Teve um sonho: Eis que uma escada se erguia sobre terra e seu topo atingia o céu, anjos de Deus subiam e desciam por ela!
Gn 28,12
Dans la captivité et la solitude d´hiver dernier (...) j´ai eu une révélation du ciel qui me suggéra de faire une étude renouvelée de notre Bible avec des yeux grands ouverts...
Cantor – carta a colegas ingleses
Por que são os transfinitos de fato assim tão nanicos? Por que, apesar disso, na Modernidade, os vemos varando todos os horizontes e conquistando não importa que mundos possíveis? O nosso, de todos os dias, nem se fala!
Mesmo admitindo-se que tudo isto não passe de um desvario datado, coisas de certa cultura que chega à menopausa, e que o Absoluto natural acabe se impondo com o tempo aos artefatos sintáticos transfinitos, não estaríamos ainda assim trocando um deus-quadrado-formal por um deus-qüinqüitário-velho-barbudo – apenas um degrau a menos em matéria de presunção?
Entrementes, pondo de lado a auto-censura e os cuidados para nos imiscuirmos no restrito circo dos profetas: o Absoluto não poderia ser a palavra na reserva, uma palavra à espera do Deus de que falava Heidegger, aquele mesmo que nos poderia vir salvar?
Perguntas e mais perguntas! Teríamos em mente, ou na manga, por acaso, alguma resposta?
1. Porque os transfinitos ganharam tamanha proporção?
Valeria a pena começar indagando por que razão, na cultura ocidental, infinitos e transfinitos acabaram tomando tão grandes proporções. Tratar-se–ia de uma questão planetária, uma dentre tantas manobras na guerra de conquista do mundo enfim medido e calculado, como nos sugere Paolo Zellini, seguindo indicações de Heidegger:
La representatión del infinto como signo matemático podía plantearse perfectamente como um aspecto emblemático de lo que Heidegger describió en los Holzwege como el rasgo fundamental del mundo moderno, es decir, “la conquista del mundo resuelto en imagen”... (1)?
Ou estaria isto mais para o caso pessoal, inconsciente, produto ainda de uma guerra, mas, desta feita, interna, corpo a corpo, por mais ou menos gozar, como nos sugere Nathalie Charraud inspirando-se no astuto Lacan:
Dans la strategie inconsciente de Cantor, les nombres devront lui permettre d´aller vers les immensités infinies plus sûrement que les plus puissantes lunettes astronomiques et la mathématique représentera un instrument au service de la Jouissance de l´Autre avant d´être un langage où Georg lui-même trouvera de grandes satisfactions.. (2) ?
Cremos que ambos têm lá suas boas razões, o que, aliás, não faz mais do que refletir a exata constituição lógica da Modernidade: por cima a res extensa sob medida, tendo-lhe sujeitada a res cogitante;. Os transfinitos e sua ordem unida, deveras, constituem mais um passo na conquista lógico-formal do mundo, e, ao mesmo tempo dão-nos o testemunho de mais um que inconscientemente a ela sacrificou sua própria alma. E o resto (o irracional feminino – desejo e historicidade) por baixo, que se dane...
Porém, em que pese a respeitabilidade dessas teses, não há como ignorar que do menor ao maior dos transfinitos são todos eles filhos naturais menores da linguagem. Na verdade, o infinito pode ser outra coisa que um produto do discurso? (3). Entrementes, os poucos que chegam a pensar desta maneira não têm conseguido demonstrar com suficiente clareza como tudo isso acontece e exerce seus efeitos desmedidos. Nosso melhor esforço, no que se segue, será no sentido de tentar superar tais dificuldades.
Em Outra vez, a matematicidade da matemática (4) está posto, já com sólidas justificativas, acreditamos, que a matemática “deriva logicamente” da linguagem natural por um processo de neutralização (esterilização, mumificação ou congelamento, a escolher!) dos poderes identitários ou totalizantes desta última. A mínima estrutura matemática acabada – que no âmbito da teoria dos conjuntos (5) seria o monóide –, possui três propriedades só na aparência positivas, mas que na verdade são expressões que negam precisamente as três propriedades lógico-identitárias encontradas em seja qual for a linguagem natural:
a) a garantia de existência de um elemento nulo à direita e à esquerda, o que vem esterilizar a reflexividade;
b) o total fechamento, o que vem esterilizar a historicidade;
c) enfim, a associatividade, esterilizando a complacência metafórica ilimitada ou, o que é equivalente, extirpando qualquer resquício do ser na dependência de contexto.
Com isto, restam ativas na matemática apenas propriedades lógico-diferenciais, a saber:
d) o ser significante, pura especularidade, o que vale apenas na medida em que remete a um outro; e, principalmente,
e) o ser por convenção regrado, ou seja, o que existe pela rama, por força só da trama da gramática.
A neutralização suplementar do poder lógico-referente ou semântico elementar é o determinante profundo da clivagem das duas grandes vertentes filosóficas em matemática: de um lado, ele é exigido pelos formalistas, quando ela então se consuma através da suplementar postulação da existência universal do elemento inverso, o que nos leva do monóide ao grupo – é como pensa Hilbert, por exemplo –; de outro lado, ele é execrado pelos intuicionistas, prontos a arcar com os ônus da tolerância a terceiros, ou seja, aqueles de bem maiores e sofridas demonstrações – é como pensa Brouwer, por exemplo.
A decisão por um ou outro lado também se dá de modo oblíquo quando se associa um aparelho lógico-dedutivo clássico à condição mínima de ser monóide. A opção aí pela lógica clássica significa a completa exclusão da lógica da simples diferença, sendo justamente por isso que o intuicionista (malgrado dizer que a lógica não conta muito) vai concentrar seu ataque no princípio do terceiro excluído. Pelo contrário, a associação da condição de mínimo monóide à uma lógica intuicionista, deixa ativos, além dos poderes lógicos clássico, pelo menos a metade (paracompleta) dos diferenciais (6).
Deixemos por enquanto esta divergência de lado, e nos fixemos naquela que constitui a posição francamente majoritária entre os donos do pedaço: a matemática, de modo acabado ou apenas ideal almejado, é linguagem formal ou pura sintaxe (gramática/morfologia), governada pois pela lógica clássica, do terceiro excluído ou, como preferimos, pela lógica da dupla diferença.
Considerando somente os “extremos” lógicos do universo matemático assim concebido, nos vamos defrontar com duas grandes questões filosóficas, que são aquelas de sua origem e de sua significação. A primeira é a questão do Nada, a outra, a do Absoluto (7). (Ver figura 1)
Figura 1. Problemática filosófica da matemática – origem e significação
A problemática filosófica dos fundamentos e da significação de todo ente, a que não podem fazer exceção os entes matemáticos (estruturas formais), é a de sua auto-subsistência, correlata à sutura das feridas que justamente deixam os seus des-ligamentos do Nada e do Absoluto. Inclui, pois, a questão ontológica leibinziana - por que há o ente matemático – número, conjunto, álgebra, topologia etc. – e não tão apenas Nada? Mas igualmente a questão “teológica” ou do sentido último da matemática: por que há isso e aquilo por aí neste mundo, mesmo o próprio mundo e não tão apenas o Absoluto em sua constitutiva auto-suficiência? Por que o Absoluto, como tal, não se basta? Como pode a Criação trazer algum consolo à imensa solidão divina? Elas tratam, respectivamente, da origem e da destinação (ou do sentido) dos entes matemáticos.
Não podemos por isso desconsiderá-las, é verdade, mas também não podemos ter a esperança de colocá-las por completo em pratos limpos. Vem de longe! Está nos mitos e nos ditos da sabedoria de todos os tempos: num extremo, está o Nada, diante do qual, só há a angústia, portanto, nada que possamos realmente ver; noutro extremo, o Absoluto, pronto para nos cegar e engolir.
A sutura destes des-ligamentos, consoante seu caráter traumático, teria mesmo que deixar marcas profundas - elas são a presença da ausência extrema.
A marca do des-ligamento na origem, a temos visível no próprio corpo - o umbigo. No mundo da matemática, sabemos, os umbigos estão por toda parte: o zero (número que não conta), o conjunto vazio (conjunto que nada acrescenta), o operador identidade (que atuando, deixa tudo tal qual), o automorfismo (que remete a, mas que aqui no caso não sai do lugar) etc.
A questão do des-ligamento com respeito ao Absoluto nos é também familiar como experiência religiosa (re-ligamento), seja por via mística, seja por via dogmática. Em matemática ela aparecerá, veremos com melhor cuidado adiante, na questão do maior dentre os transfinitos, na problemática da consistência da noção de conjunto de todos os conjuntos finitos e transfinitos, cuja conotação religiosa julgamos inevitável.
Ora, considerando a origem lingüístico-natural da matemática, não podemos fugir à constatação que estas não são falsas, mas sim questões inoportunas, na medida em que teriam que estar já satisfatoriamente respondidas a priori. A matemática, tão apenas para poder chegar a ser o que e como é, dissimula o Nada pondo em seu “lugar” um elemento nulo (zero, conjunto vazio, operação identidade, automorfismo, etc.), ao mesmo tempo obrigando-o a funcionar de modo idêntico tanto à esquerda como à direita; em suma, o espacializa ou o faz simétrico. Dispensamo-nos aqui de maiores considerações porque este assunto já foi exaustivamente tratado em A matematicidade da matemática (8). No presente trabalho, nosso propósito se restringirá ao exame do extremo oposto, ou seja, da questão da matemática ante o Absoluto.
O que aprendemos anteriormente no trato da problemática ontológica da matemática (a questão do Nada), nos induz supor que o infinito, incluídos os transfinitos cantorianos, lá estejam precisamente para obnubilar a questão do Absoluto. Infinito ou transfinitos seriam um simulacro, um céu azul de aquarela escondendo uma real abertura no teto por onde se poderia descortinar um “lugar”, além, de onde, deveras, seriam visíveis os limites da matemática, mas também de onde, como gloriosa compensação, se poderia ver com certa nitidez o seu significado último e profundo. Este, no entanto, não vem ser o caso: o que temos como fato é a dissimulação da questão do Absoluto, que articulada à anterior dissimulação da questão do Nada, enseja à matemática “realizar” sua suprema fantasia: flutuar no ar, auto-suficiente, auto-sustentando-se, como se fora a suprema obra arquitetônica dos deuses. É disso que vive a corrente dos platônicos em matemática.
Nestas circunstâncias, a solução do nosso problema se resumiria tão apenas em identificar e clarificar o processo pelo qual se dá a referida escamoteação – um equivalente da simetrização ou espacialização –, que vimos noutro extremo ser sub-repticiamente imposta ao elemento nulo. A resposta, cá como lá, estaria também dada a priori, no próprio modo negativo de constituição do ser matemático, e que de imediato identificaríamos como sendo aquele da imposição da propriedade associativa. Chegamos enfim aonde era preciso.
A propriedade da associatividade, bem o sabemos, mumifica ou neutraliza a capacidade metafórica ilimitada da linguagem natural e o faz postulando que para quaisquer três “entes” matemáticos ordenados, elementares ou já mesmo compostos, a, b, c, susceptíveis de funcionarem como argumentos da operação Ä, necessariamente tem-se a igualdade a Ä (b Ä c) = (a Ä b) Ä c. Isto no fundo significa que a operação ordenada de dois elementos determina univocamente a multiplicação ordenada de três elementos, donde seguramente se induz que assim o fará com 4, 5, 6, ....indefinidamente.
Dispõem-se de uma experiência direta, quase universal e bastante elementar, que de modo imediato nos traz a certeza que assim de fato seja e precisaria mesmo ser. Trata-se do aprendizado da multiplicação aritmética, para a qual, quando crianças, nos foi suficiente decorar a tabuada de multiplicação dois a dois de números de um só algarismo. Tendo-a de cor, e contando com a ajuda de um algoritmo relativamente simples, aprendíamos então como multiplicar números com quaisquer quantidade de algarismos ou efetuar seqüências multiplicativas de 3, 4, ... n números, não importa. A propriedade associativa nos garante que não iremos nos defrontar com ambigüidades em qualquer seqüência ordenada de multiplicações de números, sejam lá quantos forem; que sua manipulação operatória não dará jamais ensejo a surpresas, vale dizer, que não haverá qualquer insurgência metafórica que nos possa aborrecer com “miudezas” interpretativas. Isto quer igualmente dizer que as expressões matemáticas, ao contrário das expressões lingüísticas naturais, são (pretendem ser, melhor diríamos) desde sempre independentes de contexto (9). Ainda que eventualmente acrescentemos um ou mais novos termos a uma seqüência multiplicativa, antecedendo ou sucedendo-a, não teremos que rever em nada as operações que por ventura já tenhamos antes executado.
Olhando agora para trás, constatamos que a “cura” das ambigüidades da linguagem natural teve lá seu alto preço: a completa perda de sentido local, referencial ou extensivo, conseqüência da rigidez extrema da associatividade matemática, e mesmo assim, sem se conseguir alcançar a completude geral (teoremas de Gödel). No campo da matemática dizemos tudo e com grande exatidão, mas não mais sabemos do que falamos, reconhecia Bertrand Russell (10). Pudera!
É precisamente nestas circunstâncias que surge o infinito matemático. No caso dos naturais, para ilustrar, o infinito é definido de modo antipredicativo (11), como um número ¥ tal que, dado qualquer natural n, se terá necessariamente n < ¥. O mais importante aqui é observar que ¥ – olhado como infinito atual (12) –, embora não sendo um número natural, é ainda assim qualitativamente número (doutra sorte não faria sentido a expressão acima em que ele aparece como sendo maior do que um número!); sua especificidade é destarte puramente quantitativa: apenas ser maior do que qualquer outro número natural que se possa efetivamente exibir (13).
Ora, quanto à linguagem natural, podemos “amarrá-la” ao mundo diretamente pelo uso e/ou indiretamente com ajuda do dicionário ou equivalentes. Esta dupla “amarração”, ao mesmo tempo extensiva e intensiva (14), é necessária em razão da intrínseca precariedade de uma e outra: em geral não nos é factível apresentar a totalidade dos referentes a que o termo se aplica, e nem é também factível dar uma descrição exaustiva e sem qualquer ambigüidade da intenção do termo. Assim, ainda que ambos deficientes, podem muito bem funcionar escorando-se mutuamente; conceito seria justamente o que preenche o lugar de uma estável convergência, diga-se de passagem, impossível. No caso da linguagem matemática, na medida em que ela se pretende puramente formal, todo ente referido terá que ser necessariamente intensivo, confundindo-se então ser (I), ser possível (D/D) e, ainda, bem espremido entre estes, o conceito (I/D) (15). Em conseqüência, faz aí pouco sentido perguntar pela “realidade” do infinito ou dos transfinitos em geral, tanto quanto perguntar pela “realidade” de um simples ponto, reta ou círculo.
De certo modo isto já teria sido percebido por Platão, e foi o que provavelmente o levou a apelar para esdrúxula rememoração como via de acesso à forma perfeita ou conceito, ao invés da simples abstração de forma, tal como depois viria a ser sustentado por Aristóteles. Lembrar que, desde o diálogo Parmênides, a dialética – lógica do impossível –, é precisamente o modo próprio de se visar o conceito ou a idéia.
Como já dissemos, o preço da “limpeza” da ambigüidade (ou contextualidade) para que assim se pudesse chegar à matemática foi a progressiva e persistente des-semantização dos termos primários (em termos lógicos, o mesmo que des-dialetização da linguagem). Por isso, se há problemas com o infinito, por que não haveria com tudo mais – pontos, retas, círculos, quadrados, números reais, séries e daí por diante? Na matemática ideal, só existem unicórnios e inexistem círculos quadrados tanto quanto simples objetos, como pedras e paus.
De tudo que foi posto até aqui podemos concluir com segurança que, seja qual for o infinito matemático considerado, ele estará necessariamente "contido nas possibilidades" da linguagem natural. Isto eqüivale a afirmar que a lógica hiperdialética qüinqüitária, por subsumir a lógica clássica ou da dupla diferença, necessariamente contém todas as suas potencialidades discursivas. Dito ainda com maior precisão: o Absoluto da linguagem natural excede (por um degrau lógico-transcendental) qualquer infinito sintático, incluindo-se aí os transfinitos cantorianos. Parece-nos tudo isso quase um truísmo, tendo-se em conta que assim o é a priori, por simples construção.
A esta mesma conclusão teria chegado o próprio pio Cantor. Contestando acusação que lhe fizera Poincaré no Congresso Internacional de Roma, 1908, ele afirmou, posteriormente, com inexcedível clareza e segurança:
Eu não tenho jamais dotado do atributo “Genus supremum” a qualquer infinito atual. Até pelo contrário, eu rigorosamente demonstrei que não há absolutamente “Genus supremum” do infinito atual. Isto que sobrepassa tudo que é finito e transfinito não é nenhum “Genus”; é a simples unidade completamente individual na qual tudo está incluso, que abarca o “Absoluto” incompreensível ao entendimento humano. É o “Actus Purissimus” que para muitos chama-se “Deus”. (negritos nossos) (16)
Não pode por aí restar qualquer dúvida quanto a que Cantor confundisse W (conjunto de todos os finitos e transfinitos, sabidamente inconsistente) com o Deus de Abraâo, Isaac e Jacó ou mesmo com o Deus dos filósofos. Caso o fizesse, provavelmente, isto lhe acarretasse sérios embaraços conceituais e, reconhecida sua profunda religiosidade, também algumas dificuldades teológico-mentais. (Ver figura 2)
Só não deveríamos ficar inteiramente tranqüilos quanto a este último aspecto quando vemos assomar, pairando sobre finitos e transfinitos, livre de toda ganga, o Actus Purissimus. Quem sabe, fosse justamente tal pureza extrema que sempre lá estivesse, velada, na raiz do seu, como de resto, de todo e qualquer projeto matemático?! Mais adiante voltaremos a este delicado e crucial assunto.
Figura 2 - O Absoluto “bem maior” do que o maior dos transfinitos, W
Já sabemos que a operação de simetrização do elemento nulo requer necessariamente o recurso à sobredeterminação ou ao paradoxo: o número que não conta, o conjunto dos x tais que x diferente de x, a operação inoperante, o morfismo que remete ao próprio, etc. Seria então o caso de se indagar: a que “expediente” dever-se-ia lançar mão para caracterizar a infinitude?
Esta questão nos leva diretamente à hipótese do contínuo e daí, a uma segunda questão: por que Cantor desejava tanto vê-la demonstrada. A prova por Gödel, em 1938, que a hipótese do contínuo (17) não poderia ser demonstrada falsa e que portanto poderia ser aceita como um axioma suplementar à teoria dos conjuntos sem perigo de contradição (se esta aparecesse seria porque estava já lá antes instalada (18)), reforçada com a demonstração da indecidibilidade da referida hipótese por Paul Cohen, em 1963 (19), talvez nos possam dar, ainda que de modo indireto, uma resposta: o “extremo superior” das estruturas matemáticas não finitas seria necessariamente aberto ou subdeterminado. Isto significaria que infinitos e transfinitos só podem ser, mesmo do ponto de vista intensivo, imperfeita ou não completamente caracterizados.
Não devemos esquecer que aquilo que um dia constituíra motivo de embaraço para os matemáticos – que conjuntos infinitos pudessem ser postos em correspondência biunívoca com alguma sua parte própria, cujo exemplo eloquente é a igualdade da cardinalidade do conjunto dos inteiros e do conjunto dos quadrados destes mesmos números – foi transformado, a partir de Dedekind (20), em definição da própria essência da infinitude. Desde então, a incompletude irá se associar inapelavelmente à essência da infinitude. De certo modo, a indecidibilidade parcial (Gödel) e depois total (Cohen) da hipótese do contínuo são um efeito longínquo daquela incompletude de origem. Quer dizer também (apostamos nisso sem qualquer temor), que existe uma segunda “proposição de Cohen”: mesmo que decidamos axiomaticamente pela hipótese do contínuo, uma nova indecidibilidade essencial se manifestará, pois seu cabedal é inesgotável... como os transfinitos.
Agora, articulando-se as conclusões referentes aos extremos matemáticos (voltar à figura 1), de um lado, o nulo sobredeterminado, de outro lado, os transfinitos subdeterminados, concluímos que ambos, cada um a seu modo, são a conseqüência inexorável da constituição recalcadora da matemática. Dissemos que a matemática começava exatamente pela esterilização ou congelamento dos poderes identitários ou totalizantes da linguagem natural, o que deixava ativos apenas os poderes diferenciais u analíticos. Se aceitamos isto, que surpresa pode haver no fato do projeto de uma linguagem puramente sintática ou formal ter que lançar mão justamente do que ela recalca para simular sua autonomia ficcional? Que ali restava ativo além de D/D, ainda que recalcado, senão D?
Nathalie Charraud acredita que Cantor não poderia saber que o preço da consistência da teoria dos conjuntos fosse sua incompletude:
Cantor não pode saber que o preço da consistência da teoria dos conjuntos será sua incompletude. Vale dizer, que há proposições que não são demonstráveis, assim como sua negação: o princípio do terceiro excluído não se aplica mais; torna-se ali necessário um novo axioma. (21)
Ora, isto só assim lhe aparece por terem tanto ela como Cantor perdido de vista o recalque da lógica da diferença que reaparece então como sintoma da inaplicabilidade do princípio do terceiro excluído, como ela mesmo acaba se dando conta. Esta inaplicabilidade é a própria presença ativa da lógica da diferença, justamente lógica de um terceiro incluso.
Eis, como sempre de volta, agora por dupla via, o recalcado: de um lado, a sobredeterminação do nulo é a presença irruptiva no universo formal da realização paradoxal ou paraconsistente da lógica da diferença; de outro lado, a subdeterminação dos transfinitos é a presença irruptiva nesse mesmo universo da realização paracompleta ou intuicionista da lógica da diferença. Por sob D/D estaria, eternamente, D, como a simples inspeção visual das letras nos impõe.
Concluindo esta primeira parte diríamos que do menor ao maior dos transfinitos são todos apenas produtos da linguagem natural, mais precisamente, de suas potencialidades intensivas, sempre “menores” que esta nossa “módica” realidade (lingüística) humana. Tony Lévy, em Figures d´infini afirma de maneira sintética: Minha conclusão é, tudo sopesado, bem banal: “há” infinito porque “há” a linguagem (22). Não há aqui como deixar de acompanhá-lo: ao cabo, tudo isto não passaria de uma simples banalidade.
2. Seriam os deuses deveras infinitos? E sua linguagem, a matemática?
Registra a tradição que o tema da infinitude tem interessado não apenas aos matemáticos, mas igualmente aos físicos (ou cosmólogos), filósofos e especialmente aos teólogos do Ocidente. Como já tivemos oportunidade de observar (23) é muito freqüente na teologia cristã, tanto católica, quanto protestante adjudicar o atributo infinito a Deus. A questão da infinitude se liga, de início oscilante, depois, sempre positivamente, à questão da perfeição e esta, em linha direta, ao próprio Deus.
O apeiron de Anaximandro era perfeito e divino. No entanto, para Platão e Aristóteles a infinitude era sobretudo imperfeição e portanto nada poderia ter com o cosmos e com Deus. Com os neoplatônicos a balança volta a se inclinar em favor da perfeição do infinito:
Plotino foi o primeiro pensador depois de Platão a assumir a crença que pelo menos Deus, ou o Um, é infinito, afirmando do Um que “O absolutamente Um jamais conheceu medida e padrões numéricos, e assim escapa igualmente a limites por qualquer coisa externa ou interna; ...(24)
St. Agostinho, que assinala o ápice da teologia patrística – neste particular, rompendo com Platão, que de resto era sua grande fonte inspiradora – crê não só que Deus é infinito como o único capaz de pensamentos infinitos:
Santo Agostinho, que adotou a filosofia platônica para a religião cristã, crê que não apenas Deus era infinito, mas também que Deus poderia ter pensamentos infinitos. (25)
A crença na infinitude de Deus consolida-se definitivamente com os franciscanos medievais, tendo Duns Scot a sua frente:
Com Duns Scot, e outros teólogos franciscanos, a afirmação sem rodeios da existência de um ser infinito abre a via metafísica às especulações pondo em questão as distinções aristotélicas. (26)
Giordano Bruno, já prenunciando a visão científica moderna, vê o infinito se apossar do cosmos como uma enorme sombra dominadora:
Com efeito, em Bruno, o infinito funda, valoriza e justifica o finito pois o infinito é a própria expressão da potência de Deus. (27)
É importante observar que, antes mesmo que se consumasse a apropriação científica do mundo, Santo Tomás alertava acerca daquilo que lhe parecia uma grave incontinência conceitual:
São Tomás, sem abandonar o suporte que lhe dava a física de Aristóteles, constitui, ao lado do infinito quantitativo, marca do disforme e inacabado, um infinito qualitativo, marca da forma pura e da perfeição, este sim, atributo divino. (28)
Para ele não havia qualquer dúvida que atribuir o caráter infinito (matemático) ao Deus Cristão, ao invés de fazer-Lhe homenagem e justiça, só fazia amesquinhá-Lo. Aceitava o Doutor Angélico que fosse teologicamente lícito falar da infinitude de Deus, mas apenas sob a modalidade analógica (29), ficando então tácito, por exemplo, que a bondade divina fosse infinitamente superior à bondade humana, não apenas em quantidade, grau ou intensidade, mas de maneira essencialmente qualitativa. Que estaria ele querendo dizer com isto?
Na verdade, a emenda aqui saía bem pior que o soneto ou, se o quisermos, por outro ângulo, um pouco melhor. Ela vem se mostrar suma-mente esclarecedora, na medida em que prestemos atenção ao fato de que a idéia de infinito matemático exige exatamente a invariância da qualidade para poder se ater tão somente à quantidade. O infinito atual no âmbito dos números é qualitativamente número, apenas, maior do que qualquer número especificado; na geometria, é ponto, entre conjuntos é conjunto, sempre “maior” que a respectiva categoria de ente matemático considerado. Infinitude qualitativa é simplesmente um oximoro, produto do uso inadequado da linguagem, prato feito, alvo perfeito, este sim, para o neopositivismo lógico-profilático wittgensteiniano. A solução oferecida por São Tomás é em realidade inconsistente, no entanto, tem o grande mérito de deixar bem à mostra a natureza lógica do problema que se tinha e ainda hoje se tem por enfrentar.
Quanto à linguagem dos deuses, que diríamos? Dado o peso da linguagem na determinação da especificidade do ser humano – o homem podendo mesmo ser caracterizado como ser falante ou ser discursivo –, é razoável esperar que teólogos de todos os tempos tivessem se indagado acerca da linguagem dos deuses.
Atribuir um estatuto superior e até mesmo divino à matemática não é obviamente coisa dos deuses, mas com certeza bem humana, já bastante antiga e generalizada. Muito provavelmente assim pensassem os membros da classe sacerdotal neolítica encarregada de fazer as primeiras medidas de tempo (calendários) e espaços (distribuir terras, traçar plantas de templos e palácios, proceder à cubagem de estoques) – a aritmética e a geometria. Os intelectuais pitagóricos, jesuítas avant la lettre, teriam as mesmas convicções, vindo em sentido contrário, isto é, valendo-se dos mistérios e das maravilhas da matemática, provavelmente, para obter e sustentar um estatuto social privilegiado.
Mesmo filósofos e cientistas pensaram assim. Ao afirmar, pela voz de Sócrates, que O conhecimento a que aspira a geometria é o conhecimento do eterno (30) poderia Platâo admitir outra coisa senão que a matemática fosse a linguagem por excelência dos deuses? É ainda Platão que adjudica um estatuto ontológico aos cinco sólidos regulares, fazendo-os elementos últimos do mundo.
Galileu propalava, alto e bom som, que Deus era tão bom em matemática como em hebraico, arameu e grego, tanto que foi da primeira e não das línguas naturais que se valeu para o projeto do mundo, embora, toda esta arenga não passasse, talvez, de um expediente para contornar a censura eclesiástica. A nosso juízo, essa esperteza não se agüenta pela coerência (31).
Devemos convir que há em tudo isso uma séria dificuldade: sendo já o homem e sua linguagem de nível lógico hiperdialético qüinqüitário (I/D/D), como poderia a linguagem divina ser tão apenas lógico-formal (D/D)? Apesar desta manifesta inconsistência lógica, que forças sociais e psíquicas poderiam ainda assim sustentar tal crença? Encontrar uma boa justificativa para a sua persistência nos tempos nos parece de grande importância, não apenas para clarificar a essência da matemática, mas, especialmente, para compreender um pouco melhor que lugar ela ocupa no imaginário dos povos. Muitos já se fizeram tal indagação; talvez o melhor exemplo disto seja Spengler, que em A Decadência do Ocidente chega à ampla conclusão que, de fato, cada cultura tem sua matemática peculiar (32).
3. A pureza como valor supremo
Atribuir à matemática, como inicialmente aqui fizemos, um estatuto menor, subordinado à linguagem natural, bate de frente com o que em geral se viu depois: persistentemente na História, a matemática considerada linguagem de Deus (ou quase) e o infinito como Seu atributo por excelência. Como se poderia explicar tamanha divergência entre a lógica e o bom senso, que teríamos (ambos) eqüitativamente em comum?
A nosso ver, a crença na superioridade da matemática derivaria do fato do homem se distinguir do resto da natureza por sua capacidade de operar com a lógica da dupla diferença que é o mesmo que operar sob a legalidade por convenção. Esta disposição lógica, portanto geral, se concretiza de vários modos: na instituição da lei universal da proibição do incesto/ obrigatoriedade da exogamia, no contrato social, na gramática, na piedade, como queria Rousseau, ou no porte da terceira pele – pintura ou vestimenta –, como se tem implicitamente por aqui (33). Podemos ver nisso apenas um tropo metonímico, onde se toma a “parte pelo todo”, a gramática pelo discurso, a lógica clássica D/D pela lógica hiperdialética I/D/D. Achamos que, malgrado, há algo mais e, por suposto, ainda mais profundo. Nossa hipótese seria que, competindo com o eixo hierárquico propriamente lógico – que começa em I, passa por D, I/D, D/D, chega até I/D/D e segue adiante –, haveria um outro eixo valorativo, sub-reptício, se estendendo de nenhuma à suprema pureza.
Vejamos. A linguagem natural possui, ao menos, dois grandes planos semânticos – o dos termos (I/D) e o dos discursos (I/D/D), passando-se do primeiro ao segundo pelo concurso da gramática (D/D). Constatada a ambigüidade do discurso natural, e não se querendo aceitá-la como lhe sendo inerente, teríamos que necessariamente atribuí-la aos termos ou à gramática. Sabendo que os animais operam com símbolos (I/D) e só os homens, tidos como semelhantes a Deus, operam concomitantemente com símbolos (I/D) e com gramática (D/D), como não atribuir ao nosso lado animal, isto é, aos termos, a impureza que aflora e conspurca a espiritualidade do discurso? Ademais, a gramática é lei convencional, podendo, caso seja preciso, ser sempre aprimorada. Isto posto, e propositadamente deixando de lado nosso código de controle lógico (as letras I, D, I/D etc.), damo-nos conta, enfim, da razão pela qual a linguagem apenas sintática, formal ou matemática podia a muitos se afigurar superior à linguagem natural. Fica então evidente que o eixo de tal valorização, velado, é em verdade o da impureza/pureza (sexual, não é preciso que se diga).
Como seria bom que houvesse uma linguagem livre de ambigüidades! Não foram poucos os filósofos (sendo Leibiniz, Bertrand Russell e Wittgenstein os mais famosos) e muitos os cientistas, príncipes e ditadores que sonharam e até se empenharam na busca obsessiva de uma mathesis universalis, uma linguagem de acéptica e unívoca semântica intensiva, pura gramática. Alguns, como Stalin, teriam chegado mesmo às providências policiais para tanto.
Acresça-se a isto que a matemática, por ser construção pelo avesso, que nega como se afirmando, é de certo modo dissimulação e, tão apenas por isso, de difícil acesso à maioria das pessoas. Além do mais, pouco esforço pedagógico tem sido feito no sentido de identificar e tentar superar os problemas do aprendizado específico da matemática (34).
Finalizando esta parte, fazemos a glosa ao adágio hegeliano, no qual se afirma haverem bons e maus infinitos; diríamos que tal discriminação na verdade não procede, pelo menos para a filosofia e a teologia. A nosso juízo, fora do estrito âmbito da matemática, todos infinitos ou transfinitos são péssimos.
4. A escada de Cantor não chega aos pés da escada de Jacó, muito menos, ao seu destino
E agora, como ficam nisso tudo os transfinitos cantorianos? Nathalie Charraud buscando compreender as motivações mais profundas de Cantor, chama-nos a atenção para o fato que
Ele pensava que a matemática era capaz de sustentar e fundar outros domínios, em particular, a teologia. (35)
acrescentando que, a seus olhos,
...pela unidade que ele busca manter entre matemáticas, filosofia e religião, ele é um “antigo”; ele parece um daqueles teólogos medievais... (36)
Teólogo medieval ou alguém se assumindo vir ainda de bem mais longe? Ninguém melhor do que Cantor, nada melhor que seus transfinitos, pois, para levar-nos, ao mesmo tempo, às alturas e às maiores profundezas da matemática. Tentemos pois segui-lo um pouco mais de perto.
Caso estejamos todos de acordo em torno da idéia que a essência da matemática está justa e suficientemente representada pelo monóide, ficamos também obrigados a concordar que a incorporação do vasto mundo dos transfinitos ao império da matemática implicaria, no mínimo, em sua submissão, pelo menos, aos três postulados que fixam em essência um monóide. Dentre as condições de sua efetiva consecução está, necessariamente, o êxito em se chegar à dissimulação “ontológica”. Como se faria então ali a definição do elemento nulo transfinito de modo a elidir a questão: por que há transfinitos e não apenas o Nada (de transfinitude), isto é, a finitude? Em suma, quem se constituiria em nulo transfinito com as características de “simetria espacial” já por nós assinaladas?
Cantor, ainda que o fosse sem intenção, de início evitou esta questão, e num segundo momento tentou simplesmente evitar que pudéssemos perceber que a tivesse evitado. Ele parte do que se afiguraria a todos o mais intuitivo: postula que o primeiro transfinito é a cardinalidade do conjunto enumerável dos inteiros e batiza-o adequadamente como À1. Num segundo momento, sem qualquer justificativa manifesta, Cantor o rebatiza como À0. (37)
Não seria próprio dizer que tal ocorrência seja sem qualquer importância, uma questiúncula diante da monumentalidade de sua seqüência transfinita. Não seria demais lembrar, bem a propósito, que a seqüência dos inteiros, mesmo depois de sua soma quase fechada e associativa levou ainda milênios até que os hindus desvelassem/nomeassem seu elemento nulo (zero) que assim a fazia de fato um monóide, verdadeira aritmética. E não havendo a mínima dúvida quanto à genialidade de Cantor, não podemos aceitar que isto tivesse acontecido por simples descuido ou hesitação terminológica. Por certo alguma coisa em sua primeira decisão o assustara e fizera recuar.
É bem sabido que, ao contrário de Frege, Cantor não atribuía qualquer estatuto especial ao zero e ao conjunto vazio, de onde se poderia depreender que também pouca importância viesse a dar ao nulo de seus transfinitos. Mas, para quem se via sempre tão perto dos deuses, ao invés de simples picardia, tal atitude não poderia ser melhor interpretada como premonitória?!
Ao contrario do que em geral se supõe (até o grande Frege entra nessa (38)) toda seqüência “conquistadora” ou fundacional começa logicamente pelo UM, que, apenas por ter sido posto, demarca o lugar de sua mítica proveniência, mas que, por isto mesmo, não o pode “preencher”. Só quando definimos o outro do UM, o DOIS, ou alternativamente, a operação que o gera, é que retroativamente se define o “conteúdo” do ZERO (39). Todo ZERO só se revela, pois, quando olhado pelo espelho retrovisor. (ver figura 3)
O UM aqui pode ser muita coisa. Pode obviamente ser o número inteiro 1 e, neste caso, o DOIS seria o inteiro 2=(1+1) e, ZERO, o zero mesmo. Mas pode, por exemplo, UM ser 2, cardinal do conjunto de dois elementos, e o DOIS o conjunto potência de 2, isto é, 22 e assim sucessivamente. Neste caso o ZERO ou nulo desta seqüência será 1=20 e, portanto, 2 feito idêntico a 21. O sentido disto tudo parece-nos óbvio: neste exemplo, 2 representa um bit de informação; o sucessor de um elemento qualquer xi da seqüência, seu conjunto potência P(xi); o nulo, 1, uma simples marca que por falta de contraste é destituída de poder informativo (zero informacional). O zero mesmo nem entra nesta história.
Figura 3 – Dupla determinação do elemento neutro
Ora, quando Cantor faz da cardinalidade do conjunto dos inteiros, UM, e do conjunto dos reais, DOIS, é que fica então definido, não importa se dito ou não dito, o ZERO da seqüência dos transfinitos como sendo ZERO transfinito, ou seja, a classe dos conjuntos finitos. (Ver figura 4)
Figura 4 – Na busca do nulo transfinito
Em princípio, isto deve lhe ter soado perfeito. A classe dos conjuntos finitos seria mesmo o que caracterizaria adequadamente o nada de infinitude. Acontece que os finitos, para a definição ali assumida de equivalência, não formam uma classe. Caso deixasse tudo tal como estava, todo mundo perceberia que na verdade estavam ali em jogo “conceitos diferentes” de equivalência.
A nosso juízo, este problema poderia ser facilmente contornado com a introdução do conceito de S-equivalência (40).
Os conjuntos A e B são ditos S-equivalentes quando existirem partição finitas (41) de A e B, tais que todos os elementos da partição de B sejam equivalentes a um elemento da partição de A e vice-versa
Eis alguns resultados que aqui nos vão interessar:
Teorema: Todos os conjuntos finitos não vazios são S-equivalentes
Toma-se como partição de A e de B seus próprios elementos (acontece assim porque no âmbito da finitude, apenas mais 1 faz diferença! Contrariamente, no âmbito da infinitude, só faz diferença a passagem de ser-um a ser-um-significante, ou seja, um alefe é ou mede a quantidade de informação do alefe que lhe sucede)
Teorema: Todos os conjuntos infinitos equivalentes são S-equivalentes e vice-versa
Toma-se A como partição de A e B como partição de B, como A e B são equivalentes, A e B são necessariamente S-equivalentes
Se A for o conjunto dos inteiros e B os pares, posso partir A em pares e ímpares e partir B em B mesmo, aí qualquer colegial pode entender o que é S-equivalência... Se eu quiser agora complicar, parto A (inteiros) em pares e ímpares e B (pares) no conjunto dos quadrados de pares e no seu complemento e tudo vai funcionar perfeitamente bem e o meu colegial, se for dos bons, compreenderá o que faz o “espírito” da equivalência.
Teorema - Qualquer S-equivalência é equivalente a outra, seja em âmbito finito ou infinito mas toda equivalência é equivalente a outra apenas em âmbito finito.
O conceito de S-equivalência deixa os transfinitos exatamente tais como eram, mas transmuda os conjuntos finitos numa classe de S-equivalência que poderia agora tranqüila e coerentemente ocupar a posição À0, ou seja, aquela de zero de infinitude.
O problema, entrementes, com apenas isso, não desaparece. Deveras, se fosse assim tão fácil, não seríamos nós, mas certamente o próprio Cantor que o teria resolvido. É fácil verificar que a posição ZERO, determinada pela seqüência infinita dos inteiros, não fica determinada pelos reais À2, ou seja, À1 não pode ser feito igual a 2finito e portanto esta seqüência de alefes não forma um monóide. Isto teria sido, a nosso ver, o que teria assustado Cantor, que então reage rebatizando os inteiros enumeráveis como À0. De fato, com esta definição os transfinitos cantorianos se tornam um monóide, dito monóide livre informacional, em que os termos são gerados sempre como sendo o conjunto potência do termo anterior e que o elemento ZERO não é conjunto potência de nada, é pura diversidade significante. (ver figura 5)
Entretanto, a nosso juízo, o preço para transformar a seqüência de transfinitos em verdadeiro monóide, para Cantor, teria sido exorbitante. Ao fazer da cardinalidade dos inteiros o ZERO da seqüência, estes deixavam de ser o ZERO de ser-transfinito para se tornarem o ZERO de ser-contínuo, e com isso, era toda a seqüência que perdia sua essência almejada. A pretensão de Cantor era bem a conquista e anexação dos espaços transfinitos e não que neles, nós e ele próprio nos perdêssemos.
Figura 5 - O nulo cantoriano
A escada dos transfinitos não tinha mais agora sua base em terra: seu degrau zero já fora para o espaço, e não mais poderiam por ele subir e descer à terra os anjos de Deus! Sabendo, por outro lado, que esta mesma escada não chegava ao céu (42), ele se via diante do fato que sua escada flutuava solta, em lugar nenhum, nada parecendo, pois, à escada do sonho de Jacó!
É ainda Nathalie Charraud que aventa a hipótese que a doença mental de Cantor teria se manifestado de maneira demolidora diante da constatação da inexorável inconsistência do lugar que reservara à salvação de Deus:
Preso à idéia de um Todo englobante, cantor faz a escolha da completude : crendo salvar Deus desta maneira, ele torna ao contrário seu lugar inconsistente e não poderá evitar o efeito retroativo que se manifesta com sua doença. (43)
Ora, isto entra em flagrante contradição com o que a própria autora observa (ver nota 17) acerca da posição de Cantor, quando este reage à invectiva de Poincaré, e afirma que seus alefes não possuíam um genus supremum, por isso ficavam sempre muito aquém do Absoluto. Para nós, o grande choque por ele sofrido seria bem outro: a frustração de não ter conseguido construir a escada de seu velho sonho (44.).
Apresenta-se agora a ocasião para indagarmos acerca dos efeitos que a prova da indecidibilidade da hipótese do contínuo poderia ter tido para as apreensões e temores de Cantor. A rigor, deveria ter sido nenhum. Por que conservar a pergunta sobre a existência ou não de infinitudes intermediárias entre os enumeráveis e os reais e não substituí-la consequentemente pela pergunta sobre a existência ou não, no mesmo intervalo, de continuidades intermediárias? Não faria bela comédia (formal) de erros!
5. Absoluto – a palavra-reserva, uma palavra à espera
Resta-nos ainda uma grande questão que, de certa maneira, já vai mais além da questão da infinitude. Qual o real estatuto do Absoluto? Representando ele o incondicionado no âmbito da linguagem humana, de nível lógico I/D/D – que julgamos mais potente do que todos os transfinitos com sua boa ordem e aritmética –, significaria isto que, no fundo, o Absoluto é o próprio homem? A nosso ver, a resposta a esta questão está na total dependência do estatuto que viéssemos atribuir à lógica hiperdialética qüinqüitária (I/D/D). Caso caíssemos na mesma tentação de Hegel, que considerou a sua dialética (I/D) lógica do espírito absoluto, dificilmente escaparíamos, como ele, ao panteismo. Tratando-se da lógica hiperdialética isto iria levar-nos a um humanismo dogmático. Esta, entretanto, não é nossa visão, muito menos nossa pretensão.
O eixo lógico, que justamente permitiu reordenar transfinitos sintáticos (D/D) e o Absoluto (I/D/D), a matemática e a linguagem natural, é o mesmo que nos pode proteger do panteísmo (45), ainda que já lhe estando um degrau diferencial mais alto.
A lógica I/D/D é tão apenas a lógica maior do ser mundano e não se confunde, a priori, com a lógica máxima possível. Somos obrigados a admiti-lo por força de nossa própria, difícil, às vezes dramática vivência intersubjetiva (46).
Em conseqüência, o Absoluto passa a ter um sentido ambíguo refletindo a condição lógica humana: ou modo de ser do homem, pretensiosamente assumindo-se sua própria medida; ou uma palavra- reserva, à espera de algo maior que quisesse um dia insistir em Se nos revelar.
Uma pergunta ainda fica: uma filosofia da finitude de fato não sofre quaisquer abalos ou embaraços por causa de transfinitos atuais, mas conseguiria se agüentar diante de um Absoluto atual?
Rio de Janeiro, 2001
Notas
1. ZELLINI, Paolo, Breve Historia del Infinito, Madrid, Siruela, 1991 p. 210
2. CHARRAUD, Nathalie. Infint et Inconscient. Essai sur Georg Cantor. Paris, Anthropos, 1994 p. 23
3. Mais l´infini peut-il être autre chose qu´un produit du discours? SALVAGEOT, J-L, L´infini commence à cinq in Le genre humain – Fini & infini, Paris, Seuil, 1992
4. SAMPAIO, L. S. C. de. Outra vez, a matematicidade da matemática in Lógica Ressuscitada – Sete ensaios, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2000
5. As três determinações referidas são diferentes para as arquiteturas conjuntista e categorista da matemática, embora sendo ambas logicamente equivalentes. Tomamos apenas a primeira por ser muito mais familiar aos nossos eventuais leitores. SAMPAIO, L. S. C. de. A matematicidade da matemática surpreendida em sua própria casa, nua na passagem dos semigrupos aos monóides in Lógica Ressuscitada – Sete ensaios, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2000
6. SAMPAIO, L. S. C. de. Lógica da Diferença. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2001, especialmente cap. 3 e 5.
7. Escolhemos o termo Absoluto para designar algo da linguagem natural que não cabe em qualquer estrutura matemática, por mais extensa que seja. A propósito, KANT já se lamentava:
A palavra absoluto é uma das poucas palavras que no seu significado primitivo eram inteiramente adequadas a um conceito, ao qual nenhuma outra palavra disponível da mesma língua correspondeu rigorosamente e cuja perda ou, o que é o mesmo, cujo uso impreciso deverá acarretar a perda do próprio conceito; e trata-se de um conceito que, porque muito ocupa a razão, dele não se pode prescindir sem grande prejuízo para todos os juízos transcendentais. [.. ] Neste sentido mais lato me servirei pois da palavra absoluto para a contrapor ao simplesmente comparativo ou ao que só é válido em sentido particular; porque este último está restrito a condições, ao passo que o absoluto vale sem restrições. KANT, Crítica da razão pura. Lisboa, Gulbenkian, 1989. pp. 315, 316
8. SAMPAIO, L. S. C. de. A matematicidade da matemática... op. cit.
9. Outra vez, a matematicidade da matemática, op. cit.
10. RUSSELL, Bertrand (?)
11. Às definições predicativas se opõem às definições anti-predicativas; estas últimas são aquelas que fazem referência a um todo envolvente, em geral infinito.
12. Quando não se crê em infinito atual, como era o caso de Aristóteles e Kronecker, o significante ¥ deve ser tomado não como um número, mas como um índex, como uma tabuleta ali fincada indicando que naquela direção se pode seguir toda a vida sem que se vá encontrar qualquer impedimento. Quando, ao contrário, se crê em infinito atual, como é o caso de Cantor, aquele mesmo significante terá que ser lido como sendo de um número (A propósito, haveria outra maneira de distingui-los?). Ao identificar dois conjuntos infinitos hierarquizados – naturais e reais –, Cantor ganha o direito de fazer do infinito natural um ser atual, ou seja, um número. È importante notar que além do direito foi preciso a coragem e a “força de manter sob seu olhar dominador” o que nomeava.
Por fim, deve-se notar que a idéia da existência de diferentes graus de infinitude é bem antiga, tendo sido já considerada por Robert Grosseteste (1175- 1253), mestre em Oxford, arcebispo de Lincoln.
13. A oposição heideggeriana ontológico/ôntico, à proporção que os entes vão sendo reduzidos, através da medida, a um feixe de números – como na física operacional de hoje –, vai se confundindo com a oposição qualitativo/quantitativo. Não estaria aí justamente a essência da física matemática?
14. Intensivo aqui se contrapõe a extensivo, uma distinção que vem dos estóicos. Sentido extensivo é o conjunto de referentes a que um termo se aplica (uso), e sentido intensivo é aquele dado por um conjunto articulado de termos considerado equivalente ao termo em questão (norma). Nesta última acepção o termo precisa fazer parte de um sistema dotado de uma sintaxe. A matemática formalista pretenderia reduzir todo sentido à pura intensividade.
15. Não é por mera coincidência que encontramos aí uma perfeita homologia com as três “di-mensões” do significante lacaniano – o imaginário, o simbólico e o real. Daqui também de imediato se depreende qual é a essência do projeto matemático: reduzir o significante à unidimensionalidade para, através disto, chegar ao simbólico puro, isto é, obrigar a que D sirva sem bronca a seu senhor D/D.
16. Je n´ai jamais procédé d´aucun “Genus supremum” de l´infini actuel. Bien au contraire, j´ai rigoureusement démontré qu´il n´y a absolument pas de “Genus supremum” de l´infini actuel. Ce qui surpasse tout qui est fini et transfini n´est aucun “Genus”; c´est la simple unité complètement individuelle dans laquelle tout est inclus, qui inclut l´”Absolu” incompréhensible à l´entendement humain. C´est l´”Actus Purissimus” qui par beaucoup est appelé “ Dieu”. CHARRAUD, Nathalie. Infint et Inconscient. Essai sur Georg Cantor. op. cit. p. 243
17. Hipótese levantada e sustentada por Cantor, estabelecendo que entre a infinitude dos naturais e aquela dos reais não existiria qualquer degrau intermediário de infinitude.
18. GÖDEL, Kurt. La consistência del axioma de elección y la hipótesis generalizada del continuo in Kurt Gödel - Obras Completas, Madrid, Alianza Univ., 1981.pp. 192-194. Para uma simples notícia explicativa ver DAVIS, P. J. and HERSH, R. A Experiência Matemática. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1985. pp. 262-263
19. COHEN, Paul J. Set Theory and the Continuum Hypothesis. N. York, W. A. Benjamin, 1966 . Existe tradução portuguesa em O Teorema de Gödel e a Hipótese do Contínuo, Lisboa. F. K. Gulbenkian, 1979.
20. SEBSTIC, Monnoyer Le paradoxe de la réflexivité des ensembles infinis: Leibniz, Goldbach, Bolzano. In Infinis des Mathématiciens, op. cit., p. 175
21. Cantor ne peut savoir que le prix de la consistence de la théorie des ensembles será son incomplétude, c´est-à-dire qu´il y a des propositions qui ne sont pas démonstrables, non plus que leur négation: le principe du tiers exclu ne s´applique pas, il faut poser lá un nouvel axiome. CHARRAUD, Nathalie, Infini et Inconscient. op. cit. p. 157
22. Ma conclusion est, somme tout, banale: “il y a” de l´infini, parce qu´ “il y a” de la langue. Tony Lévy, Figures de l´infini – Les mathématiques au miroir des cultures, Paris, Seuil, 1987
23. SAMPAIO, L. S. C. de. Noções de teo-logia. Rio de Janeiro, UAB, 1997. (xerografado)
24. Plotinus was the first thinker after Plato to adopt the belief that at least God, or the One, is infinite, stating of the One that, “Absolutely One, it has never known mesure and stands outside of number, and so is under no limit either in regard to anything externa or internal;... RUCKER, Rudy. Infinty and the mind. London, Penguin, 1982. p. 3
25. St. Augustine, who adopted the Platonic philosophy to the Christ religion, believe not only that God was infinite, but also that God could think infinite thoughts RUCKER, Rudy. Infinty and the mind.op. cit. p. 3.
26. Avec Duns Scot, et d´autres théologiens franciscains, l´affirmation sans détours de la existance d´un être infini ouvre la voie métaphysique à des speculations rémettant en cause les distinctions aristotéliciennes. Tony Lévy. Mathématiques, infini et leangage in Le genre humain – Fini & infini, op. cit.. p. 180
27. En effet, chez Bruno, l´infini fonde, valorise et justifie le fini puisque l´infini est l´expression même de la puissance de Dieu. MONNOYEUR, Françoise, org. Infini des mathématiciens, infini des philosophes. Paris, Belin, 1992. p. 13
28. Saint Thomas, sans abandonner le socle de la physique d´Aristote, constitue, à côté de l´infini quantitatif, marque de l´informe et de l´inachevé, un infini qualitatif, marque de la forme pure et de la perfection, attribut divin Tony Lévy, Mathématiques, infini et leangage in Le genre humain – Fini & infini, op. cit.. p. 180
29. SAMPAIO, L. S. C. de. Lógica e Realidade - sob as vestes, ora mais, ora menos adequadas, de uma retórica formalizante. Rio de Janeiro, fevereiro de 1996 (xerografado)
30. PLATÃO, A República, VII, 527. S. Paulo, Atena, 1955.
31. SAMPAIO, L. S. C. de. Princípio Antrópico in Lógica Ressuscitada – Sete ensaios, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2000
32. SPENGLER, Oswald. A decadência do Ocidente. Brasília, UnB, 1982. p. 68
33. Quantas vezes já não ouvimos que humano é quem sabe se por na pele do outro?! Se o cérebro é a pele (D) da pele (D), pondo-nos na pele do outro (fazendo coincidir uma as nossas com uma das de um outro) nos colocamos numa terceira pele: duas fazem D e D e a terceira, colapsada, faz I = D0, tudo, articuladamente, fazendo I/D/D. A sabedoria popular jamais se imaginou assim tão sabida!
34. A nossa experiência docente mostra uma generalizada falta de base matemática dos alunos, mesmo os de nível universitário, com exceção, naturalmente, daqueles que se dirigem a áreas técnicas. De modo também geral, a está incapacidade vem sobreposta uma atitude de resistência que torna bastante difícil a superação das aludidas deficiências. Um dos maiores problemas, a nosso ver, está na omissão das considerações estratégicas inerente à qualquer busca de solução. A “apresentação da fórmula” que dá a solução é o maior mal que se pode fazer ao aluno (no caso, ao inimigo)
35. Par contre, il (Cantor) pensait que la mathématique était capable de soutenir et fonder d´autres domaines, et en particulier la théologie. CHARRAUD, Nathalie, Infini et Inconscient. op. cit. p. 170
36. ...par l´unité qu´il cherche a mantenir entre mathématiques, philosophie et réligion, il est un “ancien”; il ressamble à ces théolegiens médiévaux... ibid. p.
37. Apenas para se informar do câmbio, ver CHARRAUD, Nathalie. Infint et Inconscient. op. cit. pp. 138-139
38. Referimo-nos especificamente à geração dos naturais a partir do conjunto vazio Æ. O significante Æ só ganha sentido depois de definirmos quem segue {Æ} como sendo {Æ, {Æ}}, vale dizer, Æ significa não estar envolvido por qualquer chave! Um caso óbvio de petição de princípio. Tudo funciona, entretanto, porque o significante Æ pode ser lido, por um feliz descuido, como {/}, isto é, { } cortado...
39. Isto tem tudo a ver com a famigerada distinção heideggeriana ontológico/ôntico (já mencionada na nota 13 anterior). A “diferença” ontológica marca o “lugar” do ZERO (Nada), mas não pode, por definição qualificá-lo. Quem o faz, e apenas retroativamente, é a diferença ôntica entre o UM e seu outro. É verdade que a definição do DOIS também afeta o UM, mas a determinação ôntica do UM vai de si – é pintar de azul o já existente, um poste, por exemplo – enquanto que a afetação do ZERO é de certo modo um contra-senso – é pintar de vermelho um poste inexistente. Importante observar que a matemática, opondo UM e seu outro ou sucessor, está de fato representando a diferença ôntica, mas ao opor UM e ZERO só está mesmo é dissimulando a diferença ontológica, isto é, re-definindo-a conteudisticamente.
40. Trata-se tão simplesmente de definir uma noção de equivalência que seja cega em relação a “diferenças” ou “sobras” que não excedam o próprio “tamanho” dos conjuntos em jogo. A equivalência de conjuntos infinitos já comporta esta idéia, em especial quando se postula (Dedekind) que conjuntos infinitos são equivalentes a uma sua parte própria (não está dito, mas está implícito que o que sobra da parte própria escolhida precisa ser “igual ou menor” à referida parte própria, o que permite redefinir a correspondência de modo a não deixar qualquer “sobra”). Mas isto é justamente mudar o sentido da equivalência de conjuntos finitos. Dizer que o conceito de equivalência é idêntico nos dois casos, e ao mesmo tempo dizer que uma forte conseqüência intuitiva deixa de valer em um dos lados, a nosso ver, é mudar o conceito, porque em matemática formalista o conceito não é outra coisa senão seus efeitos. A criação de uma S-equivalência não mudaria absolutamente nada em termos estritamente matemáticos, apenas em termos de luta de conjuntos (ou de classes) A equivalência é um “conceito neo-liberal”, que conta tostão a tostão dos pobres finitos, e não conta bilhões e bilhões dos abastados transfinitos; na verdade conta, mas apenas quando tanta é a riqueza que os transmuda em emergentes, instauradores de um novo patamar de discriminação, isto é, quando a riqueza nova é tão maior que faz daquela dos não emergentes um nada. Uma piada, sem qualquer seriedade! O S de S-equivalência vem de uma observação/gozação do amigo Ricardo Kubrusly.
41. Uma partição finita de X é um conjunto finito de subconjuntos Xi de X, tal que a união de todos os Xi contém X e a interseção de todos os Xi é vazia.
42. Ver nota 17 anterior.
43. Attaché à l´idée d´un Tout englobant, Cantor fait le choix de complétude: croyant sauver Dieu de cette manière, il rend au contraire sa place inconsistente et ne pourra éviter l´effet de retour qui se manifeste avec sa maladie. CHARRAUD, Nathalie, Infini et Inconscient. op. cit. p. 157 op. cit.
44. Para mais algumas considerações sobre a relação matemática/doença mental, ver SAMPAIO, L.S. C. de A lógica da Diferença, op. cit., particularmente, cap. 8
45. Existiria um panteísmo lógico-identitário ou cabalista (I) em que Deus é a única realidade, e de onde tudo emana; haveria paralelamente um panteísmo lógico-dialético, objetivo (I/D), onde o mundo real em sua totalidade confundir-se-ia com o ser-divino (Espinosa e Hegel).
46. SAMPAIO, L. S. C. de. A superação das idolatrias - a religiosidade na cultura nova lógico-qüinqüitária, in Filosofia da Cultura, Rio de Janeiro (no prelo) e Noções de teo-logia, op. cit.
Vamos considerar como cabalmente entendido o que já expusemos à exaustão neste e noutros trabalhos (3) acerca das lógicas mundanas e também de sua exata correspondência, ainda que em extensão limitada, com os matemas lacanianos (4). No plano mundano existiriam apenas cinco modos fundamentais de pensar, cujas respectivas teorizações tomam, conforme a tradição (e não conforme a traição e estreiteza “pós-moderna” vigente), o nome de lógicas. Seriam eles:
a) o pensar que se autodetermina, pensar do mesmo, consciente, teorizado pela lógica transcendental ou da identidade, I, em que se empenharam Kant, Fichte e Husserl; na metafórica lacaniana ela está representada por $x~f(x) (existe pelo menos um x que escapa à lei ou a toda e qualquer predicação);
b) o pensar que pensa à revelia, pensar outro, inconsciente, teorizado pela lógica da diferença, D, compreendendo parcial ou integralmente as “lógicas” implícitas no filosofar de Pascal, Kiergegaard, Nietzsche e no logos heraclítico conforme lido por Heidegger, que se realiza de modo exclusivo, ora paraconsistente, ora paracompleto; na metafórica lacaniana ela está representada por ~"xf(x) (não é todo e qualquer x que se encontra enquadrado na lei ou captado pela rede geral das predicações);
c) o pensar da totalidade, do mesmo e do outro re-unidos, teorizado precisamente pela lógica dialética (trinitária), I/D, ora visando a idéia platônica, ora a história hegeliana/marxista; na metafórica lacaniana ela está representada por ~$x~f(x) (não existe x que possa ter escapado à lei ou à rede geral das predicações);
d) o pensar das “totalidades apenas por convenção” ou sistêmico, calculável, teorizado pela lógica formal, clássica, aristotélica, do terceiro excluído ou da dupla diferença, D/D; na metafórica lacaniana ela está representada por "xf(x) (todo e qualquer x está enquadrado na lei ou inteiramente coberto pela rede geral das predicações);
e) o pensar do ser humano em sua plenitude, governando o funcionamento da linguagem natural, teorizado pela lógica hiperdialética (qüinqüitária), I/D/D, e que subsume todas as lógicas anteriores, portanto, capaz (em estado de normalidade) de dispô-las e administrá-las; carente, desde sempre, de representação na metafórica lacaniana.
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