Aqui nos trópicos, em geral, alternamos entre o intelectualismo basbaque do mazombo e, às vezes, a antropofagia. No primeiro caso, se é para ficar na magra dieta, o melhor mesmo é regressar ao “original”. No segundo caso, vale a pena sempre conferir, cuidando, entrementes, para não cair nas mãos de algum malandro ou “herói” nacional. Na psicanálise, não fugindo à regra, reina ainda o velho internacionalismo, o lacanismo, hoje “revigorado” pelo genrismo, e brevemente, é fácil prever, estaremos ingressando, a passos largos de avestruz, no état généralismo. Do lado contrário, antropofágico, vemos apenas o Professor Dr. Magno Machado Dias e seus achados, que deveríamos seriamente considerar. Por desinformação e culpa nossa, é obvio, desconhecemos outros que tais, estando nós sempre prontos a revermo-nos se for o caso.
Entre os achados de Magno destacaríamos a crítica que faz dos já clássicos matemas : ele diz que Lacan ali teria deixado de lado a metade das fórmulas quantificadas, justamente a parte mais substanciosa, onde estariam, de um lado, a Morte, de outro lado, o ‘maneiro’, este último, a fonte de onde de fato emanariam os famigerados “matemas da sexuação”, masculino e feminino, que são por ele rebatizados como, respectivamente, o clássico e o barroco, com o que uniformiza o conjunto de suas designações (43). Ver figura 7.c.
~$x f (x) {0} $x f (x) D {1,0,-1}
"x ~f(x) {0} ~"x ~f(x) I {1,0}
Lógicas fundamentais
Morte Maneiro
Lógicas $x~f (x) I {1,0} ~$x~f (x) I/D {1}
de base "x f (x) D/D {1,-1} ~"x f (x) D {1,0,-1}
Masculinas ou Femininas ou
Clássico Barroco
Figura 7.c – Quadro completo de fórmulas quantificadas
De fato, para definir a sexualidade humana, Lacan lançou mão de tão apenas metade das fórmulas quantificadas que lhe facultava o cálculo de predicados da lógica da diferença. Como já afirmamos, fez destas um uso metafórico para assim gerar os meios significantes de nomeação das lógicas de base, o que não o obrigava, naturalmente, à ser exaustivo neste uso. Durante muito tempo acreditamos que fosse este realmente o caso. Não faz muito tempo (44), motivados pelas relações de precedência que o mesmo Magno desenhara sobre os quatro blocos de matemas (linhas e setas mostradas na própria figura 7.c), decidimos volver e revolver mais a fundo a questão.
Começamos pelo bloco ‘maneiro’. Nele estariam as expressões $x f(x) e ~"x ~f(x) que Magno identifica como, respectivamente, princípio da afirmação e princípio da denegação. Ora, não é difícil perceber que à fórmula $xf(x) deveríamos adjudicar (45) os valores próprios (valores de verdade) 1, 0, -1, o que nos leva a considerá-la sinônima (no âmbito da lógica da diferença) da fórmula ~"xf(x), permitindo-nos afirmar que $xf(x) representa a lógica da diferença mesma (D). Por outro lado, à fórmula ~"x~f(x) devemos associar os valores de verdade 1 e 0, o que faz desta fórmula, no âmbito aqui considerado, um sinônimo de $x~f(x), permitindo afirmar que ~"x~f(x) representa a lógica transcendental ou da identidade (I). Em suma, o bloco ‘maneiro’ de Magno, coincide exatamente com o nosso par de lógicas fundamentais. Que os matemas da “sexuação” em Lacan derivem do ‘maneiro’, assim como as lógicas compostas derivam por síntese dialética generalizada das lógicas fundamentais, é pois a maior das obviedades, depois, naturalmente, de termos dado ouvido a Magno.
Após estas considerações, podemos asseverar que o célebre psicanalista francês não vai a ponto de identificar com exatidão a lógica D, embora chegue a explicitamente requerer uma lógica não-aristotélica. De fato, na lógica aristotélica, pares de lógicas de base se confundiriam: $x~f (x)º~"x f(x) e ~$x~f (x) º "x f(x). Não percebe ele, entretanto, o caráter metafórico que carregam seus matemas; dá um destaque especial à fórmula ~"x f(x), o que bem se justifica, sabemos nós (46), por esta representar a lógica subjacente ao próprio quadro referencial dos matemas (ou das lógicas ali representadas), mas não percebe que ao lado daquela há outra lógica fundamental (a lógica da identidade ou transcendental). Com acuidade, observa Lacan que "xf(x) exige $x~f(x), isto é, se há lei convencional castradora "xf(x), então, necessariamente, há um pai castrador $x~f (x); observe-se que esta é, na verdade, a essência filosófica do teorema de Gödel. Estranhamente, ele não tira daí a conseqüência maior: o estatuto fundamental que é devido à lógica transcendental ou da identidade. Isto leva ao seu mais grave equívoco: desconsiderado o poder da identidade, dissipa-se, a fortiori, a possibilidade de seu retorno para além da diferença, levando-o à convicção que a Aufhebung (e a lógica dialética que lhe está associada) não passasse de um bonito sonho dos filósofos (47). Não se dava conta, contudo, que ele mesmo a incluía entre os seus matemas. Basta observar que ~$x~f(x) designa, “matemicamente”, sem a menor sombra de dúvida ou ambigüidade, a lógica da verdade total e parcial, a velha lógica dialética, platônica e depois hegeliano/marxista. Esta desconsideração da dialética, mesmo depois de por ele mesmo posto seu matema representativo, nos arrasta à perplexidade, que mais cresce quando constatamos que é ele próprio que desvela a especificidade de sua verdade, total, sim, mas também ao mesmo tempo parcial, corrigindo com isto muita gente boa (48).
O grande problema que agora nos resta é o de advinhar quem seria de fato esta misteriosa Morte, que se instalou, a parte, à esquerda, na cobertura deste novo edifício lógico. Ademais, como se articularia ela aos outros blocos de fórmulas quantificadas ou matemas?
O exame atento das fórmulas ditas da Morte, ~$xf(x) e "x~f(x), evidencia, primeiro, que às duas estaria associado um único valor de verdade: o zero. Isto significa, primeiro, que elas não podem representar qualquer uma das lógica conhecidas; segundo; que no âmbito considerado elas são expressões sinônimas, e que portanto neste bloco habita em essência, apenas um e solitário morador. Não é só; podemos ir ainda um pouco mais à frente.
Sabemos que o valor zero é um valor de verdade comum e exclusivo às duas lógicas fundamentais. Na lógica da identidade ele representa o NADA (0) contraposto ao Ser (1), ou o que é o mesmo, o NADA na estrutura da temporalidade {1, 0}. Na lógica da diferença ele representa o ponto de inversão catóptrica, o INDETERMINADO vis-à-vis o Verdadeiro e o Falso, a Esquerda e a Direita, ou, o que diz o mesmo, o INDETERMINADO na estrutura básica da espacialidade {1, 0, -1}. Teríamos aqui dois caminhos a seguir: ou buscar uma noção de “conteúdo” comum a NADA e INDETERMINADO, ou, optar pelo primeiro, o NADA, como se quiséssemos estabelecer uma compensação ao fato que à lógica da diferença já fora conferido o privilégio de informar o quadro referencial para as demais lógicas de base. Deixemos para decidir, se for este o caso, mais adiante.
Quanto à relação deste primeiro bloco matêmico com os demais, o melhor é começar reagrupando as fórmulas quantificadas, dividido-as não mais em quatro, mas em três conjuntos, em que os matemas lacanianos vão constituir um único bloco, para nós, o bloco das lógicas de base. Isto é um procedimento inicialmente intuitivo, mas que vai ser solidamente referendado pelo que se segue.
A partir daí, podemos contar o número de fórmulas deveras independentes em cada bloco. Fica então evidente que o bloco fundamental (‘maneiro’) tem 21=2 elementos; o bloco das lógicas de base, masculino/ feminino em Lacan ou clássico/barroco em Magno, tem 22= 4 elementos e que, para se preservar a regularidade, o bloco dito da Morte, precisaria possuir apenas 20 = 1 elementos, o que vem referendar a identificação anteriormente feita das duas fórmulas nele contido. Caso consideremos o bloco dito da Morte como originário (como quem conta os números inteiros a partir do 0), a seta de determinação deverá apontar da esquerda para a direita; se considerarmos que este bloco só existe pós-determinado, (como quem conta os números inteiros a partir do 1), a seta de determinação deverá apontar da direita para esquerda. Como consideramos esta uma questão apenas convencional, optamos por tão simplesmente superpor as duas determinações, como mostra a figura 7.d.
Figura 7.c – Articulação dos blocos de fórmulas quantificadas
Isto posto, não fica qualquer dúvida de que estamos tratando com os três primeiros membros de um monóide livre (49), cujo elemento um é o par das lógicas fundamentais, I e D. O bloco das lógicas de base, pela exemplaridade, especifica o modo de geração dos elementos subsequentes do monóide, que no caso é a geração através da síntese dialética generalizada, reiterada. O elemento nulo ou neutro do monóide, necessariamente determinado a posteriori, é o bloco dito da Morte, mas que preferiríamos chamar NADA (de lógica ou de pensamento).
Ainda sobre este assunto, alertaríamos que o espaço referencial em Magno continua o mesmo de Lacan: as fórmulas quantizadas da lógica da diferença, tomadas metaforicamente. Dizendo que ambos fazem um uso metafórico da lógica da diferença estamos assumindo implicitamente uma particular perspectiva, um especial ponto de vista que dá precedência às lógicas definidas não por matemas, mas por seus operadores e respectivos valores próprios. Poder-se-ia redargüir que o inverso é verdadeiro, que os matemas representam uma perspectiva tão boa quanto a dos operadores e que, portanto, matemas e lógicas são escrituras eqüivalentes visando o mesmo (referente). Até aqui nada teríamos a objetar, mas ponderaríamos que a questão não está bem aí, mas sim naquilo que entendemos como lógica própria do ser falante. Caso admitirmos que ela está para além de D/D= D/2, ou seja, da gramática, da lei convencional, enfim, do terceiro excluído, tal lógica situar-se-ia obrigatoriamente para além do quadro de referência “matêmico”, que já sabemos formalmente determinado pela lógica D e onde cabe, no máximo, D/D. Caso identifiquemos o ser falante como lógico diferencial D, realmente, para que um quadro referencial mais amplo que aquele? Se, ao contrário, a lógica do ser falante for realmente a hiperdialética qüinqüitária I/D/D (50), ela estará necessariamente para além daquele quadro de referência, como indicamos na própria figura 7.d, na qual, depois do bloco dos matemas, vai indicada a existência de um “bloco” de 23= 8 elementos, onde justamente poderia situar-se a lógica I/D/D. E isto está obviamente além dos limites e possibilidades do quadro de matemas.
NOTAS
43. MAGNO, Machado Dias.......
44. MAGNO, M. D. .........
45.Adjudicação de valores próprio ou de verdade, vimos no capítulo 2 anterior, se faz através da determinação do operador característico da lógica em questão e depois pelo cálculo e interpretação de seus valores próprios. No caso das lógicas de base, expressas pelos matemas, a adjudicação pode ser feita mediante uma receita bastante simples: se aparece f(x), estamos numa perspectiva interna a f(x) podendo pois discriminar 1 e –1; caso contrário, isto é, se o que aparece é ~f(x), a perspectiva é exterior, não havendo a possibilidade de discriminação interna, por isso, entre os valores próprios correspondentes poderá apenas aparecer o valor próprio 1. O valor 0 estará sempre presente a menos que o quantificador o exclua explicitamente. Assim, ~"x~f(x), pela presença de ~f(x) só pode ter valores 1 e 0, e como o quantificador só parcialmente exclui externamente a f(x), os valores próprios associados terão que ser mesmo {1, 0}. Logo ~"x~f(x) designa a lógica transcendental ou da identidade I.
46. No capítulo 2 anterior mostramos como – objetivamente, isto é, através dos valores próprios –, a lógica D (com valores 1, 0, -1), impera sobre as demais lógicas de base, pois os conjuntos de valores próprios de todas as lógicas de base constituem subconjuntos dos valores próprios de D.
47. LACAN, J. O Seminário, l. 20, op. cit. , p. 115
48.De modo geral a verdade da dialética é tida apenas como totalidade, contudo, Lacan vai lhe adjudicar a verdade total e parcial, no sentido em que ela enuncia de fato uma pretensão global, mas sempre feita por uma parte confessa – todo partido político se diz parte, porém sempre pretendendo dizer a verdade da sociedade global. Acerca da questão da verdade examinamos sua história partindo da distinção alétheia/ adaequatio em Heidegger, passamos pela combinatória lacaniana compreendendo as verdades total, parcial, ao mesmo tempo total e parcial e nem parcial nem total, para chegar então a uma compreensão mais abrangente alcançando as lógicas I a I/D/D, considerados ainda seus diferentes níveis onto-lógicos. Para detalhes ver BARBOSA, M. C. As Lógicas – As lógicas ressuscitadas segundo Luiz Sergio Coelho de Sampaio, S. Paulo, Makron Booka, 1998. Cap. 11.
49.O monóide livre elementar é o conjunto gerado pela trinca {n, u , /}, constituído por todas as correntes c=n/u/u/.../u, fechado e associativo em relação à própria operação /, sendo n um elemento neutro para o qual n/c=c/n=c, não importa a corrente c=n/u/u/.../u. considerada. O exemplo óbvio são os números naturais incluído o zero. Eles são gerados pela trica {o, 1, +} e seus elementos são 0, 1, 1+1, 1+1+1, 1+1+1+1, ....ou seja, 0, 1, 2, 3, 4, .... Outro exemplo, seria o monóide livre “informacional” {1, 2, /} cujos elementos seriam: 20=1, 21=2, 2 2=4, (22)2=8, ..., podendo o elemento 2 ser considerado a unidade de informação (bit), o elemento 1, o nada de informação e a operação / a geradora de diversidade a partir de um conjunto de elementos diversos quaisquer. Ver a Outra vez, a matematicidade da matemática in Lógica Ressuscitada, Sete Ensaios, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2000.
50. Acerca do papel do Prof. Dr. Magno Machado Dias na descoberta e caracterização da lógica I/D/D, ver a detalhada nota 17, do capítulo 4 deste mesmo trabalho.
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