Que é “filosofia analítica”? Cabem aqui muitas respostas: apenas um monótono cacoete metodológico sem a menor dose de inibição; um feixe cerrado de sintomas obsessivos; a confissão de uma psicose adida pelo recurso extremo a uma prótese superegóica; um discurso sócio-econômico neoliberal bem remunerado etc. Do ponto de vista estritamente filosófico, a resposta é simples e unívoca: nada é.
Um “filósofo analítico” ouviu de uma pobre mulher, aos prantos, que seu marido fora morto por uma bala calibre 38, que se alojara em seu coração. Muito solícito, logo se dispôs e ir ao necrotério, não para apressar a liberação do corpo, mas para enfrentar e resolver a tragédia. Lá foi; sem a menor inibição invadiu o necrotério, identificou facilmente o corpo (para a sorte de quase todos, havia apenas um morto); com o próprio canivete retirou a bala e com a agulha e linha tiradas da capanga costurou com capricho o ferimento. Virou-se então para amulher e com incomensurável auto-satisfação anunciou: pronto, está resolvido. A mulher não compreendeu, por um momento ficou atônita, mas, refeita se pôs de novo a chorar e gritar: O quê?! O quê?! Que brincadeira é esta que o senhor está me aprontando?! O nosso “filosofo” perplexo com tamanha falta de reconhecimento, virou-se em direção à platéia resmungando: ora, que quer mais esta mulher? Já retirei a causa mortis, está tudo resolvido. Ademais, de qualquer modo é preferível deixá-lo morto, em estado de perfeição lógica (formal). A mulher desesperava e gritava em sua tragédia. Ele insistia: Que mais podes querer do que tê-lo em estado de perfeição, conservado em formal?
Agora vejamos se esta historieta exagera em algum pormenor que seja. Sabemos (1) que a linguagem matemática deriva da linguagem corrente pela neutralização ou congelamento de suas propriedades identitárias ou totalizantes – a reflexidade, a historicidade e a contextualidade aberta ou complacência metafórica ilimitada. A que propósito isto poderia servir? O que se visou foi precisamente a “cura” da ambigüidade das linguagens naturais. O preço, apesar de exorbitante, se justificaria topicamente, sempre que não estivesse em jogo o futuro, mas tão apenas a sistematicidade local.
A “filosofia analítica” tem como objetivo a reconstrução da linguagem natural através do reconhecimento da equivocidade da reconstituição de uma contextualidade, mas por um processo finito controlado de construção. Ora, esta recontextualização jamais poderá reconstituir a contextualidade aberta das linguagens naturais. Não é simplesmente extraindo a bala que se irá ressuscitar a vítima.
Originariamente, a filosofia, como desejo dos gregos, é o intento (essencialmente impossível) de capturar o ser (I) na malha (aberta) do logos (D). Os “filósofos analíticos” poderiam aparentemente se valer desta conceituação para se legitimar Com isto, entrementes, estariam como sempre se valendo de seu “método” de descontextualização para provar suas teses. A filosofia grega, além de ser desejo de captura do ser pelo logos, sempre foi, concomitantemente, empenho totalizante que se expressa na proposição basilar: ser e pensar é o mesmo. Assim, todo pensamento grego fica emoldurado por Parmênides e Platão. Para Parmênides, ser e pensar é o mesmo a nível fenomênico (I); para Platâo, ser (idéia) e pensar são o mesmo a nível dialético (I/D).
Mas como opera concretamente a “filosofia analítica”? Sempre do mesmo modo. Escolhe-se uma vítima, isto é uma palavra-vítima;a escolha pode recair, por exemplo, sobre a palavra ser. Isto posto, garimpa-se na imensidade de textos existentes proposições onde a palavra-vítima apareça com um sentido mais ou menos bem definido. Estando a proposição descontextualizada, pode-se então fixar-se um sentido microtextual. No exemplo, a proposição garimpada poderia ser: a flor é amarela. Neste caso é significa “pertencer ao conjunto das coisas com a propriedade ...”
Repete-se a operação. Pode-se, tomar como novo exemplo, a proposição “José é Flamengo”. Fixamos deste modo uma segunda acepção de ser: significa pertence ao conjunto das pessoas que torcem pela vitória de...”. depois, uma terceira, uma quarta e assim por diante.
Aí, sim, chegamos à operação fundamental: simplesmente paramos, dando a impressão para a platéia de que se esgotou o universo de possibilidades. Imediatamente, então, define-se que o sentido da palavra-vítima é a união dos sentidos “unívocos” arrolados. Com isso, todos as demais acepções, não importa o grau de equivocidade a que estejam sujeitas, são radicalmente banidas. Com isso, mata-se a contextualidade que a palavra–vítima. catalisava. Com esta operação, limpa-se a linguagem de quaisquer laivos de sujeira (sexual real) ou garante-se que o capitalismo representa o fim da história.
Luiz Sergio Coelho de Sampaio
Rio de Janeiro, dezembro de 2001
Notas
1. SAMPAIO, L. S. C de. Lógica Ressuscitada – Sete Ensaios, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2000
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