A Modernidade, a princípio, pareceu preservar a concepção cristã: em Descartes, o homem se estruturava ainda como misto de corpo e alma, concomitantemente res extensa e res cogitans.
Havia, entretanto, a circunstância de se tratar agora de uma res extensa submetida aos poderes de uma geometria métrica, portanto sob o império da lógica da clássica ou formal, enquanto que a res cogitans se constituía como lógico-identitária, auto-transparência, pura reflexividade. Em suma, o homem cartesiano não podia ser mais concebido como um ser lógico-trinitário; sua “espessura” lógica se ampliara fazendo explodir a estreiteza referencial da dialética cristã. É exatamente por isso que Descartes, apesar de ainda carregar tantos vezos medievais, acabou considerado, com plena justiça e de modo quase unânime, o primeiro filósofo da Modernidade.
Instalada irreversivelmente a Modernidade, a ciência lançava-se à tarefa de homogeneização de todas as coisas, demolindo as tradicionais diferenças entre o nada e a matéria, o inorgânico e o orgânico, o macro-molecular e o vivo, enfim, entre o animal e o homem. O Iluminismo continental dos séculos XVII e XVIII, provocado pelo ciclo dos grandes “descobrimentos” e colonizações é levado ao reconhecimento do outro (cultural) como um igual, mas não altera o estatuto lógico-transcendental do ser próprio de todos os homens (a especificidade humana não estava mais na alma-substantiva, mas na liberdade-operativa, porém, ambas se mantinham idênticas em seu estatuto lógico, no caso, lógico-transcendental).
Chegamos então à teoria da evolução de Darwin (que hoje, por retroação, se pode conceber como uma espécie de neo-liberalismo antropológico), que, como é próprio de todo cientificismo, busca estabelecer a continuidade (ou a indiferença) entre natureza e cultura: o primitivo era um macaco evoluído e um latino, naturalmente, uma espécie de anglo-saxão retardado e muitos degraus abaixo, nas proximidades ainda do macaco, estávamos nos, brasileiros miscigenados (aliás como, no fundo da alma, europeus, argentinos e a “elite” brasileira no poder continuam firmemente a crer até hoje).
Surge então a antropologia funcionalista, uma nova maneira de fazer prosperar o cientificismo antropológico sem os inconvenientes do etnocentrismo desabusado e ostensivo do evolucionismo cultural darwinista. Em nada surpreende que deixassem de lado exatamente a problemática existencial e histórica da cultura.
Paralelamente, desenvolvia-se o marxismo, a que devemos o primeiro passo efetivo para a re-fundação da antropologia moderna, na medida em que ele rompe abertamente com o inconsistente transcendentalismo cristão, interpondo entre o animal superior e o homem, não mais a alma ou algo equivalente, como a liberdade, mas o trabalho.
A essência lógica do trabalho é a diferença, pois trabalho é precisamente o esforço que visa outra coisa que ele próprio. Com isso começava de fato uma nova era na antropologia, posto que assim rompia-se com a concepção cristã que via na passagem do animal ao homem a intervenção de algo da ordem da identidade. O marxismo entretanto não pode ir muito mais longe em razão de que, herdeiro da dialética hegeliana, não possuía a “espessura lógica” suficiente para acomodar (ou poder compreender) a lógica clássica ou formal, agora matematizada, ou seja, a lógica da ciência que à época já se apresentava como o traço fundamental da Modernidade.
Voltando à tradição propriamente antropológica acadêmica, já no início do século XX, deparamo-nos, agora sim, com a figura de Lévy-Bruhl. Com ele um grande passo é dado em direção de uma nova antropologia. Além de pugnar por um posicionamento mais “empático” do antropólogo em relação às cultura primitivas que estudava, ele renova radicalmente a indagação antropológica: ao invés de perguntar como fizeram os jesuítas, se os primitivos tinham alma, pergunta se eles tinham lógica (clássica). É evidente, no caso, que a pergunta por si valia imensamente mais do que a resposta que se lhe viesse dar, razão pela qual ele pode ser com justiça considerado um dos fundadores da antropologia moderna.
Perdoe-nos o leitor uma digressão relativamente longa acerca das origens da noção de pré-lógico em Lévy-Bruhl. Quando este faz uso desta expressão para caracterizar o pensamento dos povos primitivos, não o faz no sentido de que estes fossem destituídos de lógica (o que seria mesmo um absurdo, pois destituído de lógica é sinônimo de destituído de pensamento), mas como usuários de uma outra lógica, lógica que diferiria (o que não quer dizer que se opusesse ou negasse) da lógica formal hegemônica do Ocidente; tratava-se de uma lógica onde sentimentos e emoções ainda tinham um grande peso no processo de produção da “verdade inferida”. Esta concepção remontava, pelo menos, a Théodule Ribot (psicólogo francês conhecedor e apreciador sob muitos aspectos da psicanálise freudiana, que afirmava a prevalência, entre os povos primitivos, de um pensar por analogias e proximidades significativamente carregado de sentimentos e emoções. Logique des sentiments é mesmo o título de sua principal obra).
Esta noção de pensamento pré-lógico em Lévy-Bruhl aqui no Brasil originou uma predisposição cheia de veneno e má fé, pois é justamente ela que tem servido de pretexto para desmerecer a obra de um dos mais importantes estudiosos da formação da cultura brasileira – Arthur Ramos –, que, sabemos, é um declarado admirador da obra de Lévy-Bruhl e bem informado sobre suas fontes, particularmente, sobre a logique du sentiment de Ribot. Em suma, é inquestionavelmente óbvio que o termo pré-lógico em Arthur Ramos, tanto quanto em Lévy-Bruhl e Ribot, não quer dizer destituído de lógica, mas sujeito à lógica do sentimento. Pasmem: lendo o livro de Ribot, facilmente identificamos sua lógica como aquela dos processos primários freudianos, bastante próxima pois da ulterior lógica lacaniana do significante.
O principal mérito de Lévy-Bruhl, afirmávamos, foi trazer novamente a questão da cultura para o âmbito da lógica tal como ela fora posta originalmente pelos gregos.
Eis que na segunda metade do século XX emerge a antropologia estrutural inspirada, de um lado, em Rousseau e no materialismo dialético marxista (anti-transcendental), de outro lado, na lingüística sincrônica de Saussure, na fonologia diferencial de Jackobson e sobretudo na teoria do inconsciente de Freud. Nestes três últimos casos há de comum o abandono da indagação pela origem ou pelo ser (como vir-a-ser) para se tomar como “objeto” próprio do saber a diferença já instaurada. Em suma, assume-se que em qualquer circunstância, o verdadeiro objeto científico é o ser-sincrônico e não o especulativo vir-a-ser-diacrônico – uma reação, ainda que bem tardia, ao “totalitarismo” hegeliano!
No âmbito da cultura, busca-se então a diferença humana já universalmente operante que vai ser identificada como a diferença clânica, pré-condição da instituição do que seria a lei convencional por excelência: a lei de proibição do incesto, contra face da obrigatoriedade da exogamia. Com isto instituía-se a circulação das mulheres entre os homens reunidos em clãs. A troca das mulheres entre homens assim sub-agrupados se constituía no paradigma de todas as demais trocas e por conseqüência da solidariedade social. Com isso, retornava-se em definitivo a um dos aspectos fundamentais da concepção grega: a passagem do animal ao homem devia-se a um poder diferencial e não identitário, bem ao contrário do que nos queria fazer acreditar o cristianismo doutrinário.
Entrementes, emerge aqui uma importante novidade: é que tal diferença não mais valia por si, mas vinha para se articular à diferença sexual animal bi-polar macho/fêmea. Como conseqüência imediata, a sexualidade humana se via compelida à redefinição, agora, no quadro mais amplo de uma estrutura lógica quadripolar, ou seja, deixava a simples pela dupla diferença. Ver figura 1.
Figura 1 - A diferença clânica no estruturalismo
Como é bem sabido, a importante contribuição lacaniana à compreensão da sexualidade humana tem como antecedente o estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss e isto só pode ser devidamente compreendido e apreciado se, justamente, levarmos em conta que tal aproximação tem como pano de fundo a lógica. Não é pois mero acaso que a “sexuação” humana em Lacan viesse encontrar sua melhor expressão nos famigerados matemas, na verdade, expressões não apenas de fisionomia mas, sobretudo, de essência realmente lógicas.
Devemos aqui abrir um parêntese. Alguém, familiarizado com a doutrina estruturalista, poderia estranhar nossa insistência na necessidade e mais ainda na suficiência da dupla diferença para a caracterização daquilo que é essencial e propriamente humano. Porém, no simples átomo do parentesco não estariam implicadas tão apenas duas mas, de fato, três relações fundamentais – aliança, consangüinidade e filiação? Não é muito difícil demonstrar que a dupla diferença é o bastante para a definição das referidas relações, que estas não são relações isoladas, mas muito bem articuladas entre si. A dupla diferença, por exemplo, pode ser representada por um quadrado, uma diferença ilustrando o par em cima (a)/em baixo (b) e a outra, o par esquerda (c)/direita (d). Agora fica evidente que podemos formar um terceiro par com os termos diagonais do quadrado (e/f). Como as três relações são equivalentes (ou quase), podemos redesenhar o quadrado tomando quaisquer duas relações para formar os lados do quadrado, ficando a terceira automaticamente definida pelas duas diagonais. Ver figura.4.
Figura 3.4 - Duas diferenças e três relações
Voltando à nossa linha de raciocínio, diríamos que, sem dúvida, o estruturalismo representa um grande avanço em relação ao pensamento antropológico grego, pena, entretanto, que viesse acompanhado de dois outros grandes retrocessos.
O primeiro deles, refere-se ao “logicismo” grego: no estruturalismo, tanto a diferença sexual de partida quanto a segunda diferença clânica valem por si, são “substanciais” e não apenas realizações de uma matriz essencialmente formal, em que pese a denominação geral de estruturalismo antropológico dado a esta corrente de pensamento. Queremos dizer que, por mais significativo que seja o “modelo sexual”, ele é tão apenas uma realização possível de um esquema lógico, que pode também realizar-se sob outros aspectos, como deveras o faz (27). Para ficarmos apenas num exemplo: a passagem da capacidade de operação simbólica dos animais superiores à capacidade simbólico-discursiva – proposicional no dizer de Cassirer – do homem exige igualmente a introdução de uma segunda diferença. De fato, a gramática é uma estrutura legal convencional necessariamente sujeita à lógica da dupla diferença. A lei da proibição do incesto é, formalmente, uma gramática; são ambas leis societárias convencionais.
O segundo retrocesso em relação aos gregos refere-se ao “esquecimento” do caráter lógico-identitário dos animais superiores, especificamente dos cordados, que está presente mesmo no registro sexual. Podemos considerar macho/fêmea como realizações de uma diferença, pensá-la apenas no âmbito da res extensa. Entretanto, isto não passa de uma simplificação, pois o animal superior, mesmo já biologicamente marcado, identifica-se ou assume sua determinação sexual: ele não é apenas macho; ele é macho que se assume macho, o mesmo se dando com a fêmea.
Passando-se do registro sexual ao simbólico, percebe-se isso ainda com maior clareza, pois é inegável o poder de simbolização arbitrária dos animais superiores, ou seja, sua capacidade de operar dialeticamente. Ao mesmo tempo, facilmente constatamos sua radical incapacidade em relação à articulação gramatical. Negar isto é não conseguir distinguir a enorme diferença entre os pares porca/porco e porca/parafuso.
Voltando aos gregos, poderíamos agora aceitar que o logos constituísse a diferença especificamente humana, porém, na condição dele vir para se compor com poderes e potencialidades operatórias animais similares pré-existentes e de certo modo re-produzi-las em nível operatório superior. Com efeito, o logos estaria assim ampliando a capacidade lógico-analítica dos seres vivos, a rigor, “duplicando-a” ou reiterando-a, e fazendo-o sem prejuízo do seu ser sintético. Identifique-se o logos com a razão (a)colhedora heideggeriana e/ou, já a posteriori articulada, como razão formal aristotélica, o fato é que, habitado pelo logos, o homem se capacita a operar a nível duplamente lógico diferencial (racionalmente). Em compensação, teríamos que recuperar o que o estruturalismo desaprendeu dos gregos. Do ponto de vista instrumental ou objetivamente operatório o homem é sem dúvida ser racional, porém, existencial ou subjetivamente, no concomitante exercício de sua capacidade lógico-identitária herdada da animalidade superior, seu estatuto lógico global tem que ser, na verdade, lógico-qüinqüitário ou hiperdialético.
Para nós, portanto, bastaria dizer que o animal superior (cordados) opera a nível lógico dialético trinitário e o homem a nível lógico hiperdialético qüinqüitário (ver figura 5). A diferença clânica, que permite a definição de regras de proibição de incesto paralelamente à imposição da exogamia, seria um dentre muitos modos possíveis de manifestação privilegiado, é verdade daquela produção “genea-lógica”.
Não é de admirar que culturas identitárias (judaico-critãs) atribuam à intervenção de uma identidade como sendo a razão de passagem da animalidade ao homem, da natureza à cultura. Do mesmo modo as culturas lógico diferenciais (neolítica pagã, grega e moderna) atribuirão aquela passagem a uma diferença. Incoerente seria que o fizessem ao contrário ou mesmo indiferentemente!
Figura 5 – O homem lógico-qúinqüitário
Seria interessante compararmos agora a antropologia aristotélica, nossa referência de partida, com aquela de chegada, que poderíamos denominar pós-estruturalista (concepção estruturalista à qual restituímos a identidade perdida). Ver figura 6. Em princípio, pareceria que a segunda é um simples complemento da primeira: conceber, como Aristóteles, o homem como síntese de I e D/D é de certo modo assumir um parti-pris machista (31); concebê-lo como síntese de I/D e D não seria assumir um parti-pris complementar feminista?!
Figura 3.6 – Concepções masculina e feminina
Parece-nos que não. Existiria, aqui uma simetria, sim, no entanto, apenas superficial. A nossa concepção é definitivamente não-machista; pressupõe deveras uma certa sensibilidade para o ser-feminino, mas a ela não se reduz. Não rebaixamos a lógica do animal de I/D para I, não perdemos a precisão lógica da diferença que faz a diferença animal/homem e tornamos bem mais compreensível a incomensurável força do logos no homem, que é, concomitantemente, logos de certo modo herdado e logos ao quadrado. Voltaremos ao assunto um pouco mais adiante, inclusive com ajuda da figura 7.
Gostaríamos ainda de chamar a atenção para o fato que o esclarecimento da relação lógica versus cultura provoca uma reviravolta da velha querela acerca das relações entre natureza e cultura.
A prestigiosa razão suficiente leibniziana que busca responder à questão ontológica (no caso: porque existe a cultura e não tão apenas nada de cultura, ou seja, natureza?) (32), ganha então uma resposta bem precisa: a passagem da natureza representada pelos animais superiores dotados de sistema nervoso central (os cordados), capazes portanto de operar com símbolos convencionais à cultura se fez pela invenção/incorporação de uma segunda diferença , em termos antropológicos, a diferença clânica. Ora, fica por aí evidente quão equivocado é o costume corrente de contrapor natureza e cultura de maneira meramente especular. Natureza e cultura se opõem, sim, mas como termos de uma seqüência, logo, guardando um iniludível relacionamento hierárquico.
A seqüência começa com o ser, de estofo lógico transcendental, segue com a natureza, de estofo lógico dialética e chega à cultura, de estofo lógico-qüinqüitário. E, pelo menos do ponto de vista especulativo, ela permanece, uma seqüência aberta, como mostra a figura 7. Esta abertura é essencial para que o homem possa se posicionar de fato no ápice da escala dos entes mundanos, sem, entretanto, por isto se tomar por Absoluto. A religiosidade, como pergunta pelo Absoluto, pode então permanecer como ainda legítima. E escapamos também assim dos humanismos de qualquer espécie.
É importante notar que o estatuto dialético da natureza só é alcançado ao nível dos animais cordados capazes de operar com símbolos convencionais. A natureza enquanto mundo físico, na verdade não passaria do estatuto lógico diferencial (res extensa). Ela só nos parece de nível superior por efeito da atividade humana de mensuração, ou seja, de fazê-la geométrica.
Figura 3.7 – Natureza versus cultura
Concluiríamos afirmando que não há como pensar a filosofia da cultura, ou seja, a “diferença” ontológica homem/natureza ou cultura/natureza sem o concurso da lógica, ou seja, sem que se pense porque se pôde deveras chegar a pensar nisso.
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