6.4.17

Gerência brasileira:necessidade ou luxo na batalha da competitividade

Há uma ou duas décadas, logo ao início da vigência do acordo nuclear Brasil/Alemanha, veio a nós uma missão de especialistas em ciências sociais que produziu um relatório acerca das peculiaridades de comportamento do engenheiro brasileiro. A notícia da existência de um relatório daquela natureza causou, na época, exaltada reação na opinião pública. Apesar do grande esforço, não conseguimos ter acesso ao documento em sua íntegra, e por isso ficamos apenas naquilo que nos foi dado saber pelos jornais.

De qualquer modo, como censurar algo cujos fins, aparentemente, eram menos de manipular do que de criar condições para um futuro relacionamento não conflituoso entre engenheiros de origens culturais tão diversas? Se os alemães não dispunham do trabalho preparatório de brigadas universitárias de brasilianistas - para ser exato, talvez as tivessem tido, porém, não de psicólogos sociais, mas de aplicados naturalistas! -, como poderiam conhecer melhor o Brasil, as virtudes e defeitos da alma brasileira?

Não podemos desconhecer que os interesses internacionais em jogo eram suficientes para justificar a repercussão negativa que o caso veio ter, mas, por certo, não era tudo. Por que escolher justamente aquele detalhe em meio a algo por si já tão polêmico? A nosso juízo, o desvelar da alma brasileira constituía mesmo o fulcro da questão.

Deveras, ainda hoje recusamo-nos a isso, com um visível e risível falso pudor, o que, em todos os sentidos, vem nos prejudicando bastante. Na denominada “era da globalização” somos instados à mais feroz competição e, no entanto, nada fazemos no sentido de encontrar um estilo gerencial brasileiro capaz de dar dinamismo, consistência, e poder de auto-determinação ao nossos esforços produtivos/comerciais.

Elevados níveis de motivação, de eficiência e responsabilidade, de sinergia das equipes, mormente em se tratando de trabalho criativo, não podem ser alcançados senão através de um saber gerencial enraizado nos traços fundamentais da cultura brasileira, um saber que administre-lhe os defeitos e dê largo curso à suas virtudes. E se a cultura brasileira não é ainda um acontecimemto, coisa acabada, mas, uma promessa, ou uma invenção, como diria Darcy Ribeiro, não importa. Isto não nos exime da tarefa, mas apenas faz-nos sabê-la um pouco mas complicada do que poderíamos a princípio imaginar.

É grande hoje a oferta de MBAs e assemelhados por toda parte, mas não encontramos um só em que pelo menos seja posta com clareza a questão de uma gerência brasileira. No entanto, não temos a menor dúvida de que é nossa mais urgente obrigação buscar delinear um estilo gerencial brasileiro - uma maneira particular de administrar nossas coisas e principalmente de lidar de modo inteligente, aberto e digno com a nossa gente.

Assim foi e ainda é nos EUA, no Japão, na Alemanha, na Itália, na Coréia e em toda lugar onde foi conseguido um rápido e continuado crescimento e melhoria das forças produtivas. No caso americano, que desde a sua origem se constitui numa sociedade bastante aberta à imigração, a problemática cultural é de crucial importância, transcendendo, em muito, o âmbito das questões gerenciais, para abarcar a totalidade do seu ser social. Os EUA são uma nação de grande consistência cultural e assim acontece, não por arraigada e longa tradição (como é o caso de muitas outras nações), mas por força de um muito eficiente e intencional processo de aculturação. A bem da verdade, a História tem mostrado que apenas resistem-lhe um pouco mais de tempo os afro-americanos mais pobres e grupos fundamentalistas semíticos.

Observe-se ainda que a chamada globalização não é um processo de estofo econômico, mas sim, cultural. Ela não teria a profundidade que realmente tem se não fosse o fato de estar acompanhada, diríamos até precedida pela disseminação, por todos os meios - cinema, música, cartoon, dança, revistas científicas etc.-, do american way of life. Embora não se queira ver, é a globalização cultural que dá sustância à globalização econômica e não o contrário, como o “pensamento único” tenta nos convencer.

Em suma, diríamos que sem um pertinaz esforço de auto-compreensão cultural, cujos resultados sirvam de base à edificação de um estilo gerencial próprio, jamais poderemos alcançar a maioridade econômica e enfrentar os enormes desafios da “globalização. Permaneceremos neste infrutífero esforço de modernização, sempre nesta psicótica consulta a espelhos sem aço, nesta frenética busca alhures daquilo que, em verdade, se encontra já vivo disponível dentro de nós.

Não seria de bom tom encerrarmos críticas tão contundentes sem apontar, pelo menos, em que direção se poderia buscar uma solução para o grave problema da alienação cultural de nosso saber gerencial.

Felizmente, já não é mais o caso de termos que inventar algo a partir do nada. Numa iniciativa inédita, nascido do Convênio UERJ-IME com a UAB, será realizado a partir de março de 1998, o curso TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO COMO ESTRATÉGIA GERENCIAL - ANÁLISE DE NEGÓCIOS. Nas negociações do convênio, entre muitas outras coisas, ficou acordado que não se podia deixar passar a oportunidade para fazer algo no sentido de superar o problema apontado.

De modo corajoso, sério e conseqüente decidiu-se pela introdução de um módulo sob a rubrica genérica Antropologia das Organizações, que comportaria uma sólida fundamentação teórica, e que, para tanto, dever-se-ia destinar o mínimo de 15% da carga horária global do curso.

Desconhecemos programa governamental ou empresarial que não declare que sua meta de última instância é o homem, em particular, o homem brasileiro sem que jamais se encontre uma só linha acerca de que se tem ali verdadeiramente em mente. Não se podia cair na mesma incoerência. Por isso decidiu-se que o módulo comportaria, em sua primeira parte, uma sólida fundamentação teórica compreendendo noções de antropologia na sua concepção mais atual, , história das culturas, com especial ênfase na questão das origens da modernidade, e formação histórica da cultura brasileira.

 O módulo ficou assim segmentado:
  1. Introdução à lógica
  2. Antropologia cultural
  3. História da cultura
  4. Formação histórica da cultura brasileira
  5. Antropologia empresarial
  6. A empresa brasileira
  7. Planejamento na empresa brasileira

Em linhas gerais, os respectivos conteúdos programáticos seriam os seguintes:

1 - Introdução à lógica

Trata-se nesta unidade, em parte, de corrigir falha na formação de segundo grau onde as noções de lógica clássica proposicional e de predicados deveriam ter sido dadas num curso de Introdução à Filosofia. O essencial aqui é a problematização dos princípios da lógica clássica, a partir do que se procederá ao inventário de todas as variantes lógicas que, ao cabo, constituem a globalidade dos nossos modos de pensar. Levando-se em conta a estreita correlação entre ser e pensar, tese de conspícua tradição filosófica - Parmênides, Platão, Hegel - teremos assim disponíveis as bases para uma consistente antropologia filosófica.

2 - Antropologia cultural

A grande descoberta da antropologia estrutural lévi-straussiana: o átomo de parentesco. A diferença clânica na passagem da natureza à cultura, da animalidade lógico-trinitário à humanidade lógico-qüinqüitário e seu iniludível horizonte transcendente. O homem como ser discursivo. Desenvolvimento e saúde mental; tipos psico-lógicos. A articulação indivíduo/sociedade antes e na modernidade.

3 - História da cultura

Essência versus historicidade da cultura; história hiperdialética da cultura ou história do auto-desvelamento (objetivação simbólica) do ser lógico. Breve história da cultura ; culturas nodais e culturas não-nodais - arcaicas, mistas, de transição etc. Especificidades na passagem das culturas da diferença às culturas da identidade. Saber e saber desejante numa cultura diferencial - mito, filosofia e ciência. A problemática cultural moderna: origem, alternativas ilusórias à direita e à esquerda; a era do pensamento único; da cultura científica à civilização teleinformacional. O futuro da cultura.

4 - Formação da cultura brasileira

Fontes da cultura brasileira; formações intermediárias - formação mameluca e a constituição de uma territorialidade; formação mulata e a constituição de uma sensibilidade; outras contribuições - as migrações européias e japonesas, a influência da cultura americana; o atual estágio do processo de formação da cultura brasileira. A questão da identidade nacional através dos tempos.

5 - Antropologia empresarial

A instituição empresa do ponto de vista antropológico: sob a perspectiva objetiva ou trinitária; sob a perspectiva subjetiva ou qüinqüitária. Missão, cultura, história, organização e saber técnico. O modelo econômico. A empresa e os mercados. Da era da mais-valia à era do valor agregado. A organização como sistema cultural, simbólico e imaginário. Estudo de casos: pesquisa-intervenção em três organizações.

6 - A empresa brasileira

A empresa brasileira do ponto de vista antropológico. As especificidades da empresa brasileira de ontem e de hoje; necessidade de se melhor compreender a alma brasileira e, conseqüentemente, a empresa brasileira, para poder criar uma estratégia que permita compatibilizá-la com um mundo parametrizado pelos valores e esquemas interpretativos da cultura anglo-saxônica dominante. Meta: a melhor empresa do mundo ou a empresa de um mundo melhor?!

7 - Planejamento na empresa brasileira

Quase todo plano, projeto ou pacote no Brasil trata daquilo que deveríamos ter feito há cinco anos atrás para não estarmos na difícil situação em que encontramo-nos agora. Não acontece por acaso; é mera conseqüência dos nossos traços lógico/culturais que se recusam a determinar um autêntico vir a ser. Por isso, primeiro recuamos, e determinamos, sem correr riscos frente aos deuses, o futuro de um passado já feito. Quando se trata de planejamento estratégico, então, as coisas pioram ainda mais, porque somos todos amigos, sempre cordiais, não temos nenhum inimigo potencial que justifique uma atitude verdadeiramente estratégica. E assim por diante. Aqui, não há outra solução senão a “oficina de trabalho” com vistas à crítica e avaliação das experiências profissionais de coordenador e participantes.

Por suposto, não se trata de uma receita acabada e testada, mas um começo, uma aposta que, pelos cuidados e esforço de coerência, acreditamos, vá chegar a algum bom resultado.



Luiz Sergio Coelho de Sampaio

Rio, 8 de dezembro de 1997

Publicado em DECIDIR, n0 42, janeiro de 1998

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