6.4.17

A lógica da diferença em meio às demais lógicas



... la théorie de l’inconscient occupe dans ce champ philosophique une place unique. Elle le clôt. Avant elle, manquait l’une des possibilités qui se déduisent du questionnement philosophique. Manquait par là même aussi l’idée même de ce champ. 

Alain JURANVILLE. Lacan et la Philosophie.




O desvelamento da lógica da diferença  responsável pelo pensar da res extensa, do inconsciente e do significante, para citar apenas os três principais , é por si um acontecimento de grande peso filosófico. Assim ocorre, porque a lógica da diferença é uma no conjunto de tão somente duas lógicas fundamentais (2), uma no restrito conjunto das quatro lógicas de base (3), e, por conseqüência, uma no conjunto das cinco lógicas subsumidas pela lógica hiperdialética qüinqüitária (4). Isto tem agora seu peso multiplicado na medida em que observamos que as próprias noções de ‘lógica fundamentais’, ‘lógicas de base’ e ‘lógica hiperdialética qüinqüitária’ só puderam vir à luz em razão mesmo da prévia explicitação da lógica da diferença. E sobretudo: como avaliar o peso de tal acontecimento, quando nos damos conta de que a lógica hiperdialética qüinqüitária se constitui na excelsa e distintiva característica do ser humano, com o que se alcança, afinal, uma base consistente para a construção de uma antropologia filosófica?

Por tudo isto, o seu desvelamento tardio só poderia mesmo provocar um intenso abalo neste que é o mais profundo estrato do saber  o território da lógica , e que vai certamente levar ao seu re-ordenamento geral. Os reflexos disto sobre o vasto território do saber, a nosso juízo, não serão desprezíveis e já estão por toda parte, embora nem sempre reconhecidos como tais.

Pretendemos aqui explicitar a parte mais significativa da complexa trama de relações em que se insere a lógica da diferença. Este é o passo preliminar para que se possa chegar à justa avaliação, em extensão e profundidade, da revolução filosófica ora em curso por conta deste acontecimento crucial que é o desvelamento da lógica da diferença.


A lógica da diferença, metade mais a quase totalidade das lógicas fundamentais

A lógica é um saber que precisa necessariamente dar conta de si mesmo; ela é o saber sobre o pensar que, entre outras coisas, tem também que se pensar, vale dizer, se auto-justificar. Logo, a própria lógica, em geral, é lógico-transcendental, ficando com isto também garantida a existência de pelo menos uma lógica.

Cremos que ninguém irá duvidar da existência da lógica clássica ou formal, e sem que precisemos insistir por agora na existência da dialética, somos desde já obrigados a admitir que as lógicas são várias, havendo entre elas uma de natureza transcendental. Podemos vê-la já operando em Parmênides, dando conta do ser que é, sem vizinhos que o perturbem, visto que o não ser não é, porém, mais facilmente a identificaríamos na modernidade como lógica do sujeito da ciência: trata-se da lógica do cogito cartesiano, do sujeito kantiano, referendado como o eu=eu de Fichte e, ainda, do sujeito fenomenológico husserliano.

Uma função primordial do ser-transcendental é instituir e garantir a identidade, tanto a própria (ser o mesmo), quanto qualquer outra; por esta razão (mas outras também existem) usaremos indiferentemente as expressões ‘lógica transcendental’, ‘lógica do mesmo’ e ‘lógica da identidade’.

A simples afirmação da pluralidade das lógicas  pois já identificamos as lógicas clássica e transcendental , garante que elas seriam pelo menos duas, o que implica imediatamente a existência de um pensar do outro ou da diferença. Esta é a grande descoberta freudiana: a existência de um pensar inconsciente responsável, entre outras coisas, pela estruturação dos sonhos, cuja lógica veio mais tarde, com Lacan, ser precisamente caracterizada e nomeada, como deveria, lógica do significante. Nós, por uma questão de elegância e sistematicidade de nomenclatura, a designamos lógica da diferença.

Esta última, junto com a lógica da identidade, duas lógicas irrecusáveis, são por nós consideradas lógicas fundamentais, porque capazes de gerar, por uma operação de síntese apropriada, a totalidade das lógicas. São ambas fundamentais porque não podemos gerar qualquer delas a partir da outra, e por isso podem ser ditas também irredutíveis (5). Por uma simples questão de economia, usaremos o símbolo mnemônico ‘I’ ou a expressão ‘lógica I’ para designar a lógica transcendental ou da identidade, e o símbolo ‘D’ ou a expressão ‘lógica D’ para designar a lógica da diferença.

Como já anunciado, o desvelamento da lógica da diferença representa a metade do conjunto das lógicas fundamentais e, de certo modo, também a sua quase totalidade, porque só com sua presença pôde-se trazer à luz e fixar a própria noção de fundamentalidade lógica.

A operação de síntese já tem precedentes, se bem que com um alcance restrito; referimo-nos, na antigüidade grega, a Platão (a dialética como modo de pensar a idéia ou o conceito (6)) e, na modernidade, a Hegel (a dialética como modo de pensar a História (7)). Em ambos, o pensar dialético é caracterizado como um pensar síntese do pensar do um e do múltiplo, do mesmo e do outro, da identidade e da diferença. O que precisamos fazer agora é generalizar esta noção de síntese para que ela possa operar reiteradamente sobre seus próprios produtos, articulando, tantas vezes quanto se queira, as lógicas da identidade e da diferença.

Vamos estatuir o símbolo ‘/’ para a noção de síntese dialética generalizada. Deste modo, a lógica dialética, síntese da lógica da identidade e da diferença, será designada por I/D. Este seria apenas o caso mais elementar e paradigmático, pois, paralelamente, estariam sendo também geradas as lógicas D/I, D/I/D, I/D/I/D, D/D/D/I etc. etc. melhor dizendo, gerados novos nomes de lógicas, que, afora I/D, não sabemos bem, por enquanto, aqui, o que significam.

Conjuntos gerados desta maneira são reconhecidos como estruturas algébricas elementares livres e nos interessariam aqui duas delas: o semimonóide e o monóide livres. Ambos são conjuntos gerados com o concurso de uma operação qualquer  a partir de um conjunto gerador {A, B, C, .... N}, o conjunto derivado possuindo as propriedades de fechamento, de associatividade e de existência de um elemento neutro (8). Os elementos da estrutura algébrica são as “correntes” de todas as combinações das letras A, B, C,...,N, articuladas pela operação , ou seja, C, BB, NAC, BBNA, A, AAC etc.

A propriedade de fechamento significa que quaisquer dois elementos originais ou já formados (correntes), por exemplo, BBC e A, articulados pela mesma operação , formam um elemento novo também pertencente ao conjunto: (BBC)  A= BBCA. Esta propriedade garante que a operação  não nos irá levar nunca para fora do conjunto.

A propriedade de associatividade garante que dados três elementos (correntes) quaisquer do conjunto, por exemplo, AAA, B e CB, a síntese do terceiro com a prévia síntese dos dois primeiros, dá o mesmo resultado que a síntese do primeiro com a prévia síntese dos dois últimos, ou seja, no exemplo acima escolhido, (AAA  B)  (CB) = (AAA)  (B  CB), ambos iguais a AAABCB. Esta propriedade mantém a relevância da ordem dos elementos na composição, mas torna irrelevantes os parênteses.

É a propriedade de existência do elemento neutro que vai separar semimonóides e monóides. Para este último, o elemento neutro  digamos que fosse, por exemplo, N , é tal que operado à esquerda ou à direita não produz qualquer efeito, ou seja, N  (BAC) = BAC , como também (BAC)  N = BAC. O semimonóide já exige um pouco menos: apenas que o elemento neutro o seja de um dos lados, digamos que à direita: (BAC)  N= BAC, sem que o mesmo se dê com N  (BAC), isto é, podendo-se ter eventualmente N  (BAC)  (BAC).

Monóide e semimonóide elementares (9) são aqueles cujo conjunto gerador se reduz apenas a dois elementos, por exemplo, {I, D}, sendo I o elemento neutro. O monóide livre elementar seria:


MLE = {I, D, II=I, ID=D, DI=D, DD, III=I, IID=D, IDI=D, DII=D, IDD=DD, DID=DD, DDI=DD, DDD, IIII=I, IIID=D ...}


que, suprimidas as repetições, se reduz a:

MLE = {I, D, DD, DDD, ...}

Ora, se tomarmos ‘I’ como sinônimo de ‘0’ (zero) e ‘D’ como sinônimo de ‘sucessor de’ (equivalente a ‘+1’), o conjunto acima se transforma em:

NN = { 0, (0)+1, (1)+1, (1+1)+1, (1+1+1)+1, ... } ou

NN = { 0, 1, 2, 3, 4, ...}

de imediato reconhecível como o conjunto dos números naturais. Isto quer dizer simplesmente que o conjunto dos naturais forma um monóide livre elementar, o que significa também que a noção de monóide, de algum modo, capta o ser matemático em sua essência. Se, como queria Kronecker, Deus fez os inteiros, todo o resto é obra do homem, tem-se aí uma boa medida da relevância matemática do que seja o monóide livre elementar (uma obra divina a partir da qual, sim, puderam obrar os matemáticos).

Em termos de lógica, como se comportaria a operação síntese dialética generalizada ‘/’ ? Já sabemos que I e D geram algo novo, designado I/D, que denominamos lógica dialética. E ao contrário, D/I?

Responderíamos que a identidade operando sobre a diferença é algo que constrange, que força, que re-unifica, enquanto que a diferença operando sobre a identidade é algo que vai de si, posto que, sendo diferença, já o é de uma identidade. Em termos simbólicos, pois, I/D é algo realmente emergente, mas D/I nada mais é do que a reprodução de D mesmo, isto é, D/I=D. Em suma, isto quer dizer que o conjunto das lógicas é apenas um semimonóide livre elementar, gerado pelas lógicas da identidade I e da diferença D, onde I funciona como elemento neutro (ou identitário) apenas à direita (uma escolha convencional). Teríamos assim:

L = {I, D, I/I=I, I/D, D/I=D, D/D, I/I/I=I, I/I/D=I/D, I/D/I=I/D, D/I/I=D, I/D/D=I/D/D, D/I/D=D/D, D/D/I=D/D, D/D/D, I/I/I/I=I, I/I/I/D=I/D ...}


que, suprimidas as repetições, resulta em


L = {I, D, I/D, D/D, I/D/D,...}

Usando-se a notação exponencial, onde X/X/.../X (n vezes) =d X/n, a seqüência das lógicas (ou com mais propriedade, dos nomes das lógicas) pode ser apresentada como:

L = {I, D, I/D, D/2, I/D/2,...}

As três primeiras lógicas desta seqüência já nos são bem familiares  da identidade I, da diferença D, dialética I/D ; e a quarta, D/2 , que seria? A lógica D/2 , lógica da dupla diferença, pode-se facilmente mostrar, é nossa também conhecida lógica clássica, formal ou do terceiro excluído.

A lógica clássica ou formal (D/2) é uma lógica onde cabem apenas os estados verdadeiro e falso, mais restrita, portanto, do que a lógica da simples diferença (D) onde ocorre ainda um terceiro estado, o indefinido (10). Por isso a lógica clássica é denominada também lógica do terceiro excluído.

A supressão do estado indefinido (o terceiro) se faz da seguinte maneira: parte-se de uma primeira diferenciação (B)(figura 1, à esquerda) que é em seguida transformada numa totalidade através da simples desconsideração da sua exterioridade (NãoB)(figura 1, ao centro); em outras palavras, faz-se de B uma totalidade por convenção, o que é a mesma coisa que re-pensá-la dialeticamente. Impõe-se-lhe então, internamente, uma segunda diferença (A) que deixa como complemento (em B), NãoA (figura 1, à direita). É nesta circunstância (de ser convencional), que A e NãoA formam uma totalidade sem outra qualquer opção; daí porque a designação lógica da dupla diferença. Naturalmente, atendo-nos apenas ao pseudo universo B, temos que NãoNãoA = A , ou seja, a validade do princípio da negação da negação que pode também, adequadamente, caracterizar a lógica clássica.




Figura 1. Lógica clássica ou das dupla diferença




O fato de uma lógica se constituir síntese dialética generalizada de outras lógicas tem como contrapartida que esta mesma lógica subsuma suas lógicas formadoras e, por uma questão de conveniência e elegância, também a si própria. Subsumir traduz para o Português o verbo alemão aufheben, utilizado por Hegel para exprimir que algo está sendo suprimido ou superado e concomitantemente conservado em sua essencialidade num nível superior de existência. Assim, a dialética subsume as lógicas da identidade, da diferença e a própria dialética.

Uma lógica pode ser sintetizada de diferentes modos, de sorte que devemos tomar, como sendo suas lógicas subsumidas, todas as que ocorram em uma qualquer das composições sintéticas. Desta maneira, por exemplo, a lógica I/D/2 pode ser alcançada a partir das sínteses I com D/2, I/D com D e, também, por I com a própria I/D/2. Por isso dizemos que I/D/2 subsume I, D, I/D, D/2 e I/D/2. Como I/D/2 tem uma forma semelhante a I/D, apenas um pouco mais complexa, a denominamos hiperdialética e, porque subsume cinco lógicas, a denominamos igualmente lógica qüinqüitária. Para além desta última, as demais lógicas ainda não possuem um nome próprio.

A lógica hiperdialética qüinqüitária é de um enorme interesse para nós porque é ela que caracteriza, com exclusividade, o ser-humano e também o discurso.

Podemos ir um pouco mais além da simples geração dos nomes das lógicas para chegarmos ao processo de geração dos respectivos princípios. Sabemos que a lógica da identidade é governada pelo princípio da identidade ou do pelo menos um, representado por um operador I tal que I(I())=I(), ou seja, o operador I é tal que se torna indiferente sua aplicação ou sua reiterada aplicação a um estado de coisas qualquer . O exemplo mais óbvio é o do operador consciência, para o qual ser consciente de um estado de coisas equivale a ser consciente de que se é consciente deste mesmíssimo estado de coisas (11).

Governando a lógica da diferença, tem-se o princípio da negação originária ou do pelo menos dois, representado pelo operador D de ciclo dois, isto é, que duas vezes aplicado a um estado qualquer , retorna a este mesmo estado . Em sua maior generalidade e autonomia, D é tal que D(D(D())) = D() (12).

A partir daí, teremos apenas lógicas sintéticas, onde os princípios deixam de ser por natureza minimais (pelo menos n) para se tornarem maximais (no máximo n, ou, n+1 excluído). Tal inversão ocorre exatamente por conta da presença, na síntese, da lógica da diferença (13). Para ilustrar, tomemos o caso da lógica clássica ou da dupla diferença, onde a lógica da diferença atua contra ela mesma suprimindo o valor de verdade zero e fazendo de si própria uma lógica restrita, governada pelo princípio do no máximo dois, isto é, do terceiro excluído.

A primeira lógica sintética é a lógica dialética, que tem como característica fundamental poder desvelar a totalidade, isto é, pensar o ser uno recuperado após a diferença ou que teria internalizado a diferença. A totalidade, por essência, exclui qualquer outro “externo”, só se realizando pois como um absoluto; podemos então dizer que a dialética tem por princípio, o no máximo um ou, equivalentemente, o segundo excluído.

É fácil inferir: se a dialética, I/D é governada pelo princípio do segundo [1+(2x1)-1=2] excluído, a lógica clássica, D/2, pelo princípio do terceiro [(2x2)-1=3] excluído, a lógica qüinqüitária I/D/2 deverá sê-lo pelo princípio do quarto [1+(2x2)-1=4] excluído. Poderíamos seguir assim indefinidamente: D/3 seria governada pelo princípio do quinto [(3x2)-1=5] excluído; I/D/3, pelo sexto [1+(3x2)-1= 6] (14) excluído etc.

A representação operatória de todos estes princípios é formalmente sempre a mesma. O princípio do n-ésimo excluído estará associada a um operador J tal que Jn-1()=. Seja, por exemplo, a lógica clássica, governada pelo princípio do terceiro (3) excluído; seu operador característico A será tal que A3-1()= , ou, A2()=.

Vê-se, concluindo, que a lógica da diferença desempenha um papel crucial na estruturação do universo das lógicas, pois participa ativamente como elemento formador na síntese de todas as lógicas, com exceção apenas de sua companheira no conjunto das lógicas fundamentais. Pode-se observar ainda, parafraseando Kronecker que Deus teria criado apenas as lógicas fundamentais, entre elas, a lógica da diferença, tudo o mais seria obra humana, inclusive os números inteiros que ele acreditava de origem divina.

A lógica da diferença, um quarto mais a quase totalidade das lógicas de base

















Às lógicas podem ser dadas representações geométricas canônicas, em que a lógica da identidade I será representada sempre por um ponto e a lógica da diferença D por um segmento de reta (equivalente a 2 pontos). Quantas forem as ocorrências de D, tantos serão os segmentos de reta presentes na representação, cada novo segmento entrando ortogonalmente aos anteriores. Assim, a lógica I teria por representação canônica um ponto; D, um segmento de reta; I/D, um ponto e um segmento de reta formando um triângulo; D/2 , dois segmentos de reta ortogonais formando um quadrado; I/D/2, um ponto e um quadrado formando uma pirâmide, D/3, três segmentos ortogonais formando um cubo e assim por diante. Chamamos lógicas de base ao conjunto das quatro lógicas propriamente subsumidas por I/D/2 que formam a base quadrada da pirâmide que a representa. (Ver figura 2)

Figura 2. As quatro lógicas de base

Até bem pouco tempo atrás eram em geral reconhecidas as lógicas clássica, transcendental e dialética, com a agravante de que não se tinha uma idéia clara de suas inter-relações. O desvelamento da lógica da diferença teve assim um múltiplo significado:


ampliou de três para quatro o número de lógicas reconhecidas;

possibilitou o reconhecimento da lógica clássica como uma lógica da dupla diferença, portanto, similar e facilmente articulável às demais;

retirou o papel paradigmático indevidamente atribuído à lógica clássica, passando-o, como seria mais razoável e elegante, para as lógicas fundamentais, da identidade e da diferença; e

o mais importante, possibilitou a estruturação das lógicas de base. Num primeiro momento, entre muitas coisas relevantes, as lógicas de base vão permitir a redefinição da sexualidade humana, da estrutura família nuclear (logicamente equivalente ao átomo de parentesco de Lévi-Strauss) e, subseqüentemente, irão servir à definição da lógica hiperdialética qüinqüitária, esta, de suma importância para a caracterização onto-lógica do homem, o que vai criar as condições para uma renovada antropo-logia filosófica.


Só com a descoberta das lógicas de base foi possível a definição da sexualidade humana de essência lógica tetrapolar (masculino/feminino), diferente da sexualidade animal ou biológica, essencialmente bipolar (macho/fêmea). Esta definição foi feita por Lacan, não em termos propriamente lógicos, mas do que ele chamou “matemas ou fórmulas quânticas da sexuação”. Os matemas lacanianos, já tivemos a oportunidade de mostrar detalhadamente (15), são expressões da lógica da diferença a nível de cálculo de predicados, designando cada uma das lógicas de base. São eles:




x~(x) (que se lê: existe um x que escapa a toda e qualquer predicação, à lei ou à função fálica, segundo a terminologia daquele autor) designando a lógica da identidade I;




~x(x) (que se lê: nem todo x cai sob o domínio de um predicado ou da lei) para designar a lógica da diferença D;




~x~(x) (que se lê: não existe qualquer x que possa escapar à predicação ou à lei) designando a lógica dialética I/D e, por fim,



x(x) (que se lê: todo x está sob o domínio de um predicado ou da lei) para a lógica clássica D/2.






O masculino é então definido pelo par { I, D/2} e o feminino pelo par complementar {I/D. D}, tal como mostrado na figura 3.


Figura 3. Masculino e feminino.

No par masculino, a posição lógico-transcendental I corresponde à figura do pai (pai simbólico na terminologia lacaniana) e a posição lógico-clássica à figura do filho (castrado). No par feminino, a lógica da diferença corresponde à figura da mãe (a outra) e a lógica dialética à figura da filha (virgem) (16).

Em suma, pode-se concluir que a lógica da diferença é historicamente a quarta lógica desvelada, vindo assim fechar o importante quadrado das lógicas de base, e que, retroativamente, proporciona a própria a lógica dos lugares que leva à compreensão deste mesmo quadrado.


A lógica da diferença e a lógica hiperdialética qüinqüitária


O desvelamento da lógica da diferença trouxe como conseqüência a descoberta da seqüência das lógicas e, em especial, a descoberta da lógica hiperdialética qüinqüitária. É precisamente esta lógica que vai caracterizar com exclusividade o ser humano (ou o ser subjetivo pleno).

De forma absolutamente coerente, ela se apresenta também como a lógica do discurso articulado pois compreende a lógica do simbólico pleno (I/D) (dialética platônica da idéia) e a lógica da lei discursiva ou gramática (D/2) (analítica aristotélica do discurso racional). Isto vai permitir a caracterização, com todo rigor, do homem como ser falante ou animal discursivo.

O mais importante a observar na comparação entre lógica da diferença e a hiperdialética qüinqüitária é que os valores de verdade da primeira, D, simulam os valores de verdade da segunda, I/D/2.


A lógica hiperdialética é governada pelo princípio do quarto excluído (17), expresso pelo operador S, S tal que S(S(S()))=, cujos correspondentes valores próprios representativos dos seus valores de verdade são dados pela equação algébrica 3 = 1 (18). As três raízes desta equação podem ser dispostas sobre um círculo de raio 1 no plano complexo, como mostra a parte esquerda da f


igura 4.


Figura 4. Valores de verdade da lógica hiperdialética




O princípio da negação originária ou do pelo menos dois, sabemos, é expresso pelo operador D tal que D(D(D()=D(). Os valores próprios deste operador são dados pela equação algébrica a 3 =  , cujas raízes são 1, 0 e –1, representando os valores de verdade ‘verdadeiro’, ‘indefinido’ e ‘falso’, tal como ilustra a parte direita da figura 4. Agora, comparando os dois conjuntos de valores próprios (que representam seus respectivos valores de verdade), vemos que a projeção geométrica dos valores próprios da lógica hiperdialética sobre o eixo real são exatamente iguais aos valores próprios da lógica da diferença, que só existem sobre o eixo real. Tudo se passa como se os três valores de verdade da lógica hiperdialética existissem, na plenitude, num espaço complexo (real e imaginário), porém, vistos apenas em sua projeção real ficassem reduzidos aos valores de verdade da lógica da diferença. Isto dá a medida do papel do inconsciente, tanto para a compreensão da vida psíquica, o que vem sendo laboriosamente desvelado pela psicanálise, quanto para a compreensão da vida social, como vem sendo mostrado pela própria psicanálise e principalmente pela moderna antropologia estrutural.

Chegamos à conclusão que a lógica D, por seus produtos ou efeitos, simula justamente a lógica hiperdialática qüinqüitária. Isto quer dizer que enquanto não vier se estabelecer o domínio da plenitude lógica humana (advento da cultura nova lógico-qüinqüitária) (19), estaremos sob o domínio da lógica da diferença que a simula, ou seja, sob o domínio do inconsciente que tem como contrapartida objetiva o domínio da História (no seu sentido dialético-hegeliano).



Lógica da diferença versus lógica clássica e a filosofia da matemática

Para finalizar, valeria explorar um pouco a relação entre lógica da diferença (D) e lógica da dupla diferença (D/2) tendo como pano de fundo a linguagem (I/D/2). Trata-se, como veremos, da problemática central da filosofia da matemática. (20)

Começaríamos detalhando o papel de cada uma das lógicas no funcionamento da linguagem natural, que é aqui tomada como nosso espaço referencial:


I, corresponde à capacidade da linguagem natural de constituir-se em sua própria metalinguagem; posso muito bem escrever uma gramática do Português ou uma história da língua portuguesa em Português;

D, capacidade semântica ou referencial da linguagem natural, isto é, de remeter sempre a outro que a ela mesma;

I/D, capacidade histórica das linguagens naturais, de modificarem-se internamente para assim manterem-se em contato com o devir;

D/2, capacidade demonstrativa das linguagens naturais de gerar verdades a partir de verdades estabelecidas ou mesmo hipotéticas; trata-se, pois, de uma capacidade referencial ou semântica de segunda ordem;

I/D/2, capacidade que possuem as linguagens naturais de uma ilimitada complacência à significação ou à metaforização do Absoluto; mesmo do que não se pode falar, fala-se ainda assim de qualquer maneira.


Vê-se imediatamente que a lógica da diferença representa exatamente a essência semântica primitiva da linguagem, vale dizer, que todo discurso proferido (portanto, já além de qualquer eventual intenção), em sua essencialidade, é ser significante. É precisamente com esta hipótese minimal sintomática que trabalha a psicanálise e que se justifica o famoso dito lacaniano que o inconsciente é estruturado como linguagem (21).

As linguagens matemáticas derivam das linguagens naturais através da esterilização, congelamento, castração ou neutralização de seus poderes lógico-identitários (associados às lógicas identitárias I, I/D, I/D/2). Isto vai corresponder exatamente às propriedades do monóide, vistas anteriormente: a existência do neutro

simétrico esteriliza a lógica I, o fechamento esteriliza a lógica I/D e a associatividade esteriliza a lógica I/D/2. Em conseqüência, as linguagens formais não podem falar de si mesmas, perdem sua historicidade e ficam limitadas em sua complacência metafórica ou semântica.

Em outras palavras, o matemático tem como referência implícita a linguagem natural, e os seus sistemas de axiomas, ao invés de positivos, como pareceriam à primeira vista, são na verdade negativos, isto é, servem para desativar ou congelar propriedades essenciais da linguagem natural. Note-se: as propriedades não são nem poderiam ser suprimidas, mas apenas de algum modo recalcadas; doutra feita, todo o castelo abstrato ruiria, porque estariam sendo negadas propriedades essenciais daquilo que se tomou justamente como ponto de partida  a linguagem natural.

Desta sorte, no caso presente, restariam operantes, na plenitude, apenas as lógicas da diferença D e clássica D/2, o que já transforma a linguagem natural num sistema formal (sistema sintático ou gramatical). Este tornar-se-á um sistema formal puro se, ao estilo do formalismo hilbertiano, também esterilizarmos a lógica da diferença, despindo o sistema de qualquer traço semântico autônomo ou intuitivo. O preço disto é a inexorável incompletude, demonstrada por Gödel.

A alternativa restante é manter uma certa dose de referencialidade intuitiva, de âncora externa, como desejam os intuicionistas seguidores de Brouwer.

Interessa-nos aqui explicitar como o formalismo consegue transformar a linguagem natural num sistema formal “completamente” auto-suficiente, linguagem de pura castração. A essência da estratégia esterilizadora do poder referencial da linguagem natural, governado pela lógica da diferença D, está em jogar esta mesma lógica D contra si mesma, ou seja, duplicar a original estrutura reflexiva especular transformando-a numa estrutura de inversão, tal como ilustra a figura 5. Isto eqüivale a submeter a lógica D à lógica D/2, no caso presente, a reduzir a semântica à mera “semântica” formal tarskiana.

A metáfora projetiva é extremamente potente. A lógica D fica aí perfeitamente representada pela reflexão especular (com valores próprios 1, 0 e –1). Procedendo-se a uma dupla reflexão, cai-se numa simples inversão (com valores próprios 1 e –1), que muito bem representam a lógica clássica ou da dupla diferença D/2.






Figura 5. Esterilização formal da lógica da diferença


O procedimento especificamente matemático será algo aparentemente positivo (introdução de um novo axioma), mas que no fundo estará, sim, esterilizando mais uma propriedade (ou uma lógica) vigorante na linguagem natural. Este novo axioma  além da existência do neutro simétrico, do fechamento e da associatividade  é o denominado axioma da inversão, que estabelece que para todo elemento X de um monóideexista um elemento associado, dito seu inverso, que designamos por inv-X, tal que A  inv-X = = inv-X  A = N (sendo N o elemento neutro). Um monóide, suplementado com a propriedade de simetria de inversão de todos os seus elementos, se transforma num grupo algébrico (22), essência do formalismo matemático.

Os intuicionistas rejeitam estes excessos, preferindo manter seu vínculo intuitivo com uma realidade extra-matemática. É por isso que recusam a lógica do terceiro excluído, por conseqüência, as demonstrações por absurdo, aferrando-se a um construtivismo radical e a uma lógica intuicionista. (uma das realizações da lógica da diferença D. (23)

Chegamos, deste modo, a importante conclusão acerca do papel da lógica da diferença como o divisor de águas entre as duas grandes correntes da filosofia da matemática moderna  formalistas (que esterilizam todas as propriedades da linguagem natural, deixando operante apenas aquela atinente à lógica clássica ou formal D/2) e intuicionistas (que deixa operante, além de D/2, também a lógica da diferença, o que lhe garante um controle externo intuitivo do discurso formal).

Uma última observação. Ainda nos tempos do pionerismo psicanalítico, Imre Hermann (24) considerou o super-ego como uma diferenciação do id, que teria como característica essencial a obediência aos ditames da lógica clássica ou formal. Hermann possuía uma concepção ainda muito estreita do que era a lógica, confundindo-a com a lógica clássica. Entretanto, com essa associação entre ser lógico-matemático (ser lógico formal) e ser psíquico (super-ego) abria um novo campo do saber. Nossa concepção mais larga da lógica permitiu, como aqui mesmo mostrado, que associássemos ao id, não o ilógico, mas a lógica da diferença, com isso permitindo demonstrar que a diferenciação do id, que leva à formação do super-ego, é um movimento do próprio id contra si mesmo. O drama intra-psíquico podia ser agora lido, também, como um conflito lógico. (25)



Notas

1. Quarto de uma série de artigos sobre a lógica da diferença, publicados na RBF, fasc. .............., 1999.

2. Lógicas que não podem ser reduzidas umas às outras, porém, capazes de gerar, por meio de uma operação sintética, todas as demais lógicas. SAMPAIO, L. S. C. de Noções Elementares de Lógica, v. I e II. Rio de Janeiro, IC-N, !988.

3. ibid.; o conceito será precisado no texto, mais adiante.

4. ibid.; o conceito será precisado no texto, mais adiante.


A irredutibilidade das lógicas fundamentais está na raiz do conflito entre filosofias subjetivistas (Descartes, Kant, Fichte, etc) e as denominadas filosofias existenciais ou da vida (Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger etc.)


PLATÃO, Théétète, Parménide. Paris, Flammarion. 1967


HEGEL. G. F. Science of Logic, 2 v. London, Allem & Unwin, 1951.


O fechamento, a associatividade e a existência de um elemento neutro (tipo zero na soma, ou 1 na multiplicação ordinárias) são propriedades presentes nas estruturas algébricas mais elementares, e de certo modo, resumem a essencialidade matemática. O assunto será retomado ao fim do presente artigo. O elemento neutro, pode-se facilmente provar, é sempre único.

As estruturas livres geradas por conjuntos com apenas dois elementos, têm a propriedade de serem únicas, Além do mais, estruturas geradas por um só elemento degeneram, porque este elemento terá que ser o elemento neutro que, por definição, só pode gerar ele próprio. Assim sendo, as estruturas geradas por dois elementos devem ser consideradas como elementares na sua categoria, porque são as mais simples, mas já carregando o mais essencial de sua categoria.

10. A lógica da diferença é representada pelo operador negação originária D, D tal que D(D(D()))=D(). Este operador tem valores próprios determinados pela equação algébrica elementar 3= , cujas raízes são : 1, 0 e –1, que irão corresponder aos valores de verdade ‘verdadeiro’, ‘indeterminado’ e ‘falso’. SAMPAIO, L. S. C. de. Lógica da Diferença  Princípio Básico, Operador Característico e Valores de Verdade, RBF, fasc. ...S. Paulo, 19...

11. SARTRE. Jean-Paul. L’Être et le Néant. Paris, Gallimard, 1943. p. 18

12. Sendo a negação uma operação de ciclo dois, isto é, que quando reiterada anula seu próprio efeito, poderia parecer que sua definição mais econômica seria D(D())) = I(). Esta última tem o grave defeito de fazer D dependente de I, o que viola o postulado já acertado de sua independência. A forma mais simples e independente é D(D(D())) = D(), similar à do princípio da identidade que I(I())) = I()

13. O operador identidade I tem valores próprios 1 e zero. Quando sintetizamos as lógicas da identidade e da diferença para formar a dialética, o operador dialético H (H tal que H()= ) apresentará apenas o valor próprio 1. Vê-se que a entrada em jogo de D corta a presença do valor próprio zero, representativo do Nada, de onde poderia provir o autenticamente surpreendente. O mesmo se repete na passagem de D (com valores próprios 1, 0, -1) para D/2 (com valores próprios 1 e –1); e este efeito castrador se propaga por todas as lógicas.

14. Para uma lógica puramente diferencial, tipo D/n, o princípio correspondente será o do (2n-1)0 excluído; é o caso da D/2, lógica clássica, governada pelo princípio do (2x2-1)0 = (3)0 excluído. Para uma lógica identitária, do tipo I/D/n, o princípio , por exemplo, da lógica dialética, I/D, governada pelo princípio do (2 X 1)0 =(2)0 excluído.

15. SAMPAIO. L. S. C. de, A Lógica da Diferença e a Psicanálise. RBF, fasc......, S. Paulo, 1999.

16. ibid.

17. O princípio do quarto excluído, diz que a realidade visada pela hiperdialética qüinqüitária só se consuma, necessariamente, em no mínimo três. Por exemplo, uma criança cujo universo de relações se reduzisse a duas, ela e a mãe, por exemplo, não chegaria à plenitude de seu desenvolvimento psico-lógico. Acabaria, na melhor das hipóteses, um neurótico. Uma boa metáfora para os valores de verdade da hiperdialética é eu, tu, ele, ou, o mesmo, o outro, e ainda outro por testemunho. Isto quer dizer também que o homem é ser-social, e o mínimo social são três e não apenas dois. Em âmbito da linguagem, o mínimo discursivo pleno é uma cadeia de três palavras.

18.O operador representativo do princípio do quarto excluído é S tal que S(S(S())) =  e a equação algébrica determinante de seus valores próprios é 3 = 1. As raízes de equações deste tipo são em número igual ao expoente, no caso 3, se distribuindo de modo homogêneo sobre o círculo de raio 1 no plano complexo, uma das raízes estando localizada necessariamente na posição 1 real. Em suma, são as raízes cúbicas de 1.

19. SAMPAIO, L. S. C. de. Noções de antropo-logia. Rio de Janeiro, UAB, 1996. Alternativamente, pelo mesmo autor, o vídeo Antropologia cultural, I, II, III e IV, Rio de Janeiro, EMBRATEL/ UAB, 1993.

20. Tratamos do assunto em A matematicidade da matemática surpreendida em sua própria casa, nua, na passagem dos semigrupos aos monóide e Outra vez a matematicidade da matemática in Sete Ensaios acerca da Lógica Ressuscitada, Rio de Janeiro, Ed. UERJ (no prelo).

21.LACAN, J. Le Seminaire – Les Quatre Concepts Fondamentaux de la Psychanalyse. Paris, Seuil, 1973. p. 23.

22. Grupo é uma estrutura algébrica mono-operatória, um conjunto G sobre o qual está definida uma operação, em relação à qual o conjunto é fechado, associativo, simétrico e dotado de um elemento neutro, tanto à esquerda, quanto à direita, de qualquer elemento do conjunto G.

23.SAMPAIO. L. S. C. de, Realizações Paraconsistente e paracompleta da lógica da Diferença. RBF, fasc......, S. Paulo, 1999.

24.HERMANN, Imre. Psychanalyse et Logique. Paris, Denoël, 1978

25. SAMPAIO, L. S. C. de A lógica da Diferença e a Psicanálise in RBF, fasc. S. Paulo, 1999.

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