6.4.17

A “globalização” e o futuro dos estados nacionais

Antes de mais nada precisamos evitar o mais corriqueiro e aparentemente inexplicável erro de categoria pelo qual vemos dividido o social em político, econômico e social. Como se pode encetar qualquer análise sociológica partindo de tão grave absurdidade, equivalente a dividir o corpo humano em cabeça, tronco e corpo humano?! O erro é insistente e aparece em quase todos os documentos institucionais e políticos - Constituição, programas partidários, discursos presidenciais, planos e pacotes governamentais - e num sem número de conspícuos “trabalhos” acadêmicos. Em nossa palestra Introdução à antropologia [1], tratamos pormenorizadamente deste fato, inclusive mostrando o mecanismo psíquico que o torna possível e demonstrando que não se trata de um mero, ainda que gravíssimo, erro conceitual, mas de uma distorção com evidentes intenções manipulativas de cunho ideológico. Em suma, trata-se aí de escamotear a dimensão cultural do ser social, crucial ponto de partida de onde pode-se esboçar uma estratégia de efetiva resistência à “globalização” ou a qualquer outro movimento de agressão sócio-cultural.

O social comporta três grandes aspectos objetivos: o cultural, o econômico e o político e assim precisa ser porque o primeiro é fonte da identidade social, o segundo, fonte das diferenças sociais, o terceiro, lugar onde pode se dar a síntese dialética dos anteriores. O social dividido em político, econômico e social é, pois, rematada asneira.

Este mínimo de coerência conceitual, entretanto, se nos afigura suficiente para compreensão do que sejam os estados nacionais modernos e a razão profunda de seu maior ou menor grau de estabilidade. Diríamos que o estado nacional moderno é a resultante de um compromisso entre âmbito, relativamente independente, de soberania política e âmbito, também relativamente independente, de homogeneidade cultural; a dimensão econômica ficando imprensada entre estas duas determinações e, a longo prazo, é a que menos importa.

O grau de estabilidade de uma nação seria em boa medida determinado pela maior ou menor coincidência dos âmbitos considerados. Área cultural mais abrangente do que a área de soberania política, é fonte de instabilidade das relações exteriores que, em geral, se faz acompanhar por uma política expansionista. Se, pelo contrário, a área de soberania política excede em muito a área de homogeneidade cultural, tende-se à instabilidade das relações internas com o permanente perigo de comoções intestinas, chegando, muitas vezes, ao extremo da guerra civil. Havendo uma boa coincidência das duas áreas, ter-se-ia um maior grau de estabilidade, tanto nas relações externas, quanto internas.

Na Europa vamos encontrar bons exemplos de tudo isto. A Alemanha é o caso mais notório da primeira situação. Arrasada pela guerra, pouco mais de quarenta anos após, pelo acurado senso de oportunidade e de modo não violento (em termos), conseguiu a sua unificação, a separação da Croácia, a separação da República Tcheca, a des-suburdinação da Polônia à Rússia, o desmembramento da Ucrânia e Bielo-rússia, ficando faltando-lhe apenas reapoderar-se da Prússia. A Iugoslávia seria o exemplo extremo do segundo caso, e instabilidade chegou ali a tal ponto que o país já desintegrou-se; a União Soviética era outro importante exemplo, que também desintegrou-se e a atual Comunidade de Estados Independentes que a sucedeu ainda guarda o mesmo tipo de instabilidade. A França, dentro do cenário europeu é um dos melhores exemplo de coincidência das área de soberania política e homogeneidade cultural. É por esta razão que ela pode se dar ao luxo de uma relativa política externa independente e fazer da cultura uma arma eficaz desta política.

Agora, vejamos os contra exemplos. O mais evidente é o da Suiça, onde aparentemente a área de soberania política é muito mais ampla do que a área de homogeneidade cultural e, no entanto, gozando de elevado grau de estabilidade interna. A nosso juízo existem boas razões para que ela se constitua como exceção. Primeiro, o relativo isolamento geográfico; depois, uma persistente política externa de neutralidade que desencoraja a intromissão de terceiros; ainda, uma política financeira mafiosa que a torna refúgio de todos as facções e de todo tipo de interesse; por fim; a duração do próprio êxito, que, dando ensejo a um processo de realimentação, acabou criando um estrato cultural comum em que pese a diversidade de origens e de línguas.

Um caso excepcional é o dos Estados Unidos em que há uma estreita coincidência das duas áreas, porém, não por uma duradoura tradição cultural, mas por um eficientíssimo processo de aculturação acelerada, que só encontra alguma resistência entre os afro-americanos mais pobres e tradicionalistas judeus.

A longo prazo, nossas considerações econômicas são de quase nenhum peso, e o pesô determinativo recaia precisamente sobre a dimensão cultural, que associada ao jogo político cultural permitem a compreensão seja a avaliação de estratégias geo-políticas das diferentes nações. Temos agora, elementos de alto valor, conquanto que não exclusivos, para especulações geopolíticas de algum fôlego.


Luiz Sergio Coelho de Sampaio

Rio de Janeiro, dezembro de 1997 

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