6.4.17

A lógica, era uma vez, a favor da cultura

No Brasil, invariavelmente, se afirma que o social possui três grandes aspectos - o político, o econômico e o social. Mas, que diríamos do corpo humano dividido em cabeça, tronco e corpo humano, ou, da Santíssima Trindade e suas três Pessoas, o Pai, o Filho e a Santíssima Trindade? Um absurdo, mesmo para uma criança de 12 anos, ou até menos. Por que centenas, milhares de pessoas, em geral, membros de nossas elites - os que acham que podem porque sabem falar destas coisas -, repetem à exaustão um tal absurdo: o social tripartido em político, econômico e social?

Não por capricho, mas por simples questão de lógica, os três grandes aspectos do social são o político, o econômico, sim, e o cultural. Formada por individualidade autônomas, qualquer sociedade constitui um ente dialético, síntese do um e do múltiplo, de sorte que nela algo terá necessariamente que jogar no sentido da unidade - este é o papel da cultura -; algo, no sentido da diferença - este é o papel da economia; e, se ambas funcionam bem, cabe ao político a impossível arte de harmonizá-las no seu mais elevado nível. Tão apenas por isso fica evidente que a política como arte do possível é pura ignorância, a justiça econômica, pior do que o círculo quadrado e o ocultamento da cultura, uma traição à integridade social, seja qual for o âmbito considerado, do local ao nacional.

Agora fica fácil entender o porquê deste gosto unânime pelo absurdo, em outras palavras, a quem interessa o crime (contra a lógica). Quando se busca saber o que entendem por social, este que é a terça parte de si mesmo, constata-se que sua referência é a miséria, a falta de escola, as deficiências de cuidados médicos, a carência de digna moradia e similares, ou seja, o econômico outra vez, só que desta feita pelo avesso e mascarado. Trata-se da banda podre do econômico (do modelo), para que a outra banda, pela artimanha, torne-se o econômico bom (do mesmo modelo). Um exemplo didático primoroso de fobia inoculada!

Mas os rendimentos desta tecnologia conceitual em busca da qualidade total na arte do engodo vão bem mais além. Ocultando-se o cultural, automaticamente, tira-se de cena a grande maioria do povo brasileiro, que tem quase nada de poder econômico, zero de poder político e é apenas rico de criatividade e tradições culturais. É a velha luta de classes que, todos sabem, não existe. E como o peso dos de África e das populações autóctones na formação da sociedade brasileira é sobretudo cultural - excetuando-se, na política, um zás de rebeldia e, no econômico, apenas pés e braços, mas nada de livre iniciativa -, consegue-se mais um valor agregado, imaginário, o tão almejado embranquecimento da população, pelo menos, do pescoço para cima! Entretanto, o mais grave, é que assim oculta-se o preciso lugar a partir do qual poder-se-ia pensar existencial e estrategicamente a sobrevivência da Nação, visto que a globalização que a ameaça é, antes e sobretudo, uma insidiosa forma de imperialismo cultural.

Há ainda muitas outras formas de dis-pensar a cultura: por exemplo, trocá-la pelo mal intencionado psico-social , fazer o elogio do multiculturalismo como um fim e não como meio, aliás o único, para se construir uma nova cultura ou, simplesmente, ameaçá-la puxando do coldre o revolver...Mas isto fica para uma próxima vez, se possível.


Luiz Sergio Coelho de Sampaio
Rio, 24/10/99

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