...capital intelectual - conhecimento, informação, propriedade industrial, experiência - que pode ser utilizada para gerar riqueza. É a capacidade mental coletiva.
Thomas A. Stewart em Capital Intelectual
Fomos todos bem cedo alertados sobre um novo tipo de organização social que se avizinhava; a chegada inexorável de um novo paradigma social, como hoje gosta-se tanto dizer. Recordemos o trabalho seminal The Production and Distribution of Knowledge in United States de Fritz Machlup da Universidade de Princeton (1962), o famoso Relatório Nora/Minc para o Governo Francês (1976), a tese de doutorado The Information Economy de Marc Porat patrocinada pelo Departamento de Comércio dos EUA (1977), a publicação de A Sociedade da Informação de Yoneji Masuda (1980), para citar apenas aqueles de maior repercussão junto ao grande público. Os reflexos na estrutura e funcionamento das empresas, entretanto, à época, não ficavam ainda suficientemente precisos.
Hoje as coisas começam tomar contornos mais definidos quanto às transformações impostas ao capital, em especial, no que tange à sua alocação empresarial. Sociedade da informação, sociedade do conhecimento, era do capital intelectual são algumas entre muitas expressões que levam-nos à convicção de que, doravante, o velho capital fixo em instalações e equipamentos fabris deixou de ser a grande fonte de poder econômico e o principal fator de êxito competitivo.
O capital teria se deslocado para assumir novos modos de ser, agora imateriais ou intangíveis: informação, conhecimento, know-how, capacidade de armazenagem e processamento de dados, competência analítico-simbólica, propriedade intelectual etc. Tudo isto a que, seguindo Thomas Stewart, poderíamos com propriedade nomear Capital Intelectual e, ainda com ele, caracterizar como capacidade mental coletiva.
Boa parte deste capital é informação e conhecimento - não apenas informação e conhecimento de natureza científico-tecnológico, mas também técnico-administratico, técnico-financeiro e sobretudo mercadológica - que se encontra em arquivos, bibliotecas, banco de dados próprios ou de terceiros, porém, é certo que seu melhor e mais sofisticado quinhão está na cabeça dos funcionários da empresa. O grande problema estaria, pois, em como ter acesso e poder mobilizar todo estas informações e conhecimento dispersos e depois fazê-los operar imaginosa e articuladamente segundo a missão e os ditames da direção da empresa.
Pode a primeira vista parecer que a disponibilidade de novos meios de telecomunicações e teleinformática, internos (banco de dados e redes locais) e externos (bancos de dados de acesso público e Internet) à empresa, seriam o bastante e o necessário para promover a aludida mobilização; que se tratasse fundamentalmente de uma questão de meios. Nossa experiência empresarial mostra que este não é realmente o caso.
Ontem, já dispúnhamos de um imenso cabedal de informações e valiosos conhecimentos espalhados pelas empresas que, no entanto, não se conseguia mobilizar; hoje estimamos que muito mais exista. A mobilização não acontecia por falta ou baixa velocidade dos canais de comunicação, mas pelo simples fato de que seu agenciamento era em grande medida condicionado pelo que as sucessivas instâncias hierárquicas eram capazes de compreender, processar e passar adiante. Em síntese, o conhecimento da empresa como um todo ficava condicionado ao que sua estrutura de poder era capaz de absorver; a estrutura de poder funcionava mais como um gargalo ou filtro do que como um emulador da produção do conhecimento coletivo. Nem tudo devia ou podia ser coletivamente sabido; e hoje, nas grandes empresas nacionais, acreditamos continue sendo assim.
O maior dentre os problemas a serem superados para que se venha aumentar a efetividade do capital intelectual, vale dizer, para que se alcance um melhor aproveitamento da capacidade mental coletiva, está em se conseguir um relativo desacoplamento da estrutura de saber com respeito à estrutura de poder.
A dependência do saber face às estruturas de poder, insistimos, é um fenômeno encontradiço em qualquer parte, mas pouco se quer atentar para ela. Isto acontece, em parte, pela sua universalidade em nosso meio empresarial, que a faz aparecer como um ruído de fundo a ser justamente por isso desconsiderado. Em parte, porque aqueles que poderiam diagnosticar o fenômeno e buscar a sua superação já se adaptaram e também dele se valem para resguardar seu estatuto sapiencial. Por isso, precisamos aqui exagerar para ilustrar, apelar para exemplos extremos, casos em que a estrutura de saber chega a se confundir inteiramente com a estrutura de poder. Aqueles em que o dono do poder o é também da verdade.
De fato, existem casos de instituições em que a estrutura de poder é de tal modo sufocante que podemos diagnosticá-las como completa e literalmente esclerosadas, para não dizer acéfalas. A sintomatologia é facilmente reconhecível: a exigência neurótica de vestes regulamentares e horários, a entronização e o uso compulsório de fórmulas doutrinarias (fórmulas onde importam apenas os significantes - o som ou o desenho das palavras -, e quase nada os significados) e a repetição de gestos rituais estereotipados (que apenas simulam de longe, para terceiros, que esteja ocorrendo alguma reflexão e um real renhido debate).
Chega-se em muitos casos à absoluta proibição de pensar; fica tácito para todos que os recalcitrantes o façam, clandestinamente, em pequenos grupos nos mictórios, nos pátios e corredores ou a sós, em suas casas. Em geral este é o caso de instituições originariamente pensantes, mas que, com o tempo, circunstâncias e até mesmo o sucesso despropositado, perderam seu vigor e foram inteiramente tomadas pelo torpor burocrático. Fora da estrutura de poder nada existe, muito menos a salvação. Exemplos concretos não faltam: grupos religiosos decadentes, partidos únicos ou ampla e duradouramente majoritários, instituições militares cansadas de guerra e, em bem menor grau, naturalmente, as empresas que administramos ou em que trabalhamos.
Como já dissemos, existe a expectativa de que os novos meios teleinformacionais possam vir a se constituir em instrumentos de grande importância na mobilização de informações e conhecimento. Quanto às primeiras, talvez sim; quanto ao segundo, entretanto, isto só se consumará se formos capazes de proceder a um relativo descolamento das estruturas de saber e de poder, de criarmos redes adequadas ao agenciamento do saber, que devem se constituir como redes virtuais de grande plasticidade (adaptáveis aos momentos, às urgências e mesmo às temáticas), paralelas às estruturas de poder e cadeias decisórias da empresa. É óbvio que o saber deverá, em última instância, se submeter ao poder, porém, as instâncias de poder passam doravante a ser responsabilizadas (seja para o bem, seja para o mal), ainda que em tempos já inúteis, por eventualmente imporem o seu saber pessoal ou de autoridade ao saber da empresa enquanto um saber coletivamente produzido. Com isto, entre outras virtudes, restitui-se à História seus poderes ético e pedagógico, o que não é de se desprezar!
Em pequenas e médias empresas, em especial em empresas familiares, será muito difícil que se obtenha o recomendado desacoplamento. Em empresas de maior porte, modernas em sua estrutura de capital e modo de gestão o referido desacoplamento poderá ser buscado atribuindo-se o poder da gestão do conhecimento a um diretor específico que, ao lado de muitas outras funções, julgue a pertinência de abertura de temas para discussão ampla, formação de grupos de debate em rede, pesquisas de opinião interativas tipo Delfi, teleconferências etc. Todas estas atividades poderão ser sugeridas por outros diretores (sempre individualmente considerados), diretamente por funcionários qualificados ou até anonimamente via caixa de sugestões.
Pode-se facilmente imaginar que, quão mais grave e urgente seja um problema, quão mais intolerante e impaciente será a estrutura de poder face às liberdades do saber, à um processo cujo centro deve sempre autoconstituir-se a posteriori, à uma eventual demora deste processo vir a convergir. É, pois, da maior importância para o êxito do processo de desacoplamento parcial das estruturas de saber e de poder que a autoridade administrativ responsável antecipe ao máximo as temáticas a serem postas em discussões, não importando que já se tenha ou não uma idéia por onde a empresa deva caminhar; interessa a antecipação e a relevância da problemática e não, na circunstância, a das soluções.
Outro ponto da grande importância é o da segurança total que deve cercar as redes teleinformacionais e bancos de dados da empresa, na medida em que daqui por diante em suas entranhas estará também se configurando o seu futuro, em termos de estratégia empresarial, estratégias tecnológicas, produtos e respectivas estratégias mercadológicas e talvez muito mais.
Por fim, seria importante observar que ainda permanecem grandes dificuldades no que se refere á noção de capital intelectual: precisamos atribuir-lhe uma conceituação verdadeiramente contábil, chegar a uma classificação de seus modos de realização e do como medi-los e, sobretudo, precisar os caminhos pelos quais o ele exerce sua eficácia na empresa tomada em sua globalidade.
Luiz Sergio Coelho de Sampaio
Rio, 7 de março de 1998
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