Queimar navios, dinamitar pontes, para quem vai primeiro,
é ato de coragem, prova de grande fé e ainda maior zelo;
mas, para quem vai onde comanda o amo, sem voz, sem vez,
fazê-lo, é prova inconteste da mais rematada estupidez.
Nas grandes empresas de telecomunicações, na época em que a garantia da continuidade dos serviços era matéria de honra e interesse nacional - e acreditamos que também em muitas outras empresas de serviços públicos assim também o fosse -, sempre existiram planos paralelos ao planejamento tradicional, os chamados planos de contingência, cuja referenciação não se dava a prazos determinados, curto, médio ou longo, mas a eventuais situações de emergências provocadas por acidentes e catástrofes, naturais ou provocadas, plausíveis ou delirantes. O que pretendemos mostrar aqui é que este conceito, que não se tem porque ignorar, precisa ser repensado. Depois da re-engenharia, da re-administração, por que não o re-planejamento para se poder precavida e inteligentemente fazer face à era da incerteza, da incerteza global, acrescentaríamos nós?
Preliminarmente, seria de grande importância que melhor compreendêssemos de onde vem este sentimento geral de crescente incerteza. Muitos estudiosos da atualidade social, quando buscam algo mais profundo para caracterizá-la, vão se referir à noção de eterno presente. É o caso, entre outros, de Guy Debord, figura chave do movimento de 68 na França. Estaríamos vivendo uma época sem passado (esta afirmação está em tudo que é discurso de autoridade para desmoralizar as resistências ancoradas nas realizações e culto dos antepassados) e igualmente sem futuro (este é, por exemplo, o discurso do já famoso senhor Fukuyama, anunciando o fim da História). Vigoraria assim, hoje, um presente permanente, presentes que se emendam uns aos outros por meio do cálculo. Neste tempo sem fissuras, não haveria a menor possibilidade da emergência do contingente; as velhas contradições teriam sido abolidas e em seu lugar são viáveis apenas negociações nos limites da racionalidade dos mercados; não há mais história.
Embora trate-se de uma ideologia - ideologia da era do fim das ideologias - o “presentismo” tem de fato fundamento. A comunicação quase instantânea e global, a multimídia integrando todos os modos informativos, a generalização do just in time e dos sistemas on line, a questão da cidadania cada vez mais se restringindo à condição de estar ou não plugado, tudo isto vem no sentido da erradicação dos tempos de reflexão por intermédio dos quais se podia revivenciar o passado e inventar o futuro. Sem este tempo íntimo, de impossível medida, o próprio tempo público mensurável definha reduzido a uma seqüência contábil de quadros-espetáculos. Não há mais a morte, porque astutamente antes matamos a vida. O “presentismo” refere-se a um fenômeno verdadeiramente palpável e só o temos por ideologia na medida em que ele se faz passar por inexorável e definitivo.
Outra onda ideológica da moda é o “clientismo”. Tudo pelo cliente! O cliente deve ser o único determinante das ações empresariais, e isto estaria valendo também para as nações e para os indivíduos; ele é nosso norte, nossa grande e única razão de ser. Mas, governados todos tão apenas pela vontade do outro, o conjunto torna-se completamente indeterminado, sem que se possa descortinar qualquer destinação. Isto vem contrariar uma sabedoria milenar, mas também um rigoroso teorema matemático. É por isso que não se deve apenas amar o outro e, sim, amar o outro como a si próprio. Um mundo em que só houvessem santos, não demoraria a se ver à beira do abismo. Isto, veja-se, em se tratando de amor; imaginem se invés de amor, o caso fosse vender e comprar em clima de total competividade?! Ademais, quem é suficientemente nulo a esquerda para acreditar neste tipo de discurso?!
Agregando-se o “clientismo” ao “presentismo” e, ainda mais, a globalização da produção, a expansão do comércio mundial em taxas mais do que proporcionais às do crescimento da produção e, por cima, taxas de acumulação financeira acima de tudo mais, está se fazendo do processo do mundo algo completamente instável e imprevisível. Combinando-se tudo isso com uma taxa de crescimento da economia mundial persistentemente declinante desde os anos 60 à atualidade, não se pode ter qualquer dúvida acerca do que está porvir, mas que não conseguimos ver porque preventivamente abolimos o futuro. Como há bastante tempo advertiu-nos Galbraith, ingressamos na era da incerteza, da incerteza globaizada acoplada a cegueira total.
Diante desta transformação tão radical da noção de temporalidade, como ficam nossos processos de planejamento, quase sempre referidos a um ou mais horizontes temporais determinados? Curto, médio e longo prazos são termos correntes para caracterizar o horizonte temporal do planejamento - curto (1 a 3 anos), médio (5 a 10 anos) e longo (20 a 25 anos). Se ingressamos na era, do “presentismo” como proclama a ideologia única, se há apenas presente, para que discriminar prazos maiores e menores? Que sentido ainda podem ter aqueles prazos e os correspondentes tipos de planejamento?
Dado o fenômeno do presente permanente, o mundo está cada vez mais imprevisível para seja lá qual for o prazo determinado que tivermos em vista. Entrementes, estes presentes emendados uns nos outros, não fazem a eternidade, de sorte que, embora não se possa ter a menor idéia de quando, a inexorável emergência do contingente irá chegar. Estamos diante de algo bastante semelhante ao que é descrito pelo princípio da incerteza da microfísica moderna: se fixamos um tempo, não importa quanto, nada saberemos sobre o que nele acontecerá; se fixamos o que, nada podemos saber quanto ao tempo que isto chegará. De certo modo, as coisas sempre foram assim, apenas estamos vivendo esta tensão levada aos extremos. A grande questão hoje é como enfrentar, na prática do planejamento empresarial, esta angustiante situação?
De fato, a discriminação de planejamentos de curto, médio e longo prazo deixou de ter qualquer serventia. Podemos hoje adotar apenas um prazo, mais ou menos igual ao prazo médio de maturação do investimento tipo da empresa, com prazos semestrais de revisão. Mas podemos fazer algo mais, e agora adquirem todo o seu peso as observações aparentemente acidentais que fizemos ao início deste artigo. Podemos retomá-la à medida do momento presente, justamente caracterizado como era da incerteza. Não parece óbvio? Se cresce a incertezas, menos planilhas de cálculos e mais planos de contingência!
Ao invés de apenas planos de curto (operacionais), médio e longo prazos, as empresas - isto vale também para nações e mesmo indivíduos - devem ter, doravante, dois tipos básicos de planejamento : um planejamentos de prazo determinado e um planejamento contingencial, para fazer face a acidentes e catástrofes. De fato, a despercebida discriminação possível(calculável) /contingente(não calculável) passa hoje a ter um grande valor como preliminar conceitual para o planejamento.
Embora, como vimos, os velhos planos de contingência e o novo planejamento contingencial possuam um fundamento lógico comum - a lógica do contingente, sem a qual torna-se impensável a história -, eles apresentam especificidades que caberia aqui destacar:
a) Os planos de contingência eram limitados, em geral diversos planos, um para cada ponto crítico do sistema de produção ou fornecimento de serviços. Agora não, o planejamento contingencial precisa ser de âmbito geral e integrado para toda a empresa pois as hipóteses catastróficas agora consideradas, não são mais locais, mas globais;
Os planos de contingência visavam neutralizar ou minimizar os efeitos de acidente ou catástrofe e o mais rápido possível, a voltar à rotina; o novo planejamento contingencial visa não só neutralizar, porém, fundamentalmete inverter posições de desvantagens, pois o acidente ou catástrofe muito provavelmente estará atingindo a muitos, em especial, aos nossos maiores competidores. Pode-se muito bem pensar assim, sem grade carga culposa, porque, possivelmente, eles mesmos é que as teriam provocado, embora não intencionalmente ;
c) Havia sempre alguma coisa do plano de contingência sendo previamente feito, como a multiplicação de vias ou processos (em telecomunicações, em geral, 3 vias alternativas de transmissão), duplicação de equipamentos críticos, investimentos em equipamentos de segurança, treinamento para situações emergenciais, todo isso, contudo, a ser mobilizado por curto tempo, contando-se com o mais breve retorno à normalidade. Para o novo planejamento contingencial deve-se pensar em modos operacionais permanentes e substitutivos.
No novo planejamento contingencial muito mais coisas devem ser feitas por antecipação, em especial, nas áreas de formação de recursos humanos, ciência, tecnologia e marketing. A justificação para as três primeiras, é mais ou menos óbvia, entretanto, por que marketing? Porque esta é a área que deverá ser a mais atingida numa ocorrência catastrófica, em razão de seus vínculos viscerais com o inconsciente e com a cultura, vínculos estes que terão que ser alvo de transformações radicais. Para um melhor entendimento deste problema, vale a pena dar uma vista de olhos em nosso artigo no número anterior de DECIDIR, acerca dos métodos, em particular do denominado método hermenêutico.
Antes de concluir, vale a pena darmos uma palavra sobre modelos econômicos e empresariais. A maioria dos modelos econométricos de hoje são modelos de ajustamento pela média, vale dizer, em que se procede a adequação do formal à realidade ajustando-o ao passado real estatisticamente. Os modelos adequados para servirem de ferramenta ao planejamento contingencial devem ser modelos que colem perfeitamente ao dados reais passados e as diferenças englobadas em variáveis completamente aleatórias. Também devem ser modelos não lineares ou de saturação ao invés de médias. Estes modelos podem muito bem antecipar rupturas estruturais. A previsão das características da estrutura emergente tem que ficar por conta de outro modelo de maior generalidade, onde certamente os aspectos culturais ganham maior peso.
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