6.4.17

A grande tarefa de nosso tempo: uma nova filosofia

A desfiguração do pensar e o abuso do pensamento desfigurado só poderão ser superados por um pensar autêntico e originário, e por mais nada. Uma instauração deste último exige, antes de tudo, o regresso à questão sobre a referência essencial do Pensar com o Ser.

Heidegger - Introdução à metafísica 



Há uma quase unanimidade no diagnóstico: o mundo vive hoje uma fase de desencantamento e, como conseqüência, de diluição da crença em qualquer tipo de salvação, tanto além, como aquém da morte - não haverá juízo final, nem antes a revolução.

O psicanalista francês André Green, recentemente instado a justificar o seu pessimismo em relação ao mundo atual, declarou que, a seu ver, “a proposta de nossos políticos para as gerações modernas é ‘suicidem-se’.” [1]. Esta é a cruel e cínica prescrição dos ideólogos do pensamento único para os que sofrem, menos do que vivem, as terríveis agruras da “globalização” [2], em que meia dúzia de senhores do mundo botam os miseráveis de todas as partes para competirem entre si, tal como galos excitados são atirados a uma rinha para se dilacerarem e do alto gozam, enquanto apostam, quem irá primeiro sucumbir.

Quanto à sintomatologia e ao diagnóstico não vemos como discordar, porém, não podemos ficar por aí; é necessário buscar a razão profunda destes acontecimentos. Acreditamos que se trata bem de uma razão, de uma lógica, de um modo particular de pensar correlato a um particular modo de ser. É nossa convicção que por traz de toda cultura está uma lógica que, sacralizada, constitui seu núcleo religioso invariante [3].

A modernidade não escaparia a esta determinação profunda, e sua lógica característica seria precisamente a lógica clássica ou aristotélica, ainda melhor dito, a lógica do terceiro excluído [4]. Esta última governa a matemática e, através do processo generalizado de mensuração, também a ciência e a informatização/sistematização do mundo. O serviço se completa pelo mercado, mecanismo capaz de pôr um número (preço) em todas as coisas - trate-se da dignidade da alma inteira, de uma córnea, um rim ou qualquer outra parte do corpo -, tornando-as destarte co-mensuráveis, logo negociáveis, enfim, mercadorias.

Caso estejamos corretos, a culpa dos nossos infortúnios não caberia a políticos corruptos, empresários gananciosos, usurários insaciáveis, funcionários psicóticos comandando nossos bancos centrais, religiosos com fixações sexuais, malandros da terra ou mafiosos de importação, mas tão apenas à ciência e ao seu corpo de devotados servidores [5], que sói acontecer, ignoram o sentido do que de fato fazem.

A veracidade desta tese avulta a nossos olhos pela mera observação do contencioso ideológico da modernidade, onde jamais se põe em causa a ciência; esta fica sempre impensada, a salvo de qualquer suspeita. Não há quem se ponha contra a ciência, seja do alto ou de baixo, seja de centro, de direita ou de esquerda. O debate, no âmago, restringe-se apenas à precisa questão de qual deva ser o sujeito da ciência:

a) se o sujeito individualista, protestante calvinista, homem de projeto, herói fordiano [6] do paradigma liberal anglo-saxônico,

b) se o sujeito coletivo, jesuítico, marxista, corporativista das variantes ideológicas de esquerda,

c) se o sujeito inconsciente cultural, romântico, telúrico, libidinal das variantes ideológicas de direita,

d) se, finalmente, na mais sonsa e reacionária das atitudes, nenhum, como fazem as cúrias, durante as épocas em que não estão sendo ameaçadas por quem de algum modo enfrenta a questão.

E, pensando bem, não há outras opções.

É verdade que sempre existem correntes filosóficas e teológicas com a pretensão de compreender a ciência. As filosofias transcendentais (Descartes, Kant/Fichte, Husserl), que vieram justamente para tanto, entrementes, se limitam à questão das condições de possibilidade da ciência, ficando incapacitadas de fazer-lhe uma crítica de conteúdo e atribuir-lhe um sentido, seja meta-físico, seja simplesmente social. As filosofias dialéticas (Hegel, Marx) pretenderam fazê-lo, mas são logicamente impotentes, na medida em que a dialética é uma lógica menor ou subsumida pela lógica que governa a ciência - a lógica clássica ou do terceiro excluído [7]. As filosofias positivistas (Positivistas e Neopositivistas, inclusive o primeiro e segundo Wittgenstein) e pragmatistas são modos de pensar que a priori capitulam diante do pensar científico e assim o justificam. Por último, as filosofias trágicas ou poéticas (de Pascal a Deleuze, passando por Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger), lógico-diferenciais, apenas conseguem espernear ante o castrador poder científico; ao cabo, deixam a problemática humana tal qual, reduzida a uma simples confrontação entre o trágico destronado e o cínico dominante.

Quanto às teologias, sofrem todas da mesma impotência lógica de fundo. A única exceção, talvez, seja a versão escolástica da teologia católica; sua fundamentação lógico-aristotélica, pode-se dizer, foi mesmo prenunciadora da cientificidade moderna; este fato é que lhe deu condições, até hoje, de manter freqüente flerte, ainda que envergonhado, com a ciência; mas porque se vale da mesma lógica da ciência, permanece impotente para pensá-la compreensivamente.

Assim, já foi bem observado que a posição de privilégio atribuída ao homem pelo cristianismo vem sendo progressivamente erodida pelas lunetas e telescópios, pelo curso cego da seleção natural das técnicas bioquímicas e mais recentemente pelas estruturas por si agentes e falantes - Galileu, Darwin, Freud/Saussure/ Lévi-Strauss. Sobre isto podemos ser ainda mais precisos, partindo da visão de mundo medieval, que vinha sobrevivendo até o início do presente século, ilustrada na figura 1. Lá, o homem cristão situava-

se no cimo de uma hierarquia marcada por quatro degraus ou descontinuidades que só milagres pareciam poder superar: as passagens do nada à materialidade; da matéria à vida; da animalidade à humanidade; por derradeiro, do homem decaído ao homem por Cristo redimido.

Hoje, a mecânica quântica, ainda que numa articulação forçada com a relatividade geral [8], já se propõe a explicar a primeira passagem como resultante de um processo de flutuação quântica de um vácuo primordial excitado. O aparecimento da vida vem sendo minuciosa e convincentemente explicado pela bioquímica moderna. Os recursos teóricos da antropologia estrutural lévi-straussiana são hoje, a nosso ver, suficientes para dar conta da passagem do animal ao homem ou da natureza à cultura.

Em suma, diluídas as descontinuidades escalonadas que levavam do nada ao homem, este ver-se-ia inexoravelmente atirado à vala comum do cosmo. Em nossa opinião é precisamente por aí que vem se dando o progressivo esmaecimento das marcas de uma milagrosa intervenção de Deus na História, ou daquilo que, no começo, designamos como sendo o processo de desencantamento do mundo.




Figura 1



E quanto à quarta passagem? A rigor, é uma conseqüência do que vem acontecendo com as três primeiras passagens, em que pesem as aparências. A lógica do cálculo aqui também, no profundo, prevalece sobre a lógica do sentido. Contudo, em razão de um remanescente poder de controle social, encena-se, no Ocidente, a farsa geral de uma continuidade cristã - a ciência (sociologia da religião) finge que não vê, fingem que crêem as hierarquias e os “crentes” que as seguem. Na verdade, se vive o burburinho e as vicissitudes de um verdadeiro supermercado de religioso. Raros são os que hoje não tomam de cada uma um pouco e fazem o seu próprio blend.

Diante de tudo isto não pode mais restar dúvidas quanto a qual deva ser a grande tarefa de nosso tempo: a criação de uma filosofia nova potente para pensar de cima a ciência. Não para confrontá-la, para negá-la ou renegá-la, mas simplesmente para subsumi-la, pensá-la compreensivamente, dando-lhe assim um significado humano e meta-físico. Para tanto exigir-se-á, necessariamente, uma nova cultura e uma correspondente nova religiosidade, portanto, um modo de pensar inaugural e, daí, uma nova lógica. Esta não poderá ser apenas transcendental, diferencial, dialética ou clássico-aristotélica, mas terá que subsumi-las todas numa lógica hiperdialética ou qüinqüitária [9]. Será uma filosofia, afinal, à altura do homem, desta sorte, capaz de restituir-lhe a esperança e o lugar pinacular na ordem da criação.



Luiz Sergio Coelho de Sampaio

Rio, 31 de outubro de 1997

_____________

* Notas para a aula inaugural do curso Iniciação à Filosofia realizado em setembro de 1997, no Rio de Janeiro, no âmbito do convênio AMAL (Associação de Moradores e Amigos de Laranjeiras)/UAB (Universidade Aberta Brasileira).


 Notas
  1. Provocações do pensar, entrevista de André Green em Jornal do Brasil, Idéias, 19 de out. de 1996.
  2. A rigor, uma segunda vaga de universalização da cultura racionalista moderna de origem anglo-saxônica, que, seguindo a sociologia alemã, chamaríamos de fase civilizatória; a primeira vaga foi o colonialismo do século XIX, que só terminou em meados do século XX. Não é descabido o paralelo com a cultura clássica grega que teria passado também por duas vagas; a primeira, a helenização alexandrina; a segunda, através da expansão do império romano.
  3. L. S. C. de Sampaio, Noções de antropo-logia, Rio de Janeiro, UAB, 1996.
  4. Um pensar apenas diferencial comporta os seguintes estados: o verdadeiro, o falso e, um terceiro, o indefinido. Se a negação deste último é o verdadeiro, isto é, se o indefinido representa o paradoxal, verdadeiro e falso ao mesmo tempo, temos a versão paraconsistente da lógica da diferença. Sendo falsa a negação do terceiro estado, este não será verdadeiro nem falso; temos então a versão paracompleta ou intuicionista da lógica da diferença. A lógica clássica ou aristotélica é uma lógica mais restrita que a lógica da diferença, onde cabem apenas os estados verdadeiro e falso, desconsiderado, pois, o valor indefinido; daí a nossa preferência pela designação lógica do terceiro excluído. Ver L. S. C. de Sampaio, Noções elementares de lógica - Compacto, Rio, ICN, 1988.
  5. Na cultura identidade ou do Deus Único, seus servidores privilegiados foram os que vociferavam contra as diferenças - os profetas; na cultura da diferença ou prometeica, grandes foram os que da sua própria distância constitutiva questionavam o um -os filósofos; na cultura cristã trinitária, a primazia coube aos artífices da síntese da identidade (judaica) e da diferença (grega) - os teólogos (patrísticos); finalmente, na cultura ocidental moderna, determinantes são os que medem e calculam o mundo, desvelam e quebram simetrias -os cientistas.
  6. A referência aqui é ao diretor cinematográfico John Ford - irlandês, embora atuando nos EUA - em cujos filmes era freqüente a presença do herói solitário que sempre aparecia para repor a ordem no “sistema” contingentemente perturbado, e tão logo o conseguia, deixava-se ir embora, solitário como chegara, pelas estradas. Pode haver algo mais expressivo do que isto, no caso?!
  7. A lógica clássica ou da dupla diferença é síntese da lógica da diferença e da lógica dialética, por isso as subsume. O ser como totalidade visado pela lógica dialética é, em parte, herdado pela lógica clássica, que se constitui assim em lógica analítica das universalidades dadas ou totalidades por convenção. SAMPAIO, L. S. C. de, Dialética trinitária versus hiperdialética qüinqüitária, Rio, ICN, 1995.
  8. Na verdade, há uma profunda incompatibilidade entre a mecânica quântica de caráter linear e a relatividade geral essencialmente não linear.
  9. O termo hiperdialética refere-se a uma lógica mais complexa do que a lógica dialética. Esta, como sabemos, constitui-se numa síntese das lógicas da identidade e da diferença, enquanto que a primeira sintetiza, além das lógicas da identidade e da diferença, também a própria dialética e a clássica. Se considerarmos que ela subsume a si mesma, serão então cinco a lógicas subsumidas, daí , também conveniente, a designação qüinqüitária.

Nenhum comentário:

Postar um comentário