5.4.17

Ainda, os transfinitos e a hipótese do contínuo (Projeto de Estudo)



Desci secretamente, rolei pela escada proibida, caí. Ao abrir os olhos, vi o Aleph.

- O Aleph? - perguntei. 

- Sim, o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos.

Jorge Luis Borges, O ALEPH 



1. O homem e a linguagem natural se correspondem a nível lógico qüinqüitário (I/D/2), por isso pode-se afirmar com propriedade que o homem é essencialmente um ser discursivo.

2. Resumidamente, o papel de cada uma das lógicas no funcionamento da linguagem natural, pode ser assim especificado:

I, corresponde à capacidade da linguagem natural de constituir-se em sua própria metalinguagem; posso muito bem escrever uma gramática do Português ou uma história da língua portuguesa em Português;

D, capacidade semântica ou referencial da linguagem natural, isto é, de remeter sempre a outro que a ela mesma;

I/D, capacidade histórica das linguagens naturais, de modificarem-se internamente para assim manterem-se em contato com o devir;

D/2, capacidade demonstrativa das linguagens naturais de gerar verdades a partir de verdades estabelecidas ou mesmo hipotéticas; trata-se, pois, de uma capacidade referencial ou semântica de segunda ordem;

I/D/2, capacidade que possuem as linguagens naturais de uma ilimitada complacência à significação ou à metaforização do Absoluto; mesmo do que não se pode falar, fala-se ainda assim de qualquer maneira.

3. As linguagens matemáticas vão derivar das linguagens naturais através da esterilização, congelamento, castração ou neutralização de seus poderes lógico-identitários (associados às lógicas identitárias I, I/D, I/D/2). É justamente por isso que o ser-matemático essencial precisa apresentar as seguintes propriedades:

a) possuir uma identidade simétrica a esquerda e a direita (teoria de conjuntos) ou duas identidades simétricas (teoria das categorias), o que esteriliza a lógica I

b) ser fechado, o que esteriliza a lógica I/D

c) ser associativo. O que esteriliza a lógica I/D/2


Em conseqüência, as linguagens formais não podem falar de si mesmas, perdem sua historicidade e ficam limitadas em sua complacência metafórica ou semântica. Como conseqüência, os axiomas dos sistemas, ao invés de positivos, como pareceriam à primeira vista, são na verdade negativos, isto é, servem para desativar ou congelar propriedades essenciais da linguagem natural. Note-se: as propriedades não são nem poderiam ser suprimidas, mas apenas de algum modo recalcadas; doutra feita, todo o castelo abstrato ruiria, porque estariam sendo negadas propriedades essenciais daquilo que se tomou justamente como ponto de partida - a linguagem natural.

f) Desta sorte, restariam operantes, na plenitude, apenas as lógicas da diferença D e clássica D/2, o que já transforma a linguagem natural num sistema formal (sistema sintático ou gramatical). Este tornar-se-á um sistema formal puro se, ao estilo do formalismo hilbertiano, também esterilizarmos a lógica da diferença, despindo o sistema de qualquer traço semântico autônomo ou intuitivo. O preço disto é a inexorável incompletude, demonstrada por Gödel.

A alternativa restante é manter uma certa dose de referencialidade intuitiva, de âncora externa, como desejam os intuicionistas seguidores de Brouwer.

A matemática deriva da linguagem natural pela neutralização de seus poderes lógico-identitários (I - constituir sua própria metalinguagem - I/D - ser histórica - e I/D/D possuir ilimitada complacência metafórica ); por isso, o ser-matemático minimal precisa possuir uma identidade simétrica a esquerda e a direita (teoria de conjuntos) ou duas identidades simétricas (teoria das categorias), ser ainda fechado e associativo.

a) Em termos de teoria dos conjuntos, os monóides representam com exatidão esta essência do ser-matemático (para que C seja um conjunto é necessário que exista P(C), onde P(C) é um monóide para a operação de união de conjuntos)

b) O monóide de apenas um elemento é degenerado, pois do seu simples fechamento se deduz a existência do elemento neutro e associatividade; monóide mínimo ou essencial (que possui as 3 propriedades independentes uma das outras e não tem propriedades “lógicas” suplementares) possui dois elemento {X0, X1} ; sendo por convenção X0 o elemento identidade, necessariamente, tem-se X0/X0 =X0 , X1/X0 =X1 , X0/X1=X1 , logo, são tão apenas duas as opções, por conta de X1/X1:

Se X1/X1 =X0 , trata-se de um grupo, pois todo elemento passa a ter um inverso, que é algo mais que um monóide; portanto não pode ser considerado o monóide básico (ele é, na verdade, o grupo básico)

Se X1/X1 =X1 temos sim um monóide básico, a projeção ( por exemplo, a projeção de um sólido sobre um plano); a essência do monóide é pois a de uma representação, embora similar, sempre redutora; com ele, não se tem volta, como acontece no grupo;

e) Se X1/X1 é diferente de X1 e de X0 ;{X0, X1} não é um monóide, pois deixa de ser fechado, mas pode se constituir no gerador de monóide - do monóide livre básico (MLB);

c) {{X0, X1}, /} gera um monóide livre básico MLB se, Xi /Xj º Xi+ j = f (Xi+j-1 ), para todo i e j, pertence a MLB, onde , por definição Xn = X1/X1/.../X1 , n vezes

d) Existem três tipos de MLB que seriam modos degradados ou "quantificados" de ser, saber e agir, correlatos, respectivamente, às lógicas I (onto-lógico), , D (epistemo-lógico) e I/D (praxio-lógico); subsumidas pela lógica matemática D/D=D/2

MLBO, ôntico, o ontológico (I) degradado ou “quantificando”, em que existir é ser um, contar por um, vir a somar 1. Neste caso, fazendo MLBO ={{X0, X1}, /}, com Xi /Xj = Xi+j = f (Xi+j-1) = Xi+j-1 +X1 , i e j maiores ou iguais a zero.
Em termos numéricos, { 0, 1}, onde n /1 = n+1 a partir de n=0

MLBI, informacional, o epistemológico (D) degradado ou “quantificando”, em que a geração se dá transformando todas as combinações de coisas de um nível (subconjuntos) em significantes para designar o nível subsequente; Xi+j-1 mede, pois, a quantidade de informação do nível Xi+j,. Neste caso MLBI= {{X0/ X1}, /}, com

log2Xi /Xj = Xi+j-1, logo Xi /Xj = 2 (Xi+j-1) , i e j maiores ou iguais a 0.

Em termos numéricos, { 1, 2(bit)}, onde n/2= 2 n a partir de n=1

MLBP, prático, o praxiológico (I/D) degenerado ou “quantificando”; transformação da ação histórica em produção formal; trata-se da produção matemática de sinais a partir de sinais segundo regras sintáticas cuja essência é o próprio monóide livre {{X0, X1}, /} ; os 3 são X0, X1 e /,

e seu elemento neutro, 2, são X0 e X1 sem o “poder” reprodutor operatório /; produção econômica é sua grande metáfora, na qual o novo é progresso e se conta de novo um a um (acumulação de capital), não a partir de 0, mas do 2, isto porque 3 são os valores: de uso, trabalho e troca e em sua forma negada (zero mercadoria), não trocada, tem-se apenas 2: valores de uso e de trabalho.

e) compreensão dos números em sua generalidade - finitos, transfinitos (alefes) e todos os que lhe seguem, B, C (já usando o nosso alfabeto) -, depende explicitamente de MLBO e MLBI, MLBP ficando implícito no próprio “funcionamento” dos monóides MLBO e MLBI, conforme mostra a figura 1



Figura 1


Pode-se desde já concluir que:

a) Os tipos de números são ilimitados: finitos (n), transfinitos cantorianos (À) , trans-transfinitos (B), trans-trans-transfinitos (C) e assim indefinidamente; eles formam também, como não poderia deixar de ser, um monóide.

b) Para que se concebam trans, é necessário transmutar o infinito potencial (Y) de referência em infinito atual:

se ele for ôntico, faz-se Yn = Yn + Y1 = Z1 ( sendo Yn um máximo agregativo, qualquer coisa que se lhe acresça, não o modifica) ;

se informacional, Yn = 2 Yn = Z2 ( sendo Yn um máximo informacional, ele terá que ser de mesma cardinalidade do que seu conjunto potência)

c) A hipótese do contínuo, mesmo generalizada, é uma questão muito particular. Ela pode ser agora generalizada para todos os tipos hierárquicos de números.

Examinando a questão ao nível dos alefes, vemos que ela é indecidível a priori, porque simplesmente não faz sentido, pois alefe 2 (1 para Cantor) e alefe 1 (0 para Cantor) têm determinações independentes, “qualitativamente” diferentes. Ao contrário, em alefe * , entre alefe 1* (naturais) e os reais (B1) existirá uma infinidade de alefes 2*,3*,4* ..., todos menores que os reais, isto é, é um alefes* tal que alefe n * = alefe n * + alefe 1* Esta conclusão vale para todas os tipos de números.

d) É necessário definir cardinalidade de forma homogênea, diferente do que fez Cantor, usando uma definição para o âmbito finito e outra para o âmbito dos alefes, dando a entender que se tratava da questão do finito x infinito e não de discreto x contínuo (para que isto não fosse percebido, trocou propositalmente o alefe dos naturais de alefe 1, como havia antes escrito e como deveria ser, para alefe zero.

d) Fiquei sem saber para que servem os monóides produtivos MLBP, referentes à práxis degenerada ou “quantificada”; quem sabe, serviriam para provar matematicamente que FHC (3) tem como antecessor mesmo FC, PC ou FP (2).

e) Acaba de sair um artigo na Scientific American (!) do cara (é lógico que tem PhD e pós-Doc.!) que está publicando os inéditos de Gödel. Ele testemunha no artigo que o indigitado era completamente paranóico. Sua esposa (ex-dançarina de cabaret em Viena) teve algo de sério (provavelmente um AVC) que a deixou incapacitada de provar antes, todos os dias, a comida que ele comia; por isto Gödel acabou morrendo, três anos antes dela, de inanição. Somando-se os casos de Cantor, Hilbert, Brower, o coronel do IM da UFF e muitos outros, o pessoal do Pinel vai acabar mesmo requerendo Notório Saber pelo INPA ou pelo LNCC.

1. Introdução

À época produtiva de Cantor, último quartel do século XIX, eram conhecidas diferentes tipos de infinitude: a dos números naturais, relativos, racionais, algébricos (1) e aquela que parecia ser a maior de todas - ainda que abaixo de Deus -, a dos números reais, compreendendo tanto os racionais quanto os irracionais (em termos geométricos, dir-se-ia o contínuo) e suas múltiplas dimensões (plano, espaço tridimensional etc). 

A sua ordem de “magnitude” crescente presumida era esta mesma de como foram aqui citados, porém, sem que tivesse sido exibido até então um critério objetivo que sustentasse tal ordenação, muito menos as provas correspondentes. O grande matemático alemão concebeu uma teoria dos números transfinitos (2), onde, além dos acima citados, comparecia toda uma seqüência aberta de novos infinitos e se estabelecia um critério preciso de atribuição de “magnitudes”, vale dizer, de cardinalidades que permitia comparações assim como a sua ordenação objetiva e unívoca.

Cantor demonstrou, com simplicidade e argúcia que os quatro primeiros infinitos citados - referentes aos números naturais, relativos e, contra a intuição corrente, também aos racionais e algébricos - possuíam a mesma cardinalidade, significando que podiam ser postos uns com os outros numa relação biunívoca, ou seja, ter todos os seus elementos postos em correspondência um a um, enfatize-se, de modo exaustivo. Este, o menor dos infinitos, foi por ele batizado como À0 (alefe zero) (3).
Os reais - em termos geométricos, a reta - e suas múltiplas dimensões - plano infinito, espaço infinito etc. - foram todos mostrados de igual cardinalidade e equivalentes a seqüências infinitas de números naturais. Entrementes, não podiam ser postos em correspondência biunívoca com os naturais, conforme mostrou com ajuda da famosa estratégia da diagonal (4). Como relativamente excessivos, teriam que ganhar uma cardinalidade superior a À0, que ele chamou À1(alefe um). 

Logo surgiu-lhe a pergunta: haveria um outro infinito com cardinalidade intermediária entre aquela do infinito enumerável (naturais) e a do contínuo (reais)? Cantor formulou então a famigerada hipótese do contínuo (5), que dava a esta questão uma resposta taxativa: não, em termos de continuidade transfinita, a À0 seguia-se imediatamente À1. Ele próprio tentou de todas as maneiras comprovar a necessidade da referida hipótese, morrendo, contudo, sem consegui-lo.

Em 1938 Gödel (6) consegue dar uma meia resposta à questão acerca da hipótese do contínuo mostrando que não se pode demonstrá-la falsa. Só em 1963 o matemático americano Paul Cohen (7), da Stanford University, consegue provar a independência da hipótese do contínuo, isto é, que na teoria axiomática dos conjuntos que ele tomou por base (o sistema Zermelo-Fraenkel(8)) a questão era indecidível - não era possível provar que sim nem que não. 

Estávamos, pois, livres para agregar um novo axioma à teoria de base estabelecendo pelo menos um nível de infinitude (ou de magnitude infinita) entre À0 e À1, inclusive, como desejava Cantor, nenhum. Existiriam assim pelo menos duas teorias de conjuntos do tipo Zermelo-Fraenkel, preservando todos os resultados (teoremas) até então considerados válidos, porém diferindo no número de “À fracionários” existentes entre À0 e À1 e, naturalmente, em novos teoremas que estivessem de algum modo na dependência deste novo axioma. Caso daí sobreviesse qualquer problema de consistência, obviamente, ele não seria fruto desta adjunção, mas sim herdado do sistema axiomático de Zermelo-Fraenkel.

Para a grande maioria dos matemáticos - exceção dos finitistas - o assunto, no essencial, foi desde então dado como liquidado. Entretanto, não nos parece que devesse ser assim, pois, na própria intuição do criador da teoria dos tranfinitos, a hipótese do contínuo se afigurava como de valor crucial para assegurar a saúde da teoria e daí, ao que parece, a dele próprio.

A nosso juízo, não é difícil imaginar porque assim pensasse. Caso comprovada a existência de um grau de infinitude intermediário entre os enumeráveis (À0) e os reais (À1), a indagação talvez pudesse ser reiterada e assim indefinidamente, o que daria aos reais um caráter de “inesgotabilidade suprema ou de segunda ordem”, impedindo fosse a infinitude dos reais concebida como um infinito atual, portanto, ultrapassável. Como conseqüência final, a inconsistência que o próprio Cantor já constatara na noção de conjunto de todos os À se manifestaria num nível ainda bastante “baixo” de sua seqüência de transfinitos, podendo arruinar o restante de sua construção teórica. Tudo isto é uma pressuposição, certamente, mas que nos parece até bastante razoável.

Se tudo isto é verdadeiro, a demonstração de Cohen é apenas o começo da história; estamos convictos de este seja o caso, o que implica a necessidade de uma continuação. Pelo menos Cantor, se vivo e são, temos certeza, concordaria com isto. Vê-se, pois, que não estamos hoje sós, pelo menos espiritualmente.

Nosso objetivo aqui é tomar o feito teórico de Cohen como uma provocação e, sobretudo, uma oportunidade para que se revisite a teoria cantoriana dos conjuntos transfinitos em seus fundamentos.



2. Os monóides livres e a essência do seu elemento neutro

Na matemática conjuntista (9), a noção de monóide está na essência do ser matemático, na medida em que a própria noção de conjunto a implica (10). Uma condição necessária para que C seja um conjunto é que exista o conjunto de todos os seus subconjunto, isto é, seu conjunto potência P(C) e que este se constitua num monóide - contenha um elemento neutro (o conjunto vazio), seja fechado e associativo para a operação de união de conjuntos.

Dentre os monóides temos a importante classe dos monóides livres (ML), gerada por um conjunto A= {a0, a1,a2, ..., aN} e uma operação /, de sorte que os elementos do monóide são todas as combinações com repetição dos elementos de A articulados pela operação /. Para que o monóide ML(A) contenha um elemento neutro a esquerda e a direita, deve existir em A um elemento a0 tal que ai/a0 = a0/ai = ai para todo ai pertencente a A.

Um conjunto A de um só elemento a0 provoca a degenerescência do monóide livre, visto que ML(A)=A . Como teremos oportunidade de ver adiante, este monóide é o elemento nulo em geral da categoria dos monóide, ou seja o nada de monóide (M0).

Assim, o mais simples dos monóides livres não degenerados - monóide livre básico(MLB)- terá que ser gerado por um conjunto A de dois elementos, sendo ele formalmente único. O MLB seria, portanto, constituído de um conjunto gerador A = {a0, a1} e uma operação / articulando, reiteradamente, os elementos de A:

MLB= {a0, a1, a0/a0, a0/a1, a1/a0, a1/a1, a0/a0/a0, a0/a0/a1, a0/a1/a0, a1/a0/a0, a0/a1/a1, a1/a0/a1, a1/a1/a0, a1/a1/a1, a0/a0/a0/a0, a0/a0/a0/a1, ...}

Tendo-se em conta que a1/a0 = a0/a1 = a1, tem-se então:

MLB = {a0, a1, a0, a1, a1, a1/a1, a0, a1, a1, a1,a1/a1, a1/a1, a1/a1, a1/a1/a1, a0, a1, ...}, que, suprimidas as repetições, resulta em:

MLB = { a0, a1, a1/a1, a1/a1/a1, ...},

Associando-se a1 ao número 1, a0 ao número 0 e / à noção de sucessor (+1), MLB torna-se o monóide dos números naturais. Mas esta interpretação não é única, pois podemos alternativamente associar a1 ao número 2, a0 ao número 0 e a operação / à noção de sucessor (+2) e MLB torna-se-ia o monóide dos números pares. Temos aí a mesma dificuldade que afeta os axiomas de Peano, que não geram apenas os números naturais, mais uma quantidade infindável de seqüências infinitas enumeráveis.

O elemento neutro ou nulo, que habitualmente leva o índice zero - como é costume entre os matemáticos, ainda que nem sempre conscientemente -, serve para representar a negação/afirmação da essência da “classe” considerada, pois esta é precisamente a virtude fundamental do zero na seqüência dos naturais. O zero é o “nada qualificado”, o número que é nada de número, assim como o conjunto vazio é o nada de conjunto (10). Estas entidades (zeros, neutros, nulos, operador identidade, automorfismos etc.) servem para ajudar a conferir autonomia à estrutura formal a que vão pertencer. O que se quer do zero é que ele nos faça esquecer a pergunta ontológica leibinziana: a pergunta pelo ser ou pela origem dos números, vale dizer, por que há números e não, tão somente Nada. Com o zero “presente”, os números ganham uma autonomia, ainda que artificiosa; doravante, quando instalamo-nos no mundo dos números, o fazemos milagrosamente, lá ficamos e não temos mais como sair (a não ser por um milagre reverso).

Vê-se assim que o elemento neutro ou nulo inicial de uma “seqüência substantiva” fica parcialmente definido de modo retroativo, em função justamente do seu “elemento substantivo” ou “elemento um”. Exemplificando: seja um MLB (o mesmo valeria para o sistema axiomático de Peano), com a operação / representando a noção de sucessor; se fizermos a1=1, teremos a0 = 1 = 0, 0 significando nada de número natural. Se no entanto fizermos a1= 2, teremos ainda a0 = 2 = 0, porém agora 0 significando nada de par. Se a1= abacaxi a0 = abacaxi= 0, 0 significando nada de abacaxi.

Existe o mal habito de tentar escamotear esta problemática dando a impressão de que se pode gerar conjuntos a partir do conjunto vazio, o que é um absurdo. Na seqüência Æ, {Æ}, {Æ, {Æ}}, {Æ, {Æ}, {Æ, {Æ}}} , ...o símbolo Æ não quer dizer nada, pois é um invariante de todos os elementos da seqüência; o que conta mesmo é o número de colchetes seguidos fechando cada uma das expressões, de modo que só retroativamente ficamos sabendo que em Æ a informação está em que nele falta qualquer colchete. Bem melhor seria se escrevêssemos: { }, { }, {{ }}, {{{ }}}, ...
Isto ainda não é tudo: o sentido do elemento neutro ou nulo depende também da operação de geração, o que se pode facilmente compreender mediante um exemplo bastante simples. Consideremos o MLB fazendo-se a1=1; neste caso, a0 = 1 , isto é, nada de 1. O sentido de a0 não está completo, pois dependerá ainda do sentido da operação /. Se tomarmos / como sucessor de, a0 = 1 = 0, 0 sendo então entendido como nada de número natural. Caso mantivéssemos o sentido da / e fizéssemos a1= 2, então a0 = 2 = 0, 0 sendo entendido então como nada de número par. Entretanto, ainda mantendo a0 = 2, poderíamos mudar o sentido da operação / para aquele de exponenciação, ou seja, a1/a1= a1.a1, de sorte que MLB tornar-se-ia a seqüência 2, 2, 2x2=22, 2x2x2=23, ...sendo óbvio, então, que a0 não mais teria o valor 0, mas a0= 2 =20=1, ou seja, o nada de exponencialidade.



3. Os números “transfinitos cantorianos”

De modo geral faz-se a apresentação construtiva dos números transfinitos a partir dos números naturais, à semelhança da geração de conjuntos enumeráveis a partir do conjunto vazio. Isto nos parece um equívoco, que vai se transformar no principal obstáculo à justa compreensão da questão da hipótese do contínuo.

Na construção dos transfinitos, na medida em que os queremos caracterizar como números, teremos que concebê-los também como formando um monóide livre básico. Seu conjunto gerador seria {À0, À1} onde À0 é o elemento nulo, por enquanto, concebido apenas como nada de À1. A operação / é tal que:

a) por definição, Ài/À1 =Ài+1 i ³ 1, de sorte que À1/À1 =À2; À1/À1/À1= À2/À1 =À3; etc.

b) Ài/Àj = 2Ài+j-1 para todo i, j ³ 1 de sorte que, À2 =À1/À1 = 2À1+1-1= 2À1; À3 =À1/À2 = 2À1+2-1= 2À2 = 22À1; etc.

Agora, sim, nos é possível determinar o conteúdo positivo de À0: À0 deve ser tal que 2À0 = À1 ou seja, À0 =log2 À1.

Tomando-se À1 como a cardinalidade dos reais, À0 fica univocamente determinado como sendo a cardinalidade dos naturais. Ora, como tanto À0 quanto À1 são infinitos, a verdadeira natureza de À0 é, pois, ser nada de contínuo.

O conjunto dos À forma um monóide, tendo-se em conta que sobre ele está definida uma operação/, tal que:

a) Ài / Àj = Ài+j

b) Ài / (Àj / Àk ) = (Ài / Àj) / Àk

c) Ài / À0 = À0 / Ài = Ài



4. A hipótese do contínuo

A questão da existência ou não de um cardinal transfinito intermediário entre os naturais e os reais, isto é, entre À0 e À1 só aparece como indecidível na medida em que assumimos um processo construtivo concebido a partir dos naturais, isto é, de À0, à semelhança do que ocorre implícita e incorretamente nos axiomas de Peano, que partem de 0 (a priori) e não de 1, o na geração dos conjuntos finitos feita a partir do conjunto vazio. Já definida a natureza da operação / é uma questão de opção identificar À1, como fizemos, com os reais e deduzir que À0 é a cardinalidade dos naturais ou infinito enumerável. Neste caso, a hipótese do contínuo é necessariamente verdadeira.

Entretanto, nada impede que se identifique À2 = 2À1 com os reais, caso em que À1 passa a Ter uma cardinalidade intermediária entre À0 e À2, o que implica, naturalmente na falsidade da hipótese do contínuo.

Entretanto, podemos se começarmos a construção a partir de À1 identificado como a cardinalidade dos reais, a hipótese do contínuo passa a ser verdadeira por definição, pois À0, como deveria mesmo acontecer, só ganha o seu sentido a posteriori, não deixando qualquer possibilidade de se pensar um cardinal intermediário entre ele e À1. A questão deixa de ser de decidibilidade, para se tornar uma questão simplesmente destituída de sentido.



5. O sentido teológico dos números transfinitos


20 de maio de 1999

Notas

1.Números algébricos são aqueles que resultam de equações polinomiais - a0xn+ a1xn-1+ a2xn-2+ ...+an-1x+ an=0 - com coeficientes a0, a1, a2 , ...an inteiros.

2. Conjunto de trabalhos publicados ente os anos de 1871 e 1884. Ver HAHN, Hans, Infinity in The World of Mathematics, v. III, pp.1593-1611, London, Allen & Unwin, 1961.

3. Cantor batizou seus infinitos com a primeira letra do alfabeto hebraico (esdraico). Recordemos que ele é de uma família judia emigrado de São Petersgurgo e, após, convertida ao cristianismo protestante.

4. HAHN, op. cit.

5. SIERPINSKI, Waclaw. Hypothèse du Contunu. Warszawa-Lwów, Hafner, 1934

6. GÖDEL, Kurt. La consistência del axioma de elección y la hipótesis generalizada del continuo in Kurt Gödel - Obras Completas, Madrid, Alianza Univ., 1981.pp. 192-194

7. COHEN, Paul J. Set Theory and the Continuum Hypothesis. N. York, W. A. Benjamin, 1966 . Existe tradução portuguesa em O Teorema de Gödel e a Hipótese do Contínuo, Lisboa. F. K. Gulbenkian, 1979.

8. FRAENKEL A.A., BAR-HILLEL, Y., LEVY A. Foundations of Set Theory. Amsterdam, North-Holland Pu., 1973.

9. O contraste aqui implícito é com a matemática categorista, mas que também não foge à “lógica da monoidicidade”. Ver SAMPAIO, L. S. C. de A Matematicidade da matemática surpreendida em sua própria casa, nua, na passagem dos semigrupos aos monóides. Rio de Janeiro, 1997 in 7 Ensaios a partir da lógica ressuscitada, Rio de Janeiro, Ed. UERJ 2000

10. FRAENKEL A.A op. cit.

SAMPAIO, L. S. C. de Noções elementares de lógica, v. I. Rio de Janeiro, ICN, 1988.

10. BOOLE, George. An Investigation of The Law of Thought. N. York, Dover, 1958

11. SAMPAIO, op. cit

12. Ibid.

13.O operador associado à lógica do enésimo excluído é um operador X tal que Xn-1(y))=y e cujos valores próprios são as raízes n de 1. Assim, no caso da lógica clássica ou do terceiro excluído, o operador associado será A tal que A2(y))=y, cujos valores próprios são 1 e –1. Insistimos na palavra adequado porque, para Heidegger, a verdade científica, lógico-formal, é adaequatio em contraposição à alétheia grega.

14.

15. Nathalie CHARRAUD, Infini et Inconscient – Essai sur Georg Cantor. Paris, Anthropos-Economica, 1994. Este é um interessantíssimo trabalho sobre Cantor e suas concepções sobre o infinito, que consegue dar continuidade à linha de pesquisa inaugurada por Imre Hermann acerca da problemática lógica (ou matemática) e o inconsciente. Só poderia ser feito, obviamente, por alguém com sólida formação matemática e analítica (lacaniana), como é o caso da autora.

16. HERMANN, IMRE. Parallélismes. Paris, Deoël, 1980.

17. Intensivo aqui se contrapõe a extensivo, uma distinção que vem dos estóicos. Sentido extensivo é o conjunto de referentes a que um termo se aplica, e sentido intensivo é aquele dado por um conjunto articulado de termos considerado equivalente ao termo em questão. Nesta última acepção o termo precisa fazer parte de um sistema dotado de uma sintaxe. A matemática formalista pretenderia reduzir todo sentido à pura intensividade.

18. SAMPAIO, Luiz Sergio C. de. A matematicidade da matemática surpreendida em sua própria casa, nua na passagem dos semigrupos aos monóides. op. cit.

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