5.4.17

A dupla problemática da auto-subsistência dos entes matemáticos

A problemática dos fundamentos referente aos entes, a que não fazem exceção os entes matemáticos (estruturas formais), é o da sua auto-subsistência, que só se pode superar pela sutura das feridas deixadas pelo seus des-ligamentos do Nada e do Absoluto. Não se trata só da questão ontológica - por que há isto e não tão apenas Nada ? -, mas igualmente da questão “teológica”: por que há isso e não tão apenas o Absoluto em sua constitutiva auto-suficiência? Por que o Absoluto, como tal, não se basta? Em que a Criação pode trazer algum consolo a imensa solidão divina? Elas tratam, respectivamente, da origem e da destinação (ou do sentido) dos entes, no caso aqui em pauta, dos entes matemáticos.

Não podemos desconsiderá-las, é verdade, mas também não podemos sustentá-las em sua plenitude, pois a presença destes extremos, por si só, diluiria a própria autonomia e significação dos entes considerados que, afinal, é aqui nossa pré-ocupação maior. Vem de longe a sabedoria: num extremo, o Nada, diante do qual, só há a angústia, portanto, nada que possamos realmente ver; noutro extremo, o Absoluto, pronto para cegar-nos.

A única solução é, pois, suturar estes des-ligamentos o que, consoante seu caráter traumático, deixarão marcas profundas - elas são a presença de uma ausência extrema, por isso, de um incontornável semblantediferencial ora paradoxal, ora incompleto.

A marca do des-ligamento na origem, a temos visível no próprio corpo - o umbigo. No mundo da matemática os umbigos estão por toda parte: o zero (o número que não conta), o conjunto vazio (o conjunto que nada ajunta), o operador identidade (o operador que atuando, deixa tudo tal qual), o automorfismo (que remete a, de si a si próprio) etc. Como já tivemos oportunidade de mostrar, esta questão foi escamoteada por Cantor em sua teoria dos números transfinitos através do expediente de considerar a cardinalidade da seqüência ilimitada dos números naturais como o menor dos seus alefes, e não, como seria razoável, o nada de infinitude, ou seja, a classe dos conjuntos finitas de inteiros. Na verdade, Cantor inicialmente fez como devia, mas teve o pre-sentimento que isto lhe traria sérios desafios, e recuou.

A questão do des-ligamento com respeito ao Absoluto nos é também familiar, só que pelo avesso, vale dizer, como vivência religiosa (re-ligamento). Em matemática ela aparece na questão do infinito ou do maior dentre eles, na problemática da consistência da noção de conjunto de todos os conjuntos e em situações semelhantes.

Também esta questão foi escamoteada por Cantor na teoria dos transfinitos quando ele admite implicitamente que a desigualdade 2 Àn > Àn vigore para qualquer que seja n. Isto quer dizer que seja qual for a instância n considerada, a cardinalidade de qualquer de seus conjuntos será menor do que a cardinalidade de seu respectivo conjunto potência.

Assim, se ele faz da infinitude dos naturais (não esquecer: para ele À0, para nós À1) um infinito atual, em contrapartida faz da infinitude da seqüência dos À um infinito eternamente potencial. A inconsistência do conjunto de todos os À será sua conseqüência inelutável. Trata-se de uma “solução” histérica (16) para a questão do Absoluto, similar àquela que Bertrand Russell daria (ou adiaria indefinidamente) mais tarde à questão dos paradoxos, ao propor sua teoria dos tipos.


4. Uma visão sumária, mas essencial da teoria dos transfinitos de Cantor

Para chegarmos a uma compreensão um pouco mais integrada da essência da teoria cantoriana dos números transfinitos, é importante atentarmos ainda para dois de seus momentos diferenciais.

O primeiro é o corte que acabou se localizando numa das fronteiras da teoria, portanto imperceptível de sua perspectiva interna. Trata-se da passagem do finito ao infinito, em que se toma como critério diferencial a possibilidade ou não de existência de um subconjunto próprio de cardinalidade igual á cardinalidade do conjunto de referência. Tomando-se SpX por símbolo de subconjunto próprio do conjunto X, C(X) por cardinalidade do conjunto X, a questão se resumiria em: existe SpX tal que C(SpX) = C(X)? Não existindo, o conjunto X será dito finito, caso contrário, infinito. Este critério distintivo acabou sendo utilizado por Dedekind para a definição mesma de conjuntos infinitos - conjunto que possui pelo menos um subconjunto próprio em que ambos têm cardinalidades idênticas. Isto, que a primeira vista parece muito simples e natural, veremos adiante, é bastante problemático, só não sendo gritantemente falso em razão da já assinalada escamoteação da problemática ontológica, feita através da atribuição do valor À0 aos infinitos enumeráveis.

O segundo corte acontece internamente à teoria e se refere à passagem do infinito discreto ao infinito contínuo. Todos os alefes são iguais à 2 elevado à potência do alefe anterior, isto é, Ài = 2Ài-1 e, ao mesmo tempo, 2Ài-1 > Ài-1, do que imediatamente decorre Ài > Ài-1. Ora, a fórmula Ài = 2Ài-1 só vale para i ³ 1, deixando de fora justamente À0. É ela, portanto que na teoria faz a diferença entre o infinito enumerável discreto e o infinito contínuo ( reais e subsequentes).

Estas características, tendo como pana de fundo a “ausência das marcas de sutura relativa aos extremos”, estão sinteticamente representadas na figura 1, preservada a adjudicação dos alefes feitas pelo próprio Cantor. Nela e nas próximas figuras o símbolo EY representa um conjunto genérico de cardinalidade Y.



Figura 1. Os transfinitos de Cantor


5. A re-inserção dos transfinitos e suas conseqüências

Num primeiro momento, levando em conta as críticas até agora feitas à teoria cantoriana dos transfinitos, estaríamos obrigados a lhe incorporar os elementos referentes às duas problemáticas extremas - ontológica e “teológica”. Para tanto, de um lado, faríamos com que À0 passasse a designar a cardinalidade genérica dos conjuntos finitos (logo discretos), deixando que À1 designasse daqui por diante a cardinalidade dos infinitos enumeráveis discretos (os números naturais). Do outro lado, forçaríamos a que a seqüência dos alefes se detivesse num valor N, em princípio, tão grande quanto se desejasse. ÀN seria então considerado como a cardinalidade máxima possível e, desta sorte, marca da ausência do Absoluto entre os conjunto transfinitos. Como por definição nada poderia haver de maior, aí incluído o seu próprio conjunto potência, teremos que ter necessariamente ÀN = 2ÀN. Ver figura 2, lembrando que nela já vigora a nova adjudicação dos alefes; inclusive a representação dos transfinitos cantorianos da figura 1 anterior - que foi ali inserida com o propósito de facilitar comparações.

Se é verdade que a absorção da problemática ontológica amplia nossa compreensão da essência dos entes transfinitos, ela também gera um grave problema aparentemente inexistente na teoria cantoriana, o que nos obriga a um segundo momento crítico.

Trata-se do problema da discriminação finito/infinito. Com À0 designando a cardinalidade dos conjuntos finitos em geral, seus subconjuntos passam a ter também esta mesma cardinalidade genérica À0, o que simplesmente arrasa com a discriminação cantoriana de que só os conjuntos infinitos gozariam de tal propriedade, aquela mesma que Dedekind elevara ao estatuto de definição.



Figura 2. Os transfinitos em sua generalidade

Mas por que estaríamos em dúvida se esta é, justamente, uma propriedade comum a todos entes que representam o nada de sua classe de entes? Do mesmo modo, por exemplo, que o subconjunto do conjunto vazio é idêntico ao conjunto vazio, um subconjunto de conjunto tido como nada de infinito (À0) é igualmente nada de infinito (À0).

A discriminação de Cantor só nos parecia simples e natural devido à ambigüidade da sua noção de idêntica cardinalidade, uma coisa dentro, outra bem diferente fora do âmbito transfinito. A noção de correspondência biunívoca em âmbito finito ao ser estendida ao âmbito se perde na ambigüidade, pois passa a depender do modo pelo qual ela se efetiva. Podemos facilmente convencermo-nos disso meditando um pouco sobre a simples correspondência entre números naturais e números ímpares. É verdade que se pode estabelecer a correspondência o 1 ao 1; o 3 ao 2; o 5 ao 3, e assim indefinidamente. Mas onde estaria proibido também fazer o 1 corresponder ao 1, deixando, a seguir, o 2 num saco a parte; o 3 ao 3, deixando após o 4 ainda no mesmo saco a parte; o 5 ao 5, deixando o 6 a parte etc. etc. Ao final teríamos esgotado a correspondência dos ímpares com os naturais sobrando-nos ainda um saco com uma infinidade de naturais pares a parte.

Esta ambigüidade pode ser facilmente superada, seja qual for o nível de cardinalidade considerado, estabelecendo-se uma nova conceituação para idêntica cardinalidade: Dois conjuntos serão ditos de mesma cardinalidade se for possível estabelecer, num número finito de passos, uma correspondência biunívoca entre um deles e um subconjunto do outro, com a condição de que a parte excedente deste último seja de mesma cardinalidade que aquela do primeiro. Esta noção reformulada de idêntica cardinalidade capta a essência mesma da cardinalidade infinita em Cantor e a faz imune à variação dos modos de operar a correspondência, agora sim, de característica similar àquela da cardinalidade em âmbito finito. Em contrapartida, todos os conjuntos finitos passam a ser equivalente, o que, do ponto de vista da infinitude, seria mesmo uma obviedade.

A discriminação finito/infinito repousava assim, clandestinamente, na diferença de conceituações de identidade de cardinalidades, uma para cada um dos âmbitos considerados. Esta, a propósito, é uma das “motivações ocultas” para a elisão, na teoria cantoriana dos transfinitos, da problemática ontológica, que tanto vimos criticando.

Adotando-se a nova proposta para o caso acima em que confrontávamos naturais e ímpares, os dois modos pelos quais se estabelece a correspondência passam a se eqüivaler. Numa, ela seria completa e, na outra, haveria uma sobra, a dos números pares, porém, estes se fariam facilmente corresponder, um a um, aos ímpares. Em âmbito finito a utilização da nova conceituação leva à imediata identidade de cardinalidade (nova) de todos os conjuntos finitos, logo, de todo conjunto com todos os seus subconjuntos. O antigo conceito de cardinalidade idêntica estrito senso, não é preciso enfatizar, continua valido e útil em âmbito apenas finito.

Vê-se, pois, que a re-adjudicação dos alefes faz com que a distinção entre finito e infinito deixe de ser fronteiriça, para se tornar interna à teoria e também a faz carente de um novo critério sobre o qual estribar-se. A nosso juízo, este pode ser encontrado na propriedade 2Ài-1 > Ài-1, só válida para i ³ 2 ou, o que é o mesmo, 2Ài > Ài, para i ³ 1. Assim sendo, tão somente À0 deixa de obedecer a esta exigência visto que sua mera condição de “nada de infinitude” obriga a que Sp(E À0) = À0.

A distinção, entre infinitude discreta (naturais) e infinitude contínua (reais) fica apenas por conta da condição Ài = 2Ài-1, tal como já encontrada em Cantor. Sendo ela válida somente a partir de i ³ 2, dela ficam automaticamente excluídos À0 e À1. Ela não pode ser nem mesmo pensada e ainda menos escrita para À0; para À1, já vimos, À1 > 2À0. O sentido profundo deste critério distintivo entre o discreto e o contínuo está em que a nível deste último nem sempre se pode ter caracterizações extensivas, um por um) (17); em e tratando de entidades contínuas, só podem ser efetivamente definidas de modo intensivo. A expressão Ài = 2Ài-1 é a garantia de que a diversidade em Ài pode ser completamente descrita com os recursos diferenciais de Ài-1. Este é o caso dos reais, que podem ser descritos como seqüências infinitas enumeráveis de algarismos, embora não sejam infinitamente enumeráveis; em termos simbólicos, para os reais, vale a expressão À2 = 2À1 > À1. Da expressão À2 = 2À1 tira-se imediatamente que log 2 À2 = À1, ou seja, que a quantidade de informação de À2 é À1. Não se trata de uma mera coincidência formal; os alefes são construídos com a quantidade de informação do nível anterior que nos dá a garantia da mais perfeita e eterna monotonia (não é precisamente este o propósito da matemática, assumido por nossa cultura obsedada pelo cálculo de todas as coisas?!). Absolutamente nada pode nos surpreender a partir do contínuo (À2), valendo pois o preceito wittgensteiniano que se deve calar sobre o que não esteja nos limites do permitido falar (no caso, decretado pelo nosso onipotente Cantor).

Sendo À1 > 2À0, ficamos certos de que À1 contém maior quantidade de informação do que se pode expressar com qualquer conjunto finito (À0) de elementos. Logo, À1 precisará ser especificado de modo independente, o que vem a ser realmente o caso. Como já tivemos oportunidade de mostrar (18), À1 vai ser definido como o mais elementar dos monóides livres.



6. Duas indagações e duas respostas apressadas e provisórias


Teríamos agora duas grandes indagações finais:

a) Deve-se manter N em aberto? Caso esta questão seja indecidível, o que nos parece ser o caso, haveria como justificar a imposição N=2? Como sustentar por uma via direta que para os reais, Ài = 2Ài, ou seja, À2 = 2À2 ?

b) Continuaria ainda válida a demonstração de Cohen relativa à indecidibilidade da hipótese do contínuo; em caso afirmativo, qual o seu sentido mais profundo?


Quanto à primeira questão, acreditamos que seja de fato indecidível e que, portanto, tenhamos que lhe dar uma resposta pragmática. Nesta circunstância, deveríamos optar pela matemática mais simples, que é aquela em que N=2. Nada haveria de mais complexo (relevante) do que os reais. Ver figura 3.



Figura 3. Um mundo apenas real

Esta escolha pode ser justificada considerando que os alefes constituem um mero formalismo, que na verdade o que está verdadeiramente em jogo são noções “qualitativas” ou estruturais que só encontrariam sentido entre os primeiros alefes: de À0 a À1, teríamos a passagem do finito discreto ao infinito discreto; de À1 a À2, a passagem do infinito discreto ao infinito contínuo; daí por diante, nada de novo.

Seria preciso examinar se esta decisão permite absorver os espaços de dimensão contínua de Hilbert. A dualidade espaço real/espaço de freqüência parece justificar a esperança de uma resposta positiva.

Quanto à segunda questão, consideramos que a demonstração de Cohen se mantenha o que nos levaria a optar novamente pela matemática mais simples, onde a hipótese do contínua seria tida como um axioma. Ou será que é justamente a possibilidade de inúmeros e crescentes níveis de cardinalidade “fracionárias” que leva à inesgotabilidade radical dos reais que Cantor tanto temia?

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