6.4.17

O princípio antrópico


O princípio antrópico nos remete a uma idéia, talvez, tão antiga quanto a própria humanidade: que nós não somos de modo algum uma anomalia acidental, um microcosmos de pequeninas partículas girando nas profundezas sem fim do universo. Muito ao contrário, nós somos misteriosamente conectados ao universo em seu todo, nós estamos nele refletidos, assim como toda a evolução do universo se reflete em nós” Estas são palavras de Vacláv Havel (1), escritor e ex-presidente da República Tcheca (felizes os tchecos!)

Havel adverte sobre nosso tempo: a crise do mundo pós-moderno é aquela dos conflitos culturais de uma periculosidade jamais vista na história. E esclarece: culturas individuais, crescentemente comprimidas umas contra as outras pela civilização contemporânea, estão se defrontando com a premente questão da conservação de sua autonomia e a preservação de suas diferenças. Conclui ele dramaticamente: os conflitos culturais estão aumentando e são obviamente mais perigosos do que em qualquer outro momento da história

Para conjurar tal perigo Havel clama por uma nova transcendência capaz de resgatar a integridade humana perdida e crê encontrar inspiração para tanto na ciência – o que nos inquieta! –, porém, acrescenta que tem em mente uma ciência renovada, imaginativa, tendo como característica essencial a capacidade de superação de seus próprios limites – o que já nos deixa um pouco mais tranqüilos. De qualquer modo, como poderia ser isto logicamente factível?! Ele mesmo tenta uma resposta apontando para o que acredita serem os primeiros sinais da insurgência já deste novo espírito científico; dentre eles, destaca precisamente o princípio antrópico.

Parte ele do sentimento de que o universo é um evento único e possui uma história também única, e mais, que nós constituímos um ponto particular, novamente único, desta história... e o domínio do único já não seria mais a ciência e, sim, a poesia. Portanto, pode vislumbrar no aludido princípio o ponto de encontro do sistema (no seu dizer, formula) com a história (em seu dizer, story), da ciência com o mito. Complementando, diríamos nós, da física (ou cosmologia) com a antropologia. É precisamente por isto que trouxemos aqui o testemunho de Havel - sua profunda intuição do valor filosófico do princípio antrópico.

Mas afinal, que diz o princípio? Vamos lá: a história do universo, do big bang à atualidade – que a ciência já consegue hoje reconstituir em suas grandes linhas – é governada por um pequeno conjunto de equações nas quais aparece sempre um mesmo conjunto também reduzido de constantes universais, como a velocidade da luz no vácuo, a constante gravitacional (aquela mesma da lei newtoniana da gravitação que aprendemos no primeiro grau), a constante de Planck etc. O princípio antrópico emerge da constatação que se forem admitidas modificações ainda que diminutas nos valores destas constantes universais transtornar-se-ia de tal sorte o curso do Universo que se tornaria impossível o advento do homem. Apenas uma ilustração: se a constante gravitacional fosse um pouco menor do que é, o hidrogênio e hélio do universo primitivo ter-se-iam completamente dispersados sem se condensar em nebulosas, estrelas, etc. Pelo contrário, se fosse pouco maior, o universo primordial já teria se precipitado sobre si mesmo formando uma esfera hipercompacta sem vida (uns diriam, um grande buraco negro, o que não vamos aqui discutir). Conclusão: se as constantes universais sempre o foram, constantes e universais, então, desde o big bang, o Universo já guardava em suas potencialidades a matriz do homem. Admitindo-se que só o homem é capaz de conhecer as leis que regem o Universo e suas respectivas constantes, forçando-se um pouco a mão, fecha-se o círculo: este nosso Universo destinava-se, ab initio, ao homem, e o homem a ele.

São geralmente reconhecidas duas interpretações ou versões do princípio: uma versão forte, em que se pressupõe que ocorreu um pré-ajuste intencional dessas constantes, por exemplo, de parte de um Deus que desejava ver por terceiros louvada sua própria obra; uma versão fraca, em que os valores das atuais constantes universais seriam na verdade uma realização totalmente aleatória, de uma única jogada ou uma entre inumeráveis outras já realizadas ou em processo permanente de realização – o nosso mundo atual, o simples produto de flutuação quântica local de um “vácuo imenso” altamente energizado.

O princípio, tanto na sua versão forte, quanto na fraca, sofre o repúdio da maioria dos cientistas. Contra a primeira versão a principal objeção é que se estaria admitindo o retorno da causa final, quando se sabe que a física só se fez de fato ciência quando se ateve apenas à causa eficiente. Ademais argüi-se que, garantido o valor das constantes universais, não se estará automaticamente assegurando o aparecimento do homem. Particularmente, quanto à versão fraca, poder-se-ia até admiti-la, mas como mera tautologia – se estamos aqui é porque isto era de algum modo possível. Em suma o princípio antrópico não seria um verdadeiro princípio científico, mas simples produto de descontrolado impulso especulativo. Nós mesmos acrescentamos que, mais decisiva que as constantes, seria a forma ou estrutura das equações das teorias que governam os fenômenos físicos. Assim sendo, além do “deus ajustador de constantes”, haveríamos que pressupor também um “deus definidor de equações ou formas funcionais”. Se fossem diferentes, dentro da nossa sensibilidade, o ajustador de constantes não seria propriamente um deus, mas apenas um demiurgo delegado e a coisa se complicaria. Como então sair de tal imbróglio?

Embora o princípio tenha se originado no próprio meio científico (2), compreende-se bem o repúdio, às vezes irado, que lhe vota a maioria dos cientistas, na medida em que ele reverte abruptamente uma tendência que vem desde os primórdios da ciência moderna: retirar o homem da posição privilegiada em que fora posto pelo imaginário judaico-cristão e atirá-lo à vala comum do cosmos.

Somos de parecer que o princípio, afora a grandiosidade da intenção, de fato não passou de uma intuição ainda obscura: ele é a simples demarcação de um lugar de encontro que, no entanto, ainda permanece não visitado. Mas então, seria o caso de nos perguntar: porque estaria tal encontro até agora se frustrando?

A nosso ver, o princípio tal como proposto não é reflexo de uma ciência nova e imaginativa, como chegou a acreditar Havel, mas ainda da velha, agora já um pouco mais ardilosa, de pele mudada. A concepção do cosmos ali é integralmente científica, de sorte que o almejado encontro só se pode dar pelo rebaixamento do estatuto lógico do homem, ao de mero objeto científico. Tratar-se-ia do encontro da cosmologia científica com a antropo-logia também científica, onde a logia (lógica) não é nem o antigo e respeitável logos grego, muito menos a lógica de um pensar novo e pleno, mas a lógica formal ou clássica que domina a matemática e esta, por detrás, todo o saber científico.

O que precisamos fazer é justamente o contrário: começar comprometendo-nos com uma nova antropologia filosófica, não redutora da complexidade lógica humana, em decorrência do que o encontro prometido teria que se dar não mais pelo rebaixamento do homem, mas pela elevação do cosmos a um novo estatuto lógico, para além da ciência instituída.

Agora, sim, podemos ter uma boa idéia do tamanho e profundidade da tarefa requerida para alcançarmos aquilo que o princípio apenas anuncia. Necessitamos de uma releitura do cosmos que não seja mera alternativa à ciência, um misticismo fácil e auto- enganoso, um “orientalismo” dançante e superficial, como tanto se vê por aí.. Carecemos, sim, de uma releitura que subsuma a ciência, que ao mesmo tempo a preserve e supere, e ainda bem mais. E este é um pensamento ainda por acontecer. Nem é poético, nem é científico, mas filosófico, contudo, de uma nova estirpe.

A palavra leitura não é aqui uma escolha acidental. Galileu (3) apela para ela com o objetivo de demonstrar às autoridades religiosas católico-romanas que ele não estava a confrontar a Bíblia, mas tão só dedicando-se a uma leitura paralela, valendo-se de uma linguagem alternativa àquela com a qual fora composto o texto sagrado. Argumentava ele que Deus, ao fazer o mundo, se valera justamente da linguagem matemática, e o que sua ciência estava fazendo não era outra coisa senão ler a mesma intenção criadora/construtora expressa numa linguagem de engenheiros. No entanto, não podemos a partir daqui continuar seguindo o astuto Galileu – não é ele o protótipo mesmo do cientista?! –, simplesmente porque dizia uma coisa e fazia outra. Dizia que lia mas na verdade, pela força de seus instrumentos de medida, obrigava as coisas do mundo a confessarem, não o que eram ou almejavam ser e, sim, o que ele queria obter: números, números e mais números. Outras confissões não lhe serviam.

No entanto, podemos asseverar que não está longe o dia em que tomaremos o conjunto dos entes constitutivos da natureza (4) – de um lado, os “tijolos”, representadas por partículas cognominadas fermions, de outro, as forças, representadas por partículas cognominadas bosons – e, sem medir o que quer que seja, as disporemos de uma maneira conveniente, segundo suas propriedades formais. Isto posto, sem dificuldade, faremos delas significantes e seremos capazes de lê-las como se formassem uma mensagem, uma mensagem desde sempre ali inscrita.

Pode-se alegar que sem antes o trabalho da ciência, não teríamos o quer ler. Nada a objetar; em nenhum momento dissemos que poderíamos ter deixado de passar pela Modernidade, pela era da ciência! O que não queremos, é ficar pelo caminho.

Ora, o que diferencia os homens dos outros seres vivos? Não é a biologia – a diferença existe, mas não é muita –, mas a cultura. E o que caracteriza a cultura é a instituição da lei convencional, seja ela a proibição do incesto/obrigatoriedade da exogamia, a gramática, ou, cruamente, o princípio do terceiro excluído que define a lógica formal. Este é o passo necessário – passo intermediário, contudo – para se chegar à comunidade dos homens, ao discurso ou à lógica do pensar humano em sua plenitude. Isto posto, já podemos ter a certeza de que, o que se deverá ler nas partículas devidamente arrumadas, é a própria estrutura da lógica humana.

Em suma, iremos constatar que as partículas elementares, apenas e por si só lidas, revelam o código genético do espírito humano. Os genes propriamente ditos, ingênuos, se acreditam egoístas, sem saberem que estão deveras a serviço da reprodução do espírito, não de um espirito dialético trinitário hegeliano, mas de um espírito pleno hiperdialético qüinqüitário...ou penta, se quisermos (5).

Rio de janeiro, 19 de setembro de 2002


NOTAS

1. HAVEL., Vacláv. The Need for Transcendence in the Postmdern World in The Futurist, July-August, 1995.

2. O princípio foi inicialmente proposto pelo astrofísico Brandon Carter, em1974.

3. A idéia de que, de algum modo, se possa "ler" a natureza não é nova. A expressão "livro da natureza" começa a ser encontrada já em autores medievais - Alain de Lille, Nicolau de Cusa, Paracelso - e depois, naqueles que poderíamos chamar co-fundadores da ciência moderna - Tycho-Brahe, Boyle, Kepler. Entretanto, a questão da possibilidade de uma leitura da natureza alcança sua máxima importância histórica com Galileu na medida em que este vai dela lançar mão em sua longa e penosa controvérsia com a hierarquia católica.

4. O elenco das partículas elementares, férmions e bósons, já estão identificados e relativamente “arrumados” dentro do que se denomina modelo padrão. Para que se possa chegar a um modelo lógico ainda mais consistente necessita-se tão apenas a reconceituação da noção de força que as torne um conjunto deveras simétrico e que os quarks venham ser considerados entes de razão, produto de estruturas realmente físicas subjacentes.

5. Para saber mais sobre o princípio antrópico indicamos BORROW, J. D. and TIPLER, F. J. The anthropic cosmological principle, Oxford, Osford U. P. , 1988, DEMARET, J. et LAMBERT, D. Le principe anthopique - L’Homme est-il le centre de l’Univers? Paris, A. Colin, 1994 e SAMPAIO, L. S. C. de Lógica ressuscitada – Sete ensaios, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2000

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