6.4.17

Do homem grego ao homem cristão

De modo geral, entre os antropólogos da atualidade, o tema lógica versus cultura vem imediatamente referenciado a Lévy-Bruhl e à sua tese da prevalência, entre os povos primitivos, de um pensamento ainda pré-lógico, participativo, eivado de sentimentos, trespassado pela emoção, contrastando com o pensamento propriamente lógico acabado, adstrito à pura forma, dos povos modernos. A tese teria sido mesmo abandonada pelo próprio autor, mas de qualquer modo contestada pela antropologia estrutural de Lévi-Strauss. Segundo esta última, nenhuma diferença haveria entre a lógica dos povos primitivos e aquela dos povos modernos. A diferença aparente dos desempenhos discursivos de uns e outros estaria na constância com que os primitivos se valem do processo de bricolage (1) simbólica, e não propriamente na lógica. Opinamos que isto deva ser repensado em profundidade, primeiro, porque não aceitarmos esta tácita separação drástica entre o lógico e o simbólico (simplesmente porque existe a questão do estatuto lógico do próprio simbólico); segundo, porque parece-nos estar ali também implícita uma concepção restrita, e no entanto paradoxalmente imprecisa, do que seria a lógica, diga-se de passagem, bem em moda, mas em flagrante desacordo com o melhor da tradição filosófica.

No Brasil – não nos deve causar espanto –, vige esta mesma referenciação, apenas com a agravante da rigidez própria dos copistas e dos pobres de espírito.

Nosso objetivo aqui é voltar à questão para discuti-la num âmbito maior e certamente mais apropriado, aquele do pensamento filosófico estrito senso, o que, naturalmente, nos irá remeter à velha Grécia. Paralelamente estaremos superiormente armados com uma renovada concepção da lógica que resgata não apenas a riqueza da tradição, como também sua marginália histórica, tudo isto convergindo para a demarcação precisa e o completo re-mapeamento do território lógico. A reabertura da questão lógica versus cultura ou, agora dito com bem maior cuidado, lógica ressuscitada versus cultura não é aqui, pois, um mero oportuno acadêmico; ela se faz necessária em razão de que, já o demonstramos alhures, no cerne da filosofia da cultura (ou o que para nós é o mesmo, da antropologia filosófica) estaria precisamente a questão da mutação lógica que levou ao advento da cultura, a mesma lógica que, destarte, depois a acompanha e lhe marca passo.

Comecemos tomando como referência um esquema de compreensão evolutivo do ser humano, cujas origens certamente se perdem nos tempos. Parte-se da natureza  representada pelo animalidade em seu estado de máximo desenvolvimento , a qual se vem juntar uma diferença específica, levando então à emergência do homem e consequentemente da cultura. Entre os gregos este esquema bastante simples já vigorava de um modo preciso: o ponto de partida era então a animalidade superior à qual se agregava como diferença específica o logos ou a razão discursiva e chegava-se assim ao homem, animal racional.

Segundo Aristóteles, a animalidade superior incorporava não apenas as funções vegetativas – de nutrição e de reprodução – como também as funções sensitivas – compreendendo os diversos modos sensoriais, a que se acrescia a autonomia locomotora. Observe-se que o poder de por si e propositadamente movimentar-se é, do ponto de vista formal, um poder de auto-determinação, logo, de evidente caráter lógico-transcendental ou identitário.

O ser humano, além destas, detinha a mais e com exclusividade a função intelectiva, a posse da razão discursiva (logos). O homem era pois o animal superior onde ademais habitava o logos.

Pode-se argumentar, como provavelmente o faria Heidegger, que o logos aristotélico não era mais o logos heraclítico, o logos originário, ainda não degenerado em lógica, não importa se transcendental, dialético ou formal, sendo este último, precisamente, o modo como ele acabaria se mostrando, já sem seu maior vigor, no próprio Aristóteles. Na circunstância, entretanto, isto pouco pesa, pois opte-se por uma ou por outra interpretação, fica o fato que, para os gregos, o que fazia ser a humanidade era algo de natureza essencialmente lógica, mais precisamente, lógico-diferencial ou analítica, conquanto, sejamos obrigados – depois de Heidegger – a deixar em aberto a questão do logos considerado: se o simples lógico-diferencial (Heráclito) ou se o logos degenerado feito lógica formal (Aristóteles).

Do nosso ponto de vista, a principal crítica à concepção grega do homem deve incidir sobre o caráter tipicamente agregativo/substantivo dado à razão (ou logos), no sentido de que ela ali funciona como uma “essência” constitutiva e não como um atributo superveniente. Dito em outras palavras: a razão grega valia por si e não como produto resultante de um poder diferencial que se vinha articular a outros poderes ou potencialidades operatórias similares pré-existentes, para desta sorte ampliá-las ou multiplicá-las. Isto interpõe um degrau exagerado de descontinuidade entre o animal e o homem, inconveniente que viria ser justamente contornado, veremos, pelo moderno estruturalismo antropológico.

O essencialismo grego suscita, de fato, duas sérias objeções. Primeiro, porque ao admiti-lo estamos implicitamente diluindo o caráter evolutivo da passagem considerada – o novo, por si só, é e diz tudo. Segundo, porque a “razão”, como capacidade analítica que realmente é, não pode caracterizar o ser humano em sua totalidade ou “maximalidade”, mormente quando já se tem por estabelecido que os animais superiores dispõem de uma capacidade sintética ou identitária inquestionavelmente manifesta em sua auto-determinação locomotriz, tal como anteriormente assinalado. A nosso ver a diferença especificamente humana não pode valer pelo que traz em si, mas sim pelo que, articulando-se, potencializa e/ou amplia. É relativa e não substancial.

Em termos estritamente lógicos, dir-se-ia que para os gregos, sendo o animal superior pelo menos lógico-transcendental e a razão pelo menos lógico-diferencial, o ser humano teria que ser pelo menos lógico-dialético. Foi precisamente a esta conclusão que chegou Platão – é verdade que por motivações e caminhos outros –, como se lê em seu diálogo Parmênides. A propósito, o parecer nietzscheano e reiterado por Heidegger que Platão teria traído o espírito filosófico grego é uma acusação completamente descabida, pois a dialética (própria e apta a pensar a idéia ou o conceito) era algo inerente ao próprio destino do pensamento grego, algo que a ele em algum momento se desvelaria decretando – tem-se até o direito de lamentá-lo! – a sua própria superação. Com Platão chegava-se, de fato, ao termo de uma etapa da história do pensamento (e, no caso, também da história da cultura), o que acontecia não por força de uma infidelidade ou de uma traição, mas pela inexorável exigência (lógica) da história (hiperdialética) em seu processo de auto-realização.

O cristianismo trinitário, que se confunde com o pensar da identidade recuperada para além da diferença, portanto lógico-dialético, recusou a essência evolutiva do esquema grego e assumiu, como reza o Gênesis, um criacionismo paralelo de todos os entes, embora conferindo uma especial dignidade ao homem, pelo atributo da semelhança ao Criador, referendado pela posição última na ordem da Criação. Entrementes, ainda que entendida metaforicamente, a criação do homem a partir do barro (natureza ou apenas res extensa) preserva, sob o aspecto formal, o esquema compreensivo que vimos tomando por referência, no entanto, pervertendo-o do ponto de vista lógico. De um lado, parte-se da matéria inerte ou da animalidade bruta ou carnal, res extensa; de outro lado, atribui-se um caráter puramente identitário à diferença que fez ser o homem, ou seja, àquilo que concretiza a passagem da natureza à cultura. Seguindo seu antecedente judaico, o cristianismo realiza a proeza de transformar a diferença que fazia a grande diferença numa identidade. Assim, a passagem do animal ao homem não se devia mais, como para os gregos, a algo de ordem lógico-diferencial, mas sim de ordem lógico-identitária  sopro, pura consciência, consciência moral, liberdade, alma, livre arbítrio, espírito (mesmo que decaído) etc. Ao cabo, o homem passava a ser concebido como um misto heteróclito de corpo (natureza, matéria perecível, lógico-diferencial) e alma (imaterial e eterna, lógico-transcendental).

Aliás, tudo isto era sem dúvida o que poderia haver de mais coerente com o estatuto lógico-dialético-trinitário da cultura cristã – a dignidade do homem se devia à interveniência da alma, pertencente à mesma família lógica (lógico-transcendental) a que pertencia o próprio ser divino. Só assim se justificava a semelhança do homem ao seu Criador. No entretanto, isto significava um evidente retrocesso relativamente ao que haviam pensado os gregos. Como se vê, conservavam o mesmo esquema conceitual dos gregos, porém com a completa inversão das lógicas em jogo: aquela de partida era agora diferencial e a nova, interveniente, transcendental ou identitária.

O mais espantoso nisto tudo é que o pensamento antropológico cristão não se apercebia da absurdidade da inversão, que negando consciência ou capacidade lógico-sintética aos animais superiores abria uma brecha para que daí a pouco os interesses coloniais levantassem também duvidas quantos à humanidade dos não europeus cristãos, em particular, de muçulmanos e judeus, depois, de índios e negros africanos. E isto, sabemos todos, infelizmente, acabou mesmo acontecendo


NOTAS

1. Bricolage: em geral, técnica oportunística de construção de novos objetos a partir do reaproveitamento de velhos objetos, de suas partes, até de seus caco ou pedaços. No caso, o termo está sendo transposto par o terreno simbólico e o reaproveitamento é fundamentalmente o de partes de estruturas conceituais já usadas em outros contextos.

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