A importância do conhecimento como um dos principais fatores para o desenvolvimento e mesmo para a garantia de sobrevivência das empresas não é mais, na atualidade, questão que se discuta. O problema hoje é o de como alcançar uma boa gestão do conhecimento na empresa - conhecimento de natureza científico-tecnológico, técnico-administrativo, mercadológico etc. - que vai desde a sua aquisição ou produção, passa pela sua proteção e preservação, chegando até sua eficaz utilização. O Brasil já despertou para esta problemática, e existem até cursos de pós-graduação voltados para a melhoria da capacitação neste tipo especializado de gestão. [2]
A gestão do conhecimento constitui-se, obviamente, uma tarefa de enorme complexidade; por isso, vamos nos concentrar aqui em apenas um dos seus grandes problemas: a relativa fragmentação do saber em relação à unidade do real. A realidade é una - é uma velha convicção que herdamos e assumimos, vinda dos fundadores da filosofia grega -, entretanto, a variedade de disciplinas que tentam desvendar seus segredos é enorme e não cessa de crescer em função do processo de divisão de idéias, funções e tarefas tão típico do Ocidente.
Haveria, pois, uma contradição no cerne mesmo do pensamento moderno, que se valeria de uma estratégia de larga dispersão para tentar se apoderar daquilo que, por essência, seria absolutamente uno. Esta visão, de certo modo simplista, da estratégia cognitiva do Ocidente, tem suscitado toda sorte de movimentos reativos de inclinação integracionista: atitudes multi, inter e transdisciplinares, teoria geral dos sistemas, pensamento holístico etc.
Não pretendemos estabelecer aqui um conjunto ad-hoc de definições que “demonstre” que a nossa “variedade disciplinar” integracionista é de todas a mais conspícua. Optamos por falar de transdisciplinaridade em geral, em relação à qual importará bem mais delinear os caminhos para a sua efetiva operacionalização do que dela exibir, como soe acontecer, uma definição retoricamente elegante, mas destituída de autêntico conteúdo.
Comecemos observando que, nas esferas superiores da administração, uma certa preocupação disciplinar integracionista é exercício de todas as circunstâncias e de todas as horas. A rigor, ela é, de um lado, a contrapartida mesma da fragmentação disciplinar, de outro lado, uma imposição da complexidade própria do objeto empresa - agregado de pessoas, meios materiais e conhecimentos técnicos, organizacionais, mercadológicos etc., mantendo uma densa e múltipla rede de relações funcionais, tanto internas, quanto externas. Tal como acontece com o trabalho, não se trata aí jamais de uma simples divisão, mas de um modo organizacional, ao mesmo tempo analítico e sintético - por suposto, só dividimos o que temos razoáveis condições, depois, de reintegrar. O que se dá na esfera do trabalho, dá-se igualmente na esfera do saber.
Podem, com o tempo, ocorrer circunstanciais descompassos entre disciplinas por conta de um maior e/ou mais profundo progresso de umas em relação às outras, porém, ainda com o tempo, este fenômeno tende a se resolver, seja por um reequilíbrio, seja pela absorção ou diluição de umas disciplinas em favor de outras. Estes desequilíbrios podem até ser vistos como uma característica natural da própria evolução de conhecimento, que chegou em certa época a ganhar, no Extremo Oriente, até um nome próprio: “processo de desenvolvimento desigual”.
Então, caberia perguntar: qual a natureza profunda do mal-estar que a transdisciplinaridade busca compreender e superar?
O problema está em que o que se rompe com a segmentação disciplinar não é da mesma natureza do que se dispõe para a sua ulterior recomposição; com isto, algo sempre se perde na operação análise/síntese, divisão/integração, segmentação/rearticulação. Vejamos um exemplo bastante simplório: quando um osso se quebra podemos tão apenas aproximar suas partes para que um processo regenerativo a nível celular faça a sua recomposição. Tratando-se do osso de uma pessoa muito idosa, em processo de descalcificação, teremos que unir as partes, de modo definitivo, com uma placa metálica e parafusos. Neste segundo caso, diferentemente do primeiro, o modo de rearticulação é completamente diferente do modo originário com que as “partes” estavam antes unidas. Pois bem, o processo de articulação disciplinar habitual se dá de um modo homogeneizante, um modo que propositadamente desconhece a articulação originária rompida; não importa sua natureza específica; metaforicamente, sempre as rearticulamos por meio de placas e parafusos, criando, assim, em lugar de um todo orgânico, uma extensa e monótona treliça.
Este modo único de rearticulação do que foi intencionalmente antes segmentado fica autorizado precisamente pela uniformidade do método, no caso, o método científico, por trás do qual vamos encontrar invariavelmente o processo de mensuração, a modelização e a manipulação proporcionada, sempre, por uma mesma estrutura lógico-formal. Porque a ciência da administração, a psicologia, a sociologia etc. tentam se constituir como saberes científicos ou lógico-formais é que podemos reunir, sem grandes problemas, profissionais de administração, psicólogos, sociólogos etc. numa equipe pluridisciplinar para enfrentar um determinado problema empresarial. Dizemos sem grandes problemas, sim, mas também sem a esperança de grandes tacadas de criatividade coletiva!
É forçoso confessar que uma única vez vimos a problemática da transdisciplinaridade abeirar-se deste tipo de consideração. Referimo-nos ao primeiro Congresso internacional da transdisciplinaridade, realizado no Convento da Arrabida, Portugal, em 1994.[3] Isto transparece, de forma bastante clara e concisa, neste trecho do debate entre o editor Michel Camus e o físico Basarab Nicolescu:
Michel Camus: Basarab Nicolescu, nos vivemos num universo cultural onde dominam as oposições binárias que você chama de uma maneira muito precisa o par de contraditórios mutuamente exclusivos. Você dialetizou os “níveis de realidade” o que permite ao mesmo tempo escapar às contradições, mas também integrá-las. Eu queria que você expusesse esta noção de “terceiro-incluído” que você, diríamos, de certa maneira “trialetizou”.
Basarab Nicolescu: ... Desde que a complexidade se mostra, tudo muda, e que é nosso século senão o da complexidade que invade verdadeiramente tudo, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande? Bem, esta compexidade não pode mais ser tratada por uma lógica dita clássica fundada sobre oposições binárias do tipo: verdadeiro e falso. ... Porque uma tal lógica é pobre para o estudo da complexidade é que é preciso ampliar a lógica. É muito importante. Quando a gente diz “lógica” isto não significa uma coisa excessivamente abstrata, isto concerne a critérios, normas da verdade. (negritos de responsabilidade do autor)[4]
Em primeiro lugar, deixa-se aqui bem claro que o âmbito da discussão não é o de uma etapa de desenvolvimento das forças produtivas, de natureza apenas tecnico-econômica, mas de algo bem mais geral, ou seja, de se estar vivendo neste ou naquele universo cultural. Em segundo lugar, o que é o mais importante, identifica-se o âmbito no qual poder-se-á alcançar uma autêntica transdisciplinaridade: trata-se, no fundo, de uma questão de lógica; por último, aponta-se o caminho: exige-se a quebra do monopólio do paradigma lógico-formal binário que domina o conjunto das disciplinas universitariamente consideradas sérias ou respeitáveis.
A partir daí não se pode mais ignorar que a busca de uma verdadeira transdisciplinaridade não se confunde com a mera síntese horizontal de disciplinas (como advogam os estudos interdisciplinares), nem com a adoção de uma linguagem comum (como propõe a teoria geral dos sistemas), nem com uma surrada declaração de intenções (como fazem os epígonos do “pensamento” holístico e do surfismo orientalista). Ela significa algo de bem maior fôlego: é a busca de uma articulação de saberes governados por distintas lógicas, vale dizer, por diferentes modos de pensar. Isto pressupõe “a abertura de todas as disciplinas àquilo que as atravessa e as ultrapassa”, exigindo um nível superior da elaboração analítico/sintético. No artigo 5 da Carta da Transdisciplinaridade a que já nos referimos, se bem que em termos menos precisos que os nossos, encontramos uma enfática declaração em favor de uma abertura radical (diríamos lógica) entre as “ciências exatas” e os outro modos de ser e pensar:
A visão transdisciplinar é resolutamente aberta na medida em que ela ultrapassa o domínio das ciências exatas em direção ao diálogo e à reconciliação, não somente com as ciências humanas, mas também com a arte, a literatura, a poesia e a experiência interior.[5]
Podemos agora ir um pouco mais adiante afirmando que esta síntese lógica das lógicas só pode ser alcançada no âmbito de uma antropologia filosófica que tenha como preliminar, a identificação, caracterização homogênea e o mapeamento das articulações entre os nossos modos efetivos de pensar, ou seja, das nossas lógicas.
O problema não estaria, pois, em coordenar, por exemplo, química e biologia, psicologia e sociologia, pois todas estas disciplinas se valem de uma mesma lógica, a lógica aristotélica, precisamente a lógica clássica binária, por tal, também do terceiro excluído. A solução estaria sim em articular, por exemplo, sociologia, governada pela lógica clássica, à psicanálise, governada por uma lógica do inconsciente ou do terceiro incluído.
No campo da administração empresarial, que aqui mais nos interessa, a principal tarefa, parece-nos, seria a da articulação do saber disciplinar lógico-formal, a que estamos já habituados, aos saberes de natureza lógica não convencionais - de um lado, com o saber das estruturas profundas do ser coletivo ou da cultura empresarial, governada por uma lógica do inconsciente, do “outro que internamente nos espreita e sem nos darmos conta, por vezes nos salva, por vezes nos apunhala” (de que o DO pode ser considerado um primeiro esforço); de outro lado, com o saber estratégico, governado por um pensar dialético, vale dizer, do “outro que externamente nos confronta”. Ver figura 1.
Figura 1 - Articulação, em profundidade, dos saberes administrativos
Concluindo, diríamos que um novo pensamento empresarial, que coloque, como deve, a gestão do conhecimento em todas as suas esferas - científico-tecnológico, técnico-dministrativo, mercadológico etc. -, como um de seus principais fatores de êxito competitivo, não pode prescindir de uma orientação transdisciplinar. E esta competência transdisciplinar deverá estar alicerçada, necessariamente, numa antropologia filosófica, altura onde se poderá alcançar uma verdadeira articulação de todos os modos efetivos de pensar e de suas respectivas lógicas. Especificamente isto significará a articulação de um mais profundo conhecimento da cultura empresarial, com uma maior clareza e vigor de suas determinação estratégicas, naturalmente, associadas a uma sempre crescente maestria no manejo dos instrumentos tradicionais de gestão.
Notas
1. La transdisciplinarité ne recherche pas la maîtrise deplusiers disciplines, mais l’ouverture de toutes les disciplines à ce qui les traverse et les dépasse. Do artigo 3 da Carta da Transdisciplinaridade adotada pelos participantes do primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, Convento da Arrabida, Portugal, 1994.
2. Ver, por exemplo, o artigo A gestão do conhecimento como um esforço integrado de transformação de José Roberto Gomes da Silva em DIRIGIR, n0 41, dezembro de 1997.
3. RANDON, Michel. La pensée transdisciplinaire et le réel. Paris, Dervy, 1996. Este livro traz uma boa documentação sobre o primeiro Congresso Internacional da Transdisciplinaridade realizado no Convento da Arrabida, Portugual, em 1994. Estiveram presente ao evento, entre outras importantes personalidades, Olivier COSTA DE BEAUREGARD, Edgar MORIN, Basanab NICOLESCU e o autor do livro. Encontramos também aí informações sobre o colóquio La science face aux confins de la connaissance: Le prologue de notre passé culturel organizado pela UNESCO e Fundação Giorgio Cini em Veneza, 1986, onde foi pela primeira vez posta, num forum internacional, a “urgência de uma pesquisa verdadeiramente transdisciplinar numa troca dinâmica entre as ciências ‘exatas’, as ciências ‘humanas’, a arte e a tradição.”
4. Conforme registra RANDON, em opus supracitado,p. 69:
Michel Camus: Basarab Nicolescu, nous vivons dans un univers culturel oú dominent les oppositions binaires que vous appelez d’une manière très précise les couples de contradictoires mutuellement exclusifs. Vous avez dialectisé des “niveaux de réalité” qui permettent à la fois d’échapper à ces contradictions mais aussi à les intégrer. Je voudrais que vous exposiez cette notion de “tiers-inclus” que vous avez, disons, “trialestisé”, d’une certaine manière.
Basarab Nicolescu : ... Dès que la complexité se montre, tout change et qu’est-ce que notre siècle s’il n’est pas celui de la complexité, une complexité qui envahit vraiment tout, de l’infiniment petit à l’infiniment grand? Eh bien, cette complexité ne peut plus être traitée par une logique dite classique fondée sur des oppositions binaires du type: vrais et faux. ... Cést qu’une telle logique est pauvre pour l’étude de la complexité qu’il faut élargir la logique. C’est très important. Quand on dit “logique” ça ne sibnifie pas une chose très abstracte, ça concerne des critères, de normes de la vérité.... (negritos por conta do autor)
5. La vision transdisciplinaire est résolument ouverte dans la mesure où elle dépasse le domaine des sciences exactes par leur dialogue et leur réconciliation, non seulement avec les sciences humaines mais aissi avec l’art, la littérature, la poésie et l’expérience interieure. RANDON, opus citado, p.329.
Nenhum comentário:
Postar um comentário