Um exemplo por nós já assinalado (9), aqui mesmo no terreno lógico-matemático, foi o de Boole, escolhendo, no sistema algébrico que leva seu nome, os números 1 e 0 para representar os valores de verdade verdadeiro e falso (10). Até aqui, nenhum problema. Porém, quando saímos do âmbito da lógica clássica (da qual a álgebra de Boole intenta ser um modelo algébrico) vamos descobrir quanta dificuldade aquela simples e aparentemente natural adjudicação acabou trazendo ao desenvolvimento da lógica.
Sabemos hoje que as lógicas são múltiplas e que a cada uma delas está associado um operador característico, cujos valores próprios (11) são a exata representação formal dos valores de verdade da lógica em questão. Ora, o operador que representa a lógica transcendental ou da identidade (12) é, naturalmente, o operador identidade - operador I tal que I(I(y))=I(y) ou, de maneira abreviada, I2(y))=I(y) -, que possui como valores próprios 1 (ser) e 0 (nada), justamente os valores que Boole escolheu para representar os valores de verdade da lógica clássica ou do terceiro excluído, quando o adequado (13) teria sido 1 e –1. Em decorrência disso, ser e nada passam a se confundir, respectivamente, com verdadeiro e falso. A trapalhada estava assim feita e para dissolvê-la seria necessário, contando com a sorte, algo assim em torno de 100 anos.
Quando da atribuição de seus alefes (À), Cantor foi vítima de uma enorme infelicidade significante, de porte semelhante àquela que acometera a Boole. Com um agravante: sua adjudicação também atentava contra um princípio de representação já bem tradicional na matemática.
Assim, ao tratar dos transfinitos, Cantor deveria ter reservado o À0 para a classe dos transfinitos que são nada de transfinito (ou nada de infinitude Ào = À1), vale dizer, para a classe (de equivalência) cuja cardinalidade é anterior àquela do primeiro número “subtancialmente” transfinito.
A cardinalidade dos infinitos enumeráveis, portanto, deveria receber a denominação À1, à exata semelhança do que representa o número 1 no conjunto dos naturais, o primeiro número que realmente conta. Não fica, pois, a menor dúvida de que o significante (ou nome) Ào deveria caber à cardinalidade da classe dos conjuntos finitos, e não aos naturais.
Alguém poderia redargüir que engano mesmo estava sendo o nosso, que o Ào da teoria cantoriana não seria o “nada de infinito”, mas o “nada de infinito contínuo (ou real)”. Sim, até poderia, mas então não se trataria mais de uma teoria dos transfinitos, mas de uma teoria dos “trans-infinitos enumeráveis”, onde Ào seria o seu “elemento zero”. Correto, do ponto de vista lógico, mas eticamente insustentável!
Tudo isso, como se pode ver, bem acaciano! A questão que fica é a de se saber o porquê de um matemático da estatura de Cantor ter cometido (ou ter sido acometido de) um equívoco assim tão chinfrim? Seria este um problema de natureza psíquica para alguém, como Nathalie CHARRAUD (16), tentar explicar ou - perguntaríamos a Heidegger lá no Céu, sempre-vivo -, a mera manifestação de algo que lhe era transcendente, a vicissitude de ter o Alemão como língua mater (uma compensação, obra da justiça divina, pelo fato do Alemão já se constituir na única língua realmente filosófica ?!).
Em que pese possa assim parecer, não estamos só brincando. Como teremos oportunidade de demonstrar um pouco mais adiante, esta infelicidade significante (e quem sabe, qualquer uma?!) acabou vindo a calhar, funcionando até hoje como um biombo para a questão da origem dos entes transfinitos, para o velamento da diferença ontológica no sentido mesmo heideggeriano - por que transfinitos e não tão somente nada de infinito, vale dizer, a finitude?
O que importa mesmo agora é corrigirmos a infelicidade cometida: daqui por diante Ào passa a designar a cardinalidade de um conjunto finito (tendo como paradigma, talvez, o conjunto dos algarismos da base de numeração, {0, 1, 2,...9} ou simplesmente {0, 1} ?); À1, a cardinalidade dos conjuntos infinitos enumeráveis (dos naturais, por exemplo); À2, a dos reais, e assim sucessivamente, se é que isto vá, doravante, fazer ainda algum sentido. O que na nomenclatura cantoriana é Ài, na nossa é Ài+1, reservando-se, nesta última, o significante À0 para representar a cardinalidade dos conjuntos finitos em geral.
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