensar da identidade e da diferença. Sem dúvida, a lógica transcendental é o saber sobre o pensar da identidade, mas onde o saber sobre o pensar da diferença? Somos obrigados então a admitir como válida apenas uma das seguintes hipóteses: ou, além das três lógicas já mencionadas - clássica, dialética e transcendental - existe, pelo menos, uma quarta, a lógica da diferença(7) estrito senso, ou, a lógica da diferença implicitamente pressuposta pela dialética se confunde com a lógica clássica. Não há como sair disto? (Ver figura 1)
Qualquer adepto da exclusividade da lógica clássica sem dúvida irá rejeitar a segunda hipótese, pois aí sua grande lógica estaria sendo subsumida ou se subordinando à dialética, à qual ele nega, não raro, o estatuto de autêntica lógica ou até mesmo o de seriedade, como são os casos, embora, por razões simetricamente opostas, de Kierkegaard(8) e de Russell(9).
Figura 1. Existência ou não de uma quarta lógica
Mesmo que não cheguemos a tais exageros e aceitemos a existência concomitante destas duas lógicas, continuaríamos impedidos de aderir à segunda hipótese que subordina a lógica clássica à dialética, porque isto simplesmente contraria a essência destas lógicas e até, no caso, a ordem do seu desvelamento histórico.
A forma visada pela lógica clássica (um A qualquer) associada ao seu correspondente fundo ou complemento (não-A) constituem um universo (U = união de A e não-A), que é na verdade uma totalidade específica ou qualificada, ou ainda mais precisamente, uma totalidade por convenção. Quando, por exemplo, dando início à formulação de um problema matemático, dizemos:
- considere-se o conjunto dos números inteiros etc. etc.
o que estamos realmente dizendo é:
- convencione-se aqui entre nós, e para o que se segue, que o conjunto dos inteiros constitui um universo completo, auto-suficiente e por si subsistente, não sendo lícito, por conseguinte, perguntar por quaisquer outros números ou coisas que não sejam relações e funções entre inteiros, por origens e destinações, pelo Nada e pela Totalidade enquanto tal etc. etc.
Isto significa que o universo formal (U) é uma totalidade - justamente aquilo que visa a dialética -, embora o seja de um modo menor, inautêntico e paradoxalmente restrito, ou seja, tão apenas por convenção, como um faz de conta. E por herdar tal propriedade é que a lógica formal, na verdade uma analítica, pode se dar ares totalitários exigindo, hoje, na Modernidade onde ela impera, o cálculo de todas as coisas.
Em conseqüência, temos que aceitar que a lógica formal necessariamente pressupõe a lógica dialética, e jamais o contrário. Não é por acaso que Platão (do diálogo Parmênides(10)) antecede Aristóteles (do Organon (11))!
Para ajudar-nos a compreender isto, podemos nos valer do próprio Platão(12) que, inventariando os modos do ser, concebe o repouso (visado pela lógica formal) como algo mais alto nível do que o movimento (visado pela dialética), como conjunto de movimentos que se compensam, aliás, em perfeita consonância com a microfísica moderna. Nós, de modo equivocado, enxergamos esta relação em sentido contrário - o repouso como caso particular de movimento, isto é, como movimento nulo -, e por isso temos alguma dificuldade em compreender a subordinação da dialética à lógica formal ou clássica.
Ainda no estrito âmbito da tradição filosófica, estaríamos todos agora pacificamente de acordo em que exista pelo menos uma quarta lógica, a lógica da simples diferença.
O argumento mais importante, entretanto, só agora pode ser mobilizado: admitida a existência da lógica da diferença, pode-se demonstrar, e o faremos oportunamente, que a lógica clássica ou formal é, na verdade, uma lógica derivada, exatamente uma lógica da diferença reiterada ou da dupla diferença(13), o que sela em definitivo a separação entre essas duas lógicas.
É certo que tudo isto não chega a ser uma demonstração formal, nem poderia sê-lo, porque para tanto ter-se-ia que assumir, como pressuposto, a validade irrestrita da lógica clássica, que é justamente uma das coisas que fica aqui, de modo implícito, posta em questão. Mas deve-se reconhecer que dificilmente em filosofia se apresenta algum argumento com tal dose de lastro na racionalidade genérica, ou seja, no bom senso.
Contrapondo-se à lógica da identidade ou do mesmo teríamos portanto uma lógica da diferença ou do outro. E exatamente por ser uma lógica do outro, é que, na história da filosofia moderna, a lógica da diferença quase que só se deixa surpreender pelo avesso, como a outra, sempre referida a uma outra lógica:
a) negando o exclusivismo do cogito cartesiano transparente a si próprio, para lhe contrapor uma lógica do coração, uma razão que a própria razão desconhece (Pascal(14)];
b) rejeitando a síntese dialético-especulativa ao estilo hegeliano, para se aferrar à lógica do paradoxo, do que é ao mesmo tempo finito e infinito, jamais resolvido (Kierkegaard(15));
c) investindo contra a lógica da etérea historicidade judaica/cristã, para lhe contrapor uma lógica do acolhimento da vida sublinhada pelo eterno retorno do mesmo (Nietzsche (16));
d) limitando o âmbito do pensar consciente, trazendo-lhe em competição, uma lógica do sonho, do ato falho, do chiste e do lapso, uma lógica do pensar obscuro in-consciente (Freud(17));
e) insurgindo-se contra o império do reducionismo metafísico - que remontaria à dialética platônica da idéia, passando pela analítica das formas aristotélica, que recrudesce com o transcendentalismo kantiano e fecha o círculo com a dialética hegeliana -, para reivindicar uma lógica realmente filosófica, o logos heraclítico em pessoa, recuperado, que entre outras excelências teria a de facultar ao poeta deixar vigorar o ser a partir de sua própria verdade (Heidegger (18)).
Só com Lacan, a outra pôde ter voz e vez, e, afirmativamente, se declarar lógica do significante. O psicanalista francês(19), tal como já fizera Kierkegaard, acusa a Aufhebung de não passar de um desses bonitos sonhos de filosofia (entenda-se, metafísica platônica e hegeliana). Bem, como pode agora ser pensado aquilo que insiste sintomaticamente, que faz sofrer e gozar, que se articula como linguagem, mas de significações esquecidas ou perdidas, senão, por meio de uma escuta errante mas sempre alerta sobre o desfilar dos significantes. A experiência analítica, de um lado ou de outro, como também o exercício da pesca (o peixe e seu Hemingway), não deixam dúvidas sobre o que aqui se trata. Daí, nada mais adequado do que atribuir à lógica da diferença ou do outro, como Lacan o fez, a denominação lógica do significante.
Lá por outras distantes paragens acadêmicas, tem-se uma grande agitação em torno das “lógicas” não clássicas. A conjunção, de um lado, do processo de matematização da lógica que vem de Leibinz (a lógica transformada em logística), e de outro lado, o exemplo da criação de novas geometrias através da supressão ou inversão dos axiomas da velha geometria euclidiana, levou, por imitação e valendo-se dos mesmos artifícios, a um intenso movimento de “invenção” de novas lógicas. O grande absurdo disto está em que a geometria é de fato estrutura formal, disponibilidade lingüística, e a lógica, muito pelo contrário, ainda que não sendo um saber empírico, conserva um compromisso irrevogável com algo que lhe excede, que se lhe impõe - o pensar enquanto tal.
Em que pese esse oceano de equívocos, alguma coisa lá se salva. Este pode ser talvez o caso do sistema intuicionista de Heyting(20) com sua pretensão de captar o modo real criativo do pensar matemático, como também, dos sistemas paraconsistente e paracompleto de Newton da Costa(21) que, mesmo sem a intenção, se afiguram “formalizações” - o quanto isto faz algum sentido - das duas realizações possíveis da lógica da diferença.
É oportuno neste momento que indaguemos pelo que estaria provocando tamanha resistência a algo tão evidente e conceitualmente tão necessário, como nos parece ser a lógica da diferença? Em princípio, poderíamos aventar duas motivações para o geral desconhecimento da lógica da diferença, que tenham alguma dose de plausibilidade.
Do ponto de vista da ontogênese psíquica, seria o caso da ultrapassagem da fase do Édipo, que representa, formalmente, a aceitação da lei (da regra, da gramática, da castração) governada pela lógica clássica ou do terceiro excluído. Esta viria justamente para recalcar/ constituir o inconsciente, que se manteria sob o comando da lógica da diferença. Conclui-se assim que a maturidade psíquica andaria de par, precisamente, com o recalque da lógica da diferença.
Do ponto de vista da história da cultura, é o caso da própria Modernidade, que precisamente se rege pela racionalidade, pela sistematicidade, pelo cálculo, governada pois pela lógica clássica ou formal. Assim, ela só se pode impor pelo recalque de lógicas de menor hierarquia, e lá entre elas, uma vez mais, estaria a lógica da diferença.
Deste modo, sobre o adulto moderno estaria recaindo o peso de duas poderosas determinações lógicas homólogas. Cremos situar-se aí o principal motivo da resistência ao desvelamento da lógica da diferença. A explicação, entrementes, não evita que sejamos arrastados à mais insólita das situações: os filósofos da atualidade correndo atrás não apenas dos psicanalistas, mas, numa surpreendente inversão “republicana”, também de poetas trágicos gregos ou de seus epígonos românticos alemães(22).
Somando tudo isso, vemos que a confusão permanece. No espaço acadêmico, sabemos, a lógica virou matemática, o que a torna cada vez mais distante da tradição filosófica geral. Agora, fora das muralhas acadêmicas, vemos abrir-se uma outra frente - a psicanálise de inspiração lacaniana. O grande problema é que, de verdade, ninguém fala com ninguém. Nossa tarefa deve ser forçar justamente o diálogo e depois a convergência do melhor de cada uma das partes para sanar isto que se nos afigura um verdadeiro escândalo, uma falha flagrante e insistente no atual mapeamento do território lógico - o esquecimento da lógica da diferença.
Notas
1. Primeiro do que se pretende uma série de artigos sobre a lógica da diferença abarcando, entre outro, os seguintes temas: princípio básico, caracterização operatória, valores de verdade, negação originária, realizações paraconsistente (ou paradoxal) e paracompleta (ou intuicionista), relação com as outras lógicas, sistemas axiomáticos de Heyting e Newton da Costa, por fim, lógica da diferença e psicanálise lacaniana.
2. PLATÃO.Théétète, Parménide. Paris, Flammarion. 1967
3. HEGEL. G. F. Science of Logic, 2 v. London, Allem & Unwin, 1951.
4. ENGELS, F. Anti-Dühring. Paris, E. Sociales. 1963
5. KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa Gulbenkian, 1989
6. HUSSERL, E Logique formelle et logique transcendantale, Paris, PUF, 1965 e também, La Crise des sciences européennes et la Phénoménologie Transcendantale, Paris, Gallimard, 1976.
7. As expressões lógica da diferença e lógicas da diferença, na exata acepção de agora, vêm sendo por nós utilizadas, na presunção de que não o foram antes, desde os fins dos anos 70. Elas aparecem em diversos documentos internos do Programa de Desenvolvimento Cultural por nós implantado na empresa EMBRATEL entre 1978 e 1985, em especial, em SAMPAIO, L. S,. C. de, As Lógicas da Diferença, Rio de Janeiro, EMBRATEL, setembro de 1983 e outubro de 1984.
8. KIERKEGAARD, S. Oeuvres complètes. Post-scriptum. Tomo X, XI, v. I,II. Paris, l’Orante, 1997.
9. RUSSELL, B. História da Filosofia Ocidental, v. 3. S. Paulo, Nacional, 1957.
10. PLATÃO, op. cit.
11. ARISTOTE. L’organon. Paris, Vrin, 1983.
12.PLATÃO, Le Sophiste. Paris, Belles Lettres, 1994.
13. Caso usássemos a denominação lógica da dupla diferença ao invés de lógica clássica, aristotélica ou formal, muitas coisas em filosofia talvez se tornassem um pouco mais claras. Em primeiro lugar, estaríamos admitindo que existe uma lógica da simples diferença (que é a lógica do pensar inconsciente); segundo, não aceitaríamos a pretensão da lógica clássica querer se constituir em lógica paradigmática, visto que ela é apenas uma lógica derivada; terceiro, estaria aberto o caminho para colocar um mínimo de ordem na nomenclatura e, o melhor, daí, no próprio território lógico. Para detalhes, ver SAMPAIO, L. S. C. de Noções elementares de lógica – Compacto. Rio, ICN, 1988.
14.PASCAL. B. Oeuvres Complètes.Paris, Seuil, 1963.
15. KIERKEGAARD, S, op. cit.
16. DELEUZE, G., Nietzsche e a Filosofia. Rio, Rio/FIES, 1976
17. FREUD, S. Obras completas, v. IV, V e VI. Rio, Imago, 1974.
18. HEIDEGGER, M. Heráclito. Rio de Janeiro, Relume/Dumará, 1998.
19. LACAN, J. O seminário. Livro 20. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
20. HEYTING, A . Introducción al intuicionismo. Madrid, Tecnos, 1976.
21.DA COSTA, N. Ensaio sobre os Fundamentos da Lógica. S. Paulo, HUCITEC/EDUSP, 1980 e também DA COSTA, N. and MANCINI, D. A note on paracomplete logic. Atti Acc. Lincei Rend. Fls. P. VIII, vol. LXXX (1986) pp. 504-509.
22. Alusão à onda de interesse, depois de Heidegger, pela obra teórica do grande poeta alemão Hölderlin. Ver, a propósito, SAMPAIO, L. S. C. de Desejo, fingimento e subversão na história da cultura. Rio, 1998.
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