Introdução
Realizou-se recentemente em Viena, na própria Berggasse, 19, o simpósio “Psicanálise como ciência” assistido pelo embaixador e filósofo brasileiro Sérgio Paulo Rouanet que sobre ele e suas circunstâncias escreveu um instigante artigo (1). A tese título do seminário é insistente; ela foi provocada e ferozmente reivindicada como verdadeira já pelo próprio Freud. Rouanet informa-nos, contudo, que o simpósio “transcorreu em grande parte num clima de pessimismo” e observa que não poderia ser diferente, não pelo que viu e ouviu, mas por razão que ele considera bem mais profunda: ali se desconsiderava que a essência da psicanálise está no fato dela constituir-se “como um pensamento sem casa” Melhor explicitava: “a psicanálise não está em casa nem (n)a ciência nem fora dela.” Logo a seguir aparecia o que nos parece ser o nervo exposto de toda a questão: “Ela (a psicanálise) não pode existir fora da ciência, porque é graças a ciência que ela se demarca em relação à filosofia, deixando de ser uma concepção do mundo, uma metafísica.” Concomitantemente, afirma Rouanet, ela também não pode ser ciência porque necessariamente a subverte. Embora não esteja expressamente dito, facilmente se depreende das considerações do articulista que não se deve desconectar a questão da cientificidade da psicanálise da questão de sua relação com a filosofia, o que nos parece uma belíssima verdade.
Sabemos todos que o estatuto de ciência pretendido por Freud vem sendo negado a psicanálise pela grande maioria da comunidade científica, e acreditamos que o será cada vez mais radicalmente na proporção em que se forem cumprindo os prometidos avanços da genética, da fisiologia cerebral, e da farmacologia. Nossa opinião, entretanto, é que malgrado tudo isto, a questão irá continuar em aberto, urgente e angustiante, dado que ela, no fundo, não seria de natureza empírica, mas essencialmente lógica (a fortiori, cultural); e mais, que só poderia ser cuidadosamente dirimida com o prévio alargamento do seu âmbito, para incluir, não apenas a contraposição da psicanálise à ciência, mas, como vislumbrou o preclaro articulista, também a filosofia, em especial, acrescentaríamos nós, as de inclinação transcendental e dialética.
As indicações de Rouanet nos são sem dúvida preciosas, por isto mesmo merecedoras de que desçamos aa uma maior profundidade, precisamente aos condicionantes antropo-lógicos da questão, que por seu turno mergulham suas raízes numa lógica ressuscitada, vale dizer, numa lógica em justo acordo com a tradição, e não apenas com as conveniências e limites do poder formalizante acadêmico. Não temos espaço para tudo, por isso restringiremo-nos aqui as preliminares da questão: à lógica, à antropologia filosófica ou tão apenas à antropo-lógia, que nos poderão fornecer um pano de fundo consistente para nossas breves considerações finais sobre o estatuto da psicanálise e suas historicamente tensas relações com a ciência e a filosofia.
A lógica ressuscitada
Estamos, de saída, colocando a questão do estatuto da psicanálise como essencialmente lógico, alias, plenamente justificados, na medida em que ela mesma se pretende um saber acerca do pensamento inconsciente, e para nós, a lógica em geral é justamente o estudo de todo e qualquer modo de pensamento, sendo a pensamento formal (“objeto” da lógica clássica ou aristotélica) apenas um de seus modos particulares. Isto implica necessariamente que devamos explicitar o mapa geral das lógicas como condição preliminar para que se possa dirimir a questão do estatuto da psicanálise em âmbito alargado, que além dela inclua também a ciência e a filosofia. Nossa tarefa estará sendo sem dúvida facilitada, conquanto que algumas vezes também sub-repticiamente estorvada, pelo ensino lacaniano, cuja declarada volta a Freud constitui, a nosso juízo, menos um retorno do que um avanço em direção a explicitação dos seus pressupostos lógicos. As nossas principais teses lógicas – no caso, igualmente onto-lógicas – seriam as seguintes:
a) Ser e pensar são, de algum modo, o mesmo, corno pretendia Parmênides, porém, de uma maneira mais geral, que inclua não apenas o pensar que visa o um mas, igualmente, o pensar dialético (pensar síntese do um e do múltiplo), visando a idéia (Platão) ou a História (Hegel) e também o pensar hiper-dialético (pensar síntese do um e do múltiplo, da síntese do um e do múltiplo e do múltiplo do múltiplo), visando o ser-discursivo;
b) A tematização de um modo de pensar e a sua expressão discursiva arrazoada, paraformal, constitui uma lógica; por sua peculiar natureza as lógicas, historicamente, atingiram diferentes graus de formalização, mas nenhuma pôde ou poderá exceder ao daquela cuja a especificidade é a forma abstraída, a lógica clássica ou aristotélica; ainda assim, pelo “teorema de Lacan” (2), de certo modo não totalmente consumável;
c) Existem duas lógicas fundamentais, vale dizer, lógicas que não podem por qualquer modo ser uma “derivada” da outra; a primeira, já bem identificada pela tradição, seria a lógica do mesmo, do pensar consciente, lógica implícita do cogito cartesiano, do sujeito transcendental ou sujeito critico da ciência em Kant, ou ainda, do transcendentalismo fenomenológico de Husserl – por isso a denominamos lógica transcendental ou da identidade ou, sumariamente, lógica I; a segunda, ate hoje só anarquicamente cernida pela tradição – lógica do coração (Pascal), do paradoxo (Kierkegaard), lógica intuicionista (Brouwer-Heyting), lógica paraconsistente (N. da Costa), lógica do significante (Lacan) etc. – seria a lógica do outro, do pensar inconsciente, que iremos denominar lógica da diferença ou sumariamente, lógica D;
d) Todas as demais lógicas “derivariam” das lógicas fundamentais, através de urna operação por nos denominada síntese dialética generalizada simbolizada par uma barra inclinada, /, que não pode jamais confundir-se com uma operação de tipo matemático ou formal (3); em suma, uma generalização da aufheben hegeliana, esta doravante considerada como o degrau um daquela. Teríamos assim as lógicas derivadas I/D, D/D=D/2, I/D/D=I/D/2, D/D/D=D/3, l/D/D/D=I/D/3 e assim sucessivamente; estas denominações sintéticas constituem um semimonóide livre (4) gerado pelo conjunto das lógicas fundamentais {I, D}, onde I faz o papel de elemento neutro ou nulo à direita. Na prática, isto quer dizer que qualquer ocorrência de I na designação de urna lógica ou resultante da multiplicação de quaisquer seqüência ordenada de lógicas, que não seja em primeiro lugar à esquerda, pode ou deve ser desprezada;
e) Todas as lógicas subsumem as que lhe são anteriores e, por convenção, a si própria; assim, por exemplo, I/D, a lógica dialética subsume a lógica da identidade I, a lógica da diferença D e, por convenção, a si mesma;
f) Somente as lógicas da família identitária, isto ë, I/D/n, para n = 0, 1, 2,..., definem planos onto-lógicos; os três primeiros, ditos mundanos, são: o unário ou fenomênico correlato a I ( I/D/0 = I/I = I), o trinitário ou objetivo correlate a l/D e o qüinqüitário ou subjetivo, correlato a I/D/2. No plano fenomênico temos apenas subsumida a lógica I a qual corresponderá o ser fenomênico ou o ser enquanto tal; no plano objetivo são três as lógicas subsurnidas, I, D, I/D, as quais irão corresponder, respectivamente, a duração objetiva, a espacialidade ou a res extensa e o ser simbólico, o conceito ou a idéia; por derradeiro, no plano subjetivo temos cinco lógicas, I, D, I/D, D/2, I/D/2 que terão como correlatos, respectivamente, o ser consciente como ser de projeto, o ser desejante ou o inconsciente, a história, o sistema ou papei sistêmico e o ser subjetivo na plenitude.
Uma antropo-logia da esperança
Destas proposições gerais sobre as lógicas, pela simples adjunção de algumas poucas e especificas teses, poderemos chegar a uma compacta e precisa antropologia filosófica, isto ë, a uma autêntica antropo-logia (5). E o que buscaremos fazer a seguir:
a) 0 homem – a diferença dos demais animais cordados superiores que operam apenas a síntese do um e do múltiplo, isto ë, I/D, que flhes possibilita o acesso ao símbolo convencional – é capaz de operar a síntese da identidade e da dupla diferença, sendo, pois, um ser lógico- qüinqüitário, ou seja, de nível I/D/2. Esta tese pode ser corroborada empiricamente pela capacidade humana da discursividade (o simbólico articulado pela gramática, ambos convencionais) e também, pela antropologia estrutural a qual, no registro da sexualidade, reconhece formalmente no ser humane uma primeira diferença de estofo biológico - macho versus fêmea - e ainda uma segunda, de estofo propriamente cultural ou clânica – clã X versus clã ou clãs não-X; eis ai caracterizada a dupla diferença. Se a ela articularmos a identidade, prë-condição do reconhecimento e assunção dos pólos formados pela dupla diferença, chegamos finalmente à síntese apontada: I/D/2. O caráter identitário pode ser assimilado, com toda generalidade, a uma diferença colapsada, que no caso presente, seria a diferença sexualmente maduro versus imaturo, na qual, de modo geral, um rnesmo ser humano no curso de sua vida acaba preenchendo as duas posições;
b) A lógica qüinqüitária devemos agregar um horizonte lógico, um além de I/D/2 , a fim de que esta não se torne para os homens, ao rnesmo tempo, lógica do Absoluto, tal como se dá com Hegel ao nível dialético trinitário, e ele se faça, assim, deus de si mesmo. Esta especialíssima possibilidade do ser humano estará suportada, incontornavelmente, pela vivência de uma falta, que identificaremos como sendo a impotência de abarcar ou dar conta, globalmente, de sua própria experiência intersubjetiva. A lógica do saber sobre algo está necessariamente um degrau lógico acima da lógica deste algo de referência, de modo que, para o ser humano, de nível I/D/2, ela será de nível D/3, portanto um pouco acima da sua capacidade lógica. Em resumo, o ser humano ë um ser Iógico- qüinqüitário incorporando, necessariamente, um horizonte lógico que o transcende e que lhe é acessível (conquanto ainda dependente de uma sua decisão) como vivência de uma falta no âmbito de sua experiência de ser-com-o-outro, diante da qual ele não pode evitar o risco, deixar de responder com a confiança ou negar o amor;
c) Pode-se constatar de modo empírico que nada existe no mundo, que no eixo lógico aqui considerado, supere o homem; restitui-se-lhe, assim, a posição pinacular na mundanalidade que, na Modernidade, lhe vinha sendo repetidamente roubada pelos telescópios – das lunetas ao Hubble –, pelo darwinismo e mais recentemente pelas estruturas por si agentes e falantes. Como conseqüência, todo saber é saber antropo-lógico, fragmentário, à vezes aproximativo (este último, uma teologia natural recuperada) tal como começam a se dar conta alguns cosmólogos pela admissão, numa versão mais fraca ou mais forte, do principio antrópico (7);
d) Como já enfaticamente repetido, o ser humano ë de nível lógico I/D/2, lógica que subsume, além de si própria, as que lhe antecedem: I, D, l/D, D/2, estas quatro por nós denominadas lógicas de base; isto leva a que no ser humano a sexualidade biológica venha a ser re-definida, deixe de ser bipolar (representável por um segmento de reta), como nos animais, para tomar-se tetrapolar (representável por um quadrado).O par diagonal {I, D/2} designa o masculino e o par diagonal {I/D, D) o feminino; e como (I)/(D/2) = I/D/2 tanto quanto (I/D)/(D) = I/D/2, conclui-se, imediatamente, que masculino e feminino são modos onto-lógicos de realização do ser humano;
e) Todos os homens de todas as culturas são logicamente equivalentes (tese homóloga àquela do estruturalismo, estabelecendo a equivalência de todas as culturas em razão da presença universal da lei de dupla face da exogamia/proibição do incesto, só que esta, de nível lógico-quaternário, enquanto que a nossa, de nível qüinqüitário). Fato é, entretanto, que as culturas ainda assim se distinguem de modo flagrante e essencial, mormente quando em confronto umas com as outras. Para compatibilizar estas duas determinações assim tão contraditórias, sem trapacear, apelando a fatores extra culturais, não nos resta outro caminho senão o de caracterizar cada cultura pelo nível de desvelamento do seu próprio ser qüinqüitário e de sua representação objetiva ou simbólica; em síntese, pela lógica mais ou menos implícita do seu núcleo religioso ou sacralizado – cultura do deus unário (judaica), cultura prometéica ou do que só é na medida em que se opõe aos deuses (greco-rornana), cultura do deus trinitário (cristã patrística) etc. Existem culturas que não chegaram a nenhum grau de auto-desvelamento – serão por nós chamadas culturas ecológicas –; quando nela predominar a identificação à natureza, a denominaremos cultura do tipo pré-I (cultura nôrmade ou do deserto) e quando predominar a contraposição à natureza, a denominaremos cultura do tipo pré-D (cultura sedentária, significativamente hierarquizada, do trabalho controlado, com escrita e naturalmente escribas, de base agrícola estável, em particular, pela irrigação);
f) A humanidade, depois de passar pelas culturas pré-I, pré-D, I, D, l/D, vive já há algum tempo o predomínio da cultura científica, ou seja, de nível lógico D/2, presentemente na sua fase civilizatória, horizontalizante, informacional, tendo corno motor principal o D/2 a lógica da morte , ela só “vigora” com os préstimos de um sujeito intervalar, sujeitado, que no caso paradigmático, é o sujeito liberal, anglo-saxônico ou o herói fordiano (7) de nível lógico I. As outras aopções lógicas seriam, de um lado, a substituição do sujeito I pelo sujeito coletivo I/D (representado por um sujeito simbólico absoluto), ilusória ou apenas transitoriamente dominante, que identificamos com o jesuitismo, o marxismo etc. – ideologias à esquerda –; de outro lado, pelo sujeito romântico, telúrico ou, em seu modo arcaico, sujeito libidinal D, também ilusória ou apenas transitoriamente dominante, que identificamos com o fascismo, o carismático, o pentecostal etc. – ideologias à direita. Ambas, é forçoso que se diga, inexoravelmente destinadas ao fracasso pelo prosaico fato que D/2, subsumindo I, D, I/D, não admite outra dominação que não a sua própria. Não é preciso enfatizar que o paradigma liberal não fracassa (o que nada tem a ver com a condição de ser historicamente superável, como veremos adiante), pois, é, por sua própria natureza, ser- pervertido;
g) Todas as culturas históricas tem sido castradoras dos indivíduos simplesmente porque abaixo da potencialidade lógica dos homens, vale dizer, de I/D/2, o que, aliás, coincide com um bem conhecido juízo freudiano, mas não com a sua desesperança. A passagem de D/2 a I/D/2 será, deveras, tão dramática e cruenta quanto a passagem de pré-D a I; esta, pela peculiaridade de constituir-se no memento impar do auto-desvelamento da cultura em sua essencialidade lógica (bastaria lembrar o episódio vétero-testamentário da adoração do bezerro de ouro e acontecimentos subseqüentes !); aquela, por assinalar o fim do sub-reptício predomínio histórico do inconsciente, vale dizer, da história ainda genitiva, como história (l/D) da cultura (D). A grande interrogação que nos fica é aquela de se o homem passará da cultura D/2 à cultura I/D/2, simplesmente, a um novo humanismo que fará dele ídolo de si mesmo – tal como ocorreria com o hegelianismo e de fato ocorreu com o marxismo “real” dele derivado pela esquerda – ou se, evitando aquele grave pecado de impiedade, passara direto à cultura I/D/2 que incorpora, de modo essencial, seu horizonte transcendente de nível lógico superior, vale dizer, deixando acima, além, regenerado, o “espaço” de onde há-de-vir(a) “o Deus que nos poderá salvar”.
Eis ai, num exasperado esforço de síntese, a quadro referencial lógico e antropo-lógico que irá servir de pano de fundo às nossas considerações críticas finais.
Psicanálise, ciência e filosofia
Retornemos a constatação de Rouanet, que fizemos também nossa, de que, para Freud, a psicanálise precisaria reivindicar-se como ciência para não confundir-se com a filosofia (8) e, façamo-la “figura” contra o “fundo” antropo-lógico que há pouco delineamos. Que trincas e fissuras tornam-se agora evidentes na pretensão freudiana? Muitas e graves, mas restrinjamo-nos a apenas três:
a) Comecemos observando que o saber filosófico institui-se em seus primórdios coma pergunta pelo ser, onde o ser é deveras lógico-transcendental (I), mas o perguntar, lógico- diferencial (D); tipicamente grega é, pois, a pergunta, e não , entretanto, permitiu que se gerasse um mal entendido sobre a filosofia que acabou dando suporte à tese equivocada de seu exclusivismo lógico-transcendental, fazendo-a assim solidária a família das lógicas da identidade; isto vinha significar também que, por princípio, o saber filosófico não se aceitasse come logicamente aquém ou abaixo do seus “objetos”. Entrementes, de modo sábio e coerente com a sua origem, a filosofia veio historicamente incorporando toda a produção aparentemente anti-filosófica, vale dizer, todo a pensamento que se negava, de modo radical, pretensões totalizantes, originarias ou fundacionais, ou seja, as da família D; quem negaria a Pascal, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, para ficar apenas nos mais eminentes – todos comprometidos com a lógica D – o estatuto de filosofos?! E aos racionalistas, empiristas, positivistas e neopositivistas, entre estes Wittgenstein – todos (quando em estada de coerência, é bom que se diga) comprometidos de maneira exclusiva com D/2 – o estatuto também de filósofos?! Pode parecer paradoxal, porém, doutra feita, come se haveria ela com os saltos históricos de I para l/D, e em breve futuro, esperamos, desta última para I/D/2 ? Desta-arte, incorporando tanto momentos de afirmação, quanto agora momentos de auto-negação, vale dizer, aceitando-se onto-logicamente dialética, ele foi, concomitantemente, sendo na proporção em que se recolhia (o duplo sentida é aqui proposital e necessário). Amanhã, passado o tornado (outra vez!) neoliberal, assumir-se-á, consequentemente, hiper-dialética ou logico-qüinqüitária sendo, recolhendo-se e afinal consumando-se como autêntica onto-teo-Iogia (12). Conclui-se facilmente daí que um pré-requisito necessário para a reivindicação freudiana seria fazer da filosofia um pensar apenas lógico-identitário, transcendental ou dialético; coisa difícil de se atribuir a alguém da sua envergadura intelectual, que já fora mesmo freqüentador de cursos regulares acadêmicos de filosofia!b) Nenhuma manipulação genética nenhuma inibição ou favorecimento da produção de neuro-transmissores, nenhum Prozac poderá derrotar de vez a psicanálise, pela simples razão de que seu ser é também ser sintomático, subversão da própria modernidade cientifica (D/2); uma artimanha, tão somente um saber suposto saber a partir de um fragmentário e censurado retorno do recalcado (D). Que D/2 vinha para sufocar as verdades mais profundas da vida concreta governadas por D, recordemo-nos, fora já prematuramente pressentido por Pascal. Em suma, a lógica do inconsciente é D, e a lógica da ciência ou dos sistemas que ela visa é D/2; aqui, sim, sem a menor possibilidade de borradura de fronteira. A sucessão da idade da ciência (D/2) pela idade da plenitude humana guardado seu horizonte transcendente (I/D/2 e além) é que poderá afetar radicalmente o estatuto atual da psicanálise, posto que a nova cultura irá subsumi-la, tal como o fará com a ciência, tomando-a um momento lógico e histórico de um saber maior, do saber deveras de si, afinal, como pretendeu a grande maioria dos filósofos depois de Sócrates. A época de Freud, a confusão entre ciência e psicanálise poderia ter lá suas atenuantes, porém hoje soa-nos como um verdadeiro absurdo;
c) Por derradeiro, seria curioso observar que sO se pode garantir que a psicanálise, sendo urna ciência, deixa necessariamente de ser filosofia, primeiro, se confundíssemos a última com a neuro-ciência (o que já mostramos, no item a anterior, ser inadmissível, dadas as peculiaridades da compreensão moderna de que se revestiu a filosofia); depois, que lhe aplicássemos cega e automaticamente o princípio do terceiro excluído: se psicanálise não é filosofia (näo-ciência), então ela é necessariamente ciência. Só um obsessivo a faria, alguém radicalmente preso a lógica D/D , mesmo contando entre seus méritos aquele de fundador da psicanálise!
Luiz Sérgio Coelho de Sampaio
Rio, dezembro de 1996
Notas
1.Sérgio Paulo Rouanet, Bergasse, 19, Viena, publicado no Caderno Idéias do Jornal do Brasil; Rio, 14 de dezembro de 1996.
2.Trata-se da afirmação lacaniana do que seja qual for a universalidade (para todo x existe uma função ou predicado f que do algum modo lhe serve., ou seja, "xf(x) ), existe um indivíduo que lhe escapa (existe x que faz exceção a qualquer universalidade, ou seja, $x~f(x)). Esta afirmação lógica é homóloga aos teoremas de GödeI na matemática que impedem a completude de quaisquer sistema formal que abarque, pelo menos, a aritmética elementar.
3. Um semimonóide é urna estrutura algébrica, por nós definida, munida do uma operação genérica #, gozando das propriedades de fechamento, associatividade e de existência de um elemento neutro ou nulo apenas de um dos lados, não importa se à direita ou à esquerda. Ele ë dito livre quando seus elementos são gerados, ainda pela operação #, indefinidamente, a partir do um conjunto finito de elementos básicos. Para maiores detalhes, ver SAMPAI0, L. S. C. de, A matematicidade da matemática surpreendida em sua própria casa, nua, na passagem dos semigrupos aos monóides, Rio, 1995 (xerografado).
4. 0 termo qüinqüitário, no presente contexto, refere-se a uma lógica que subsume cinco lógicas, ou seja, à lógica lID!D, assim como o termo unário referencia-se a uma lógica que subsume apenas a si mesma, a lógica transcendental ou da identidade I, e o termo trinitário, a uma lógica que subsume três lógicas – a lógica dialética l/D.
5.0 principio antrópico emerge da constatação de que admitidas mínimas variações nos valores das constantes universais transtornar-se-ia do tal sorte a história do Universo, que se tornaria impossível o advento do homem. Conclusão: se as constantes universais sempre o foram, constantes e universais, então, desde o big-bang o Universo já guardava em suas potencialidades a matriz do homem. Admitindo-se que só o homem é capaz de conhecer as leis que regem o Universo e suas respectivas constantes, fecha-se o círculo: este Universo destinava-se, ab initio ao homem e o homem a ele; este ë, em essência, o conteúdo do principio antrópico. 0 princípio ainda sofre o repúdio de um número significativo de cosmólogos, entrementes, elaboramo-lhe uma versão baseada em argumentos não só físicos, mas igualmente lógicos, que não o deixa mais sujeito às restrições mais freqüentes até hoje contra ele levantadas. Para detalhes, ver Sampaio L. S. C. do, Considerações Imoderadas, Rio, 1990 (xerografado).
6. A referência aqui é ao diretor cinematográfico americano John Ford (na verdade, nascido na Irlanda) em cujos filmes era freqüente a presença do herói solitário que sempre aparecia para repor a ordem no “sistema” contingentemente perturbado, e logo que a conseguia, deixava-se ir embora, , pelas estradas, tão solitário quanto chegara. Pode-se haver algo mais expressivo do que isto, no caso?!
7. É imperioso observar que a mesma triangulação aparece em Lacan, com Platão representando o filósofo por excelência (o mestre) e a ciência sendo muito bem representada pela matemática (o “matêmico”). A diferença é que em Lacan a afinidade da psicanálise com o “matêmico” é que é invocada para distinguir a primeira da filosofia, e não ao contrário, como vimos aqui considerando. Ver Alain Badiou, Conditions, Paris, Seuil, 1992, pp 306 a 326.
8. A expressão onto-teo-Iogia é uma óbvia alusão a ontoteologia heideggeriana, porém, com ela não se confunde; a última identifica-se com a metafísica no seu sentido mais pejorativo; a primeira, tal como já insinuamos, o faz com o pensar de uma era ainda por vir: era da cultura nova qüinqüitária.
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