Luiz Sergio Coelho de Sampaio
Rio de janeiro, julho de 1999
O crítico da cultura fala como representasse
uma natureza intacta, ou um estádio histórico
superior, mas, na realidade, pertence àquilo
sobre o qual imagina alçar-se.
T. W. Adorno. Critica cultural e sociedade
O mito, a reliqião, a arte, a linguagem e até a
ciência soo hoje vistos como diversas
variações de um tema comum - e tarefa da
filosofia é tornar esse tema audível e
compreensível.
Ernest Cassirer. Ensaio sobre o Homem.
Sumário
1. Introdução
2. A suspeita impotência das ideologias
3. Para além das ideologias
3.1. Heidegger- a ciência e a técnica
3.2. A Escola de Frankfurt - os meios de
reprodução e comunicação de massa
4. Critica radical da cultura
Notas
Introdução
Há os que se alimentam só das sobras e migalhas,
achando que com este prudente distanciamento das
baixelas, talheres e cristais conservam suas mãos
limpas. Criticam; é como legitimam. Não valem mais do
que estas cinco linhas. Nem serão aqui contados.
Agora, podemos identificar três posições criticas em
relação à Modernidade. Começamos com a critica que aí
está, em essência, apenas para ocupar lugar. Seu
semblante feroz parece assustar o poder que por sua vez
simula que ao vê-Ia treme de medo e ambos, imprecando
um contra o outro, mas tacitamente justos e acertados,
conseguem destarte afastar quaisquer terceiros e por aí o
perigo de uma veraz subversão. Contestam o poder
porque o querem o mais perfeito, não na soma de suas
virtudes, mas no encobrimento de sua mortal fragilidade.
É o que denominamos ideologia, à esquerda e à direita
do paradigmaanglo-saxãomoderno, de prontidão para
suportá-Io pegando de cada lado pelo sovaco, assim que
mostre o menor sinal de esmorecimento.
Em segundo lugar, há quem deveras critique o poder
imperante porque já é capaz de reconhecer e apontar
para o que lhe é o mais próprio - ora a ciência (ou a
técnica) como expressão terminal de uma insidiosa
metafisica, ora o uso sócio-espetacular dos meios de
reprodução e comunicação. Procede à critica-da
Modernidade, deve-se reconhecer, mas não conseguindo
vislumbrar o que a possa suceder, só se dispõe mesmo a
voltar atrás, à Grécia e seus poetas trágicos,
desconsiderando que estes já eram lá censurados por
exorbitar nos fingimentos.
Haveria ainda uma última posição crítica, a de
quem espia da quinta margem do rio a história da
cultura passando ao encontro de si mesma, para mais
lado justamente aquilo que constitui a essência mesma
do dinamismo da Modernidade - a ciência - e aquilo que
mais abertamente expõe sua fragilidade congênita - a
técnica exorbitante -, não pode ter outra função senão a
de bloquear os caminhos que podem levar, de fato, à
subversão da Modernidade. Atente-se que a fragilidade
não é da técnica enquanto tal, mas de seu modo fingido,
da promessa enganadora nela implícita de levar o
homem à perfeição (biológica)ou à vida eterna [5]. Na
verdade, uma promessa que não tem outro propósito
senão o de tornar dispensável o advento do homem
pleno lógico-qüinqüitário.
Mas o subterfúgio não pára aí, podendo voltar sobre
si próprio como dissimulação da própria dissimulação.
Para ilustrar isto de maneira exemplar, podemos tomar
algo bem familiar a nós brasileiros - o Positivismo. Que
pode isto significar se todos as correntes ideológicas são,
tal como ele, acriticamente a favor da ciência e da
técnica? O rótulo Positivismo, já de origem, trazia,
velada, uma discussão sobre a adaptação da
racionalidade moderna (capitalista) ao âmbito da
latinidade, no nosso caso particular, de uma latinidade
aquecida pelo trópico. Isto eqüivalia a uma discussão
acerca do sujeito da razão científica (Dj2), de como
proceder a substituição ali do indivíduo liberal anglo-
saxão (I)por um presumido espírito comunitário (ljD) da
latinidade [6].
O leitor pode estar satisfeito, mas os dissimuladores
não, pois chegam a se fantasiar de sociais-democratas
para melhor impor sua prática neo-liberal, que também
não é neo, mas sim vétero-liberall Bem,não têm limites.
Dentre as "opções" ideológicas, distinguiríamos
inicialmente o paradigma anglo-saxão, aquele que se
decide pelo sujeito liberal I, cinematográfico sujeito john
fordiano, incansável empresário schumpeteriano, que de
7
<,
fato transcende os sistemas, masapenas para colocar
um sistema novo intacto no lugar de outro já gasto ou
ultrapassado pelos acontecimentos. É ele o sujeito que
assegura com sua viva determinação ou iniciativa a
continuidade da cultura da morte. (Ver figura1, parte
superior)
PARADIGMA DA MODERNlDADE
I/D/2 'I"to\lCA (DIGITAl"
I •••• Pseudo auto-superação
CVL'lt'U
Pohtíca funcionahzada' JIOOEDA fC/1r1cAJ
(Ciência poli . Arte funcíonalízada
I/D • iMarketing',
Psicologia funeicnalis.a
(psicologia adaptatíva do eu'
D
IDEOLOGIA DE ESQUERDA IDEOLOGIA DE DIREITA
I/Df2 TÉCNICA (DIGITAL)
•...• ' Pseudo auto-superação
. atM::lA
JfODER.'VA
..-,.,.1_ /IDEOLOGIA
SUJEI1D .msuÍ7'1CAJJ
COLETIVO ~ ,
iJESUITICO) -., • •
Po:.i:izaÇãollll. _
da Arte --00
I/J
Este~".
da Política
I D 2 TÉCNlCA {DIGITAL)
f .' Pseudo auto superação
•••••
cm.roRA
JfO~
IDroLOGlA
FASCISTA)}
Estetizacào
da Ciência
, "'- SWEITO
~ ROMÂ.~'TICO
(TRÁGICO)
10 10
Figura 1. As ideologias
o poder hierárquico da lógica da dupla diferença
funcionaliza o que seria próprio e específico às lógicas
subordinadas: a política torna-se ciência política; a
psicologia da consciência torna-se psicologia adaptativa
8
do eu; a arte vira técnica de marketing (ou, em estado de
degradação voluntária, instalações).
Nos extremos, temos de um lado a "opção" de
esquerda - jesuítica, comunista, socialista de verdade,
revolucionária - quepropõe a substituição do sujeito
liberal I pelo sujeito coletivo (politicamente articulado)
I/D, concomitantemente invertendo o sentido de sua
relação de subordinação com respeito à ciência. (Ver
figura 1, à esquerda) A designação socialismo (I/D)
científico (Df2) não lhe poderia ser mais apropriada. De
modo quase simétrico, temos a "opção" de direita -
fascista, nazista, tradicionalista -, que vai propor
também a substituição do sujeito I, porém, agora, pelo
sujeito romântico, telúrico, o "povo" ou, na sua versão
mais primitiva, pelo sujeito libidinal, igualmente
invertendo o sentido da relação subordinativa vis-à-vis a
ciência. (Ver figura 1, à direita) Alertariamos que a
designação nacional (D) socialista (I/D) - nazista - é de
algum modo enganosa, na medida em que sua oposição
à "opção" de esquerda não acontece entre o nacional (D)
e o científico (Df2) , mas precisamente entre o nacional
particular (D) e o comunitário universal (I/D). Sua
designação mais própria seria nacional (D) científico
(D /2) contrastando com socialismo (I/D) científico
(D /2). Há, ademais, uma razão profunda para esta
equivocação: é que com freqüência uma formação
ideológica de direita se apresenta não como uma troca de
sujeito, mas como se fora uma simples particularização
de um sujeito já dado, especificamente, pelo
deslocamento do social universal (ou internacional) em
favor do mesmo social, porém agora restrito ou
particularizado (o nacional). E mais, indefectivelmente
acompanhada de propostas de modernização cientifico-
tecnológica da produção e do sistema educacional.
9
Esta observação é importante na medida em que o
aludido fenômeno aparece reiteradamente na história
luso-brasileira. Assim foi gerado em Portugal o
pombaUsmo (expulsão do jesuitismo internacional,
instalação do Colégio dos Nobres) e salazarismo, e no
Brasil, o getulismo (consolidação do mercado interno,
criação das grandes empresas públicas, as leis
trabalhistas, organização do ensino básico) e o
Movimento de 64 (aniquilamento das ideologias
"exóticas" internacionais, profissionalização na educação
básica, implantação da Cadeira de Moral e Civismo em
âmbito nacional vendendo a imagem do Brasil Grande) e
talvez muitos outros.
Haveria ainda uma quarta possibilidade que seria a
recusa de qualquer sujeito - é a posição das "cúrias",
que não se interessam por quaisquer sujeitos, mesmo
que fossem elas próprias; basta-lhes a lógica im-pessoal
de um hiper-estático poder burocrático, D/2.
Como já tivemos oportunidade de mostrar (7] as
duas "opções" extremas, esquerda e direita, se iludem
com a possibilidade de promoverem a inversão da
relação de subordinação entre a ciência e seu sujeito.
Ver figura 2.
SUJEITO
COLETIVO SOCIALISMO
RÚSSIA !J/D CIENTÍFICO ~ •
~~"'t-0
,o ~+
~~ :~
~~o.. 'p
~~~
LOOICA DA
MODERNIDAD
CIÊNCIA
NACIONAL
SOCIALISMO OU
"NACIONAL
CIENTfFICO"
AMÉRICA
SUJEITO
LIBERAL
"EUROPA"
SUJEITO
ROMÂNTICO OU
NACIONAL - "POVO"
Figura 2. Sujeitos e inversões ideológicas
10
c,
Na opção jesuítica ou comunista, trata-se de
direcionar a ciência e a técnica para a solução dos
grandes e urgentes problemas (ditos) sociais
alimentação, educação, saúde, habitação etc. Na opção
nazi-fascista, trata-se da pretensão decolocar a ciência
e a técnica ao serviçodapreservação dos valores e da
integridade do "espírito do povo"(D). .
Em ambos os casos chega-se a uma
impossibilidade, pois, mais dia menos dia, qualquer
destas "opções" vai se inverter, e uma burocracia de
estado assumir um poder totalitário em seu exclusivo
proveito.
Assim necessariamente acontece porque a lógica
D/2 - que governa a ciência -, subsume as lógicas I, D e
I/D - governando seus pretendidos e pretensiosos
sujeitos -, e não ao contrário. Por isso, as inversões
propostas sempre revertem, o que acarreta a perversão
dos "projetos políticos" que se dizem fundamentados
naquelas "opções", como a história do Século XXbem o
demonstrou. No paradigma anglo-saxão o sentido da
subordinação aparece tal como logicamente deve ser: por
defmição, o sujeito liberal se afigura um sujeito
realmente transcendente ao sistema (1),porém, a ele
sujeitado, na medida em que só lhe é permitido operar de
modo intervalar entre sistemas (D/2) que se superpõem e
se sucedem. Esta é uma configuração essencialmente
perversa, que por isso mesmo, jamais perverte [8].
A similitude da "opção" de direita com a
problemática cultural grega fica aqui mais do que
evidente. Não há pois nada de estranho quanto à
afmidade entre o mais do que sintomático helenismo
desmedido dos filósofos e poetas alemães, em especial,
dos românticos e seus derivados, e a força que
11
na Alemanha assumiu o fascismo, assunto a que
voltaremos mais detalhadamente no próximo item.
Uma conseqüência também evidente da posição de
direita é a supremacia atribuída à estética D (ou à
poesia, ou à música dramática) sobre a política I/O, um
sintoma anotado com grande acuidade por Walter
Benjamin :
Eis a estetizaçao da política, como a prática do
fascismo. O comunismo responde com a politizaçao
da arte. [9]
Na "opção" de esquerda acontece precisamente o
contrário: a prevalência do políticosobre a arte, como se
depreende da teatralidade do barroco jesuítico, da
"pedagogia" grandiloqüente do realismo socialista e
assemelhados.
A propósito, tendo-se em conta a essencial
indiferença das diferenças ideológicas, não nos pode
causar grande surpresa o troca-troca ideológico das
"elites" do Brasil, acabando todas reunidas em torno do
pensamento único, acordes em nada pensar para
realmente mudar, decidindo sistematicamente contra os
mais elementares interesses da maioria do povo
brasileiro. Depois de fazerem das eleições um só balcão
de negócios, chegam ao ponto de controlar
cuidadosamente a "compra" de votos no legislativo para
assegurar uma cota parte de votos-contra, simulando
que tudo aí acontece democraticamente.
Justamente estribados nesta compreensão geral é
que negamos qualquer valor realmente subversivo à ação
exclusivamente político-ideológica. A insistência numa
tomada de posição exclusiva de tal natureza nesta altura
da História, já não é mais um equívoco (quejá antes era
grave); é hoje, na verdade, alta traição aos interesses da
12
humanidade, conluio com o que há de pior na
Modernidade.
Não há saída nem à esquerda nem à direita,
apenas (logicamente) para frente e para o alto. Para não
compactuar com o que aí está, é necessário proceder a
uma crítica radical, de estofo lógico-filosófico, da
Modernidade para compreender de onde aindadimana o
seu vigor, que é real, o que nela representa a ciência e
em particular a fisica. Paralelamente, será preciso
denunciar, para mais agravar sua constitutiva
fragilidade, a dissimulação que é presentemente a
técnica, em especial a biotecnologia, indefectivelmente
presente em todos os diários, revistas e principalmente
nos jornais e especiais das TVs PO]. Só assim poderemos
começar a nos mobilizar para a verdadeira subversão da
Modernidade, para o apressamento da chegada da nova
cultura hiperdialética qüinqüitária, que bem sabemos
agora o porquê, é, afmal, o passo decisivo para o
encontro do homem consigo mesmo.
3. Para além das ideologias
Podemos agora nos aventurar para além do âmbito
das ideologias, onde verdadeiramente começa o processo
de crise e superação da Modernidade.
Recapitulando, consideramos as ideologias como
um fenômeno social típico do mundo moderno, cuja
característica central é a desconsideração da ciência
como questão (aqui não se discriminando ciência e
técnica); em contrapartida, assumem, como sua questão
maior, qual deva ser o sujeito da ciência e o sentido de
sua relação de subordinação a ela.
Ora, a compreensão do processo de crise e
superação da Modernidade requer exatamente o
contrário: que concentremos nosso esforço crítico sobre a
13
ciência e a técnica, questionando-as, buscando uma
avaliação objetiva das condições de continuidade do vigor
criativo da ciência, tentando decifrar os mecanismos
ilusionistas associados à técnica.
Na figura 3 tentamos pôr em evidência a relação
conceitual conflituosa entre, de um lado, o enfoque
ideológico, reacionário, sincrônico, representado por um
plano solidário à própria Modernidade e, de outro lado, o
enfoque crítico, diacrônico, lógico-filosófico da
problemática cultural, representado poruma linha que
traspassa a Modernidade.
Localmente (isto é, visto de dentro da própria
Modernidade) existiria ali uma certa ambigüidade
o HOMEM EM
BUSCA DE SI
MESMO
".
Esquerda
o-l
g
E-
~S
U U /- .
§c.i\.~; .. /.. O. ~DERNIDADE
« t'V O -, ..' D /2
::r: - t:k: .-:.:.:-.;..:. .
ZUo..
:JSO
"PLANO
SINCRONICO"
IDEOWGICO
Direita
••
''''-.........
(I/D)
Figura 3. Plano smcrônico ideológico versus linha
diacrônica do processo cultural
14
processual - ao mesmo tempo para trás (ciência) e para
frente (técnica exorbitante) -, mas que vista de um pouco
mais longe se nos afigura como inexoravelmente
ascensional. Pouco importam os percalços temporários -
como é o caso na atualidade do chamado processo de
globalizaçào -, o homem jamais abandonará a busca da
autenticidade, não irá faltar de modo algum ao encontro
marcado que tem consigo mesmo.
3.1. Heidegger - a ciência e a técnica
Estamos agora um pouco menos mal preparados
para enfrentar questões de maior complexidade. Que
pensaríamos, então, de alguém que fizesse uma aberta
"opção" por um sujeito da ciência - por exemplo, pelo
"povo"- e, ao mesmo tempo fosse um critico feroz da
ciência e da técnica? Seria ele um mero reacionário de
direita ou um profeta da cultura nova? Ou ambos, ou
nenhum nem outro?!
O leitor já deve ter percebido que não estamos
diante de uma situação hipotética qualquer, mas
precisamente do caso Heidegger, especificamente, do
affaire Heidegger e o nazismo (incluída aí a ultra-sensível
questão do anti-semitismo).
Embora este já se tenha tornado um tema
recorrente, o fato ê que até hoje não foi tratado com a
devida profundidade e amplitude. Parece-nos que o que
mais tem atrapalhado a compreensão daqueles
acontecimentos históricos envolvendo o filósofo alemão
tem sido a atitude apaixonada de todas as partes. Sendo
ele o maior dos filósofos de nosso tempo, toma-se como
pressuposto que ele tivesse, à época do seu reitorado, a
plena compreensão e o acesso às informações suficientes
sobre a situação alemã e internacional, para então bem
decidir. Isto, a nosso juizo, está muito longe de ser
15
.._.._._..... _. __ --.=~._ '~k'._ ~ ~_---:-'":'- ••••••••• - •• ----••••••••••••••• .-~_.,._.-.0 ',__ •••.•.• ,..- •••-"--'-~-_""~"'~"'.-.~ •• _-.~ ••••'~~--'---.".'-'-~'-" "~" ----- •...,.-_.~ •• .., •••• -
verdadeiro, razão pela qual consideramos imprescindível
que se explicite e se aceite o contraditório e o paradoxal
das palavras e das atitudes, porque é exatamente daí que
se pode derivar os mais importantes ensinamentos. Nada
pior, na circunstância, pois, que a colocação
maniqueísta: Heidegger, anjo ou capeta.
Preliminarmente, valeria fazer um breve resumo da
história do antí-sernitismo alemão. Começaríamos
lembrando que coube em parte aos alemães do sudeste a
resistência à penetração islâmica na Europa via oriente
[11]. Este processo num primeiro momento é anti-
islâmico, mas tem como seqüela desdobrar-se para
alcançar seus primos remanescentes, os judeus, tal qual
ocorreu em Espanha e Portugal. É preciso compreender
que sem uma vigorosa reação à expansão semítica, a
Europa simplesmente não existiria e talvez ainda não
tivéssemos nem mesmo entrado na Modernidade. Aíestá,
sem dúvida, uma das raízes mais antigas e fundas do
anti-semitisrno europeu, em particular, o alemão.
Há um outro importante momento histórico, por
volta de 1800, quando ocorre uma significativa migração
de famílias judias para Frankfurt, entre as quais
estavam algumas de já tradicionais banqueiros. É a
partir de então que esta cidade passa a se constituir
num dos principais centros financeiros da Europa (12].
Isto representou um grande impulso no processo de
"modernização econômica" da Alemanha com intensos
reflexos na sua vida cultural, o que fortementeimpactou
a intelectualidade alemã (13). O surto de helenismo
exacerbado e excludente talvez tenha sido sua irada
reação inconsciente e, justo por isso, a mais dramática
em suas conseqüências.
Outro episódio de peso foi a chegada à Alemanha,
no início deste século, do movimento soreliano (14]. Este
movimento representa o abandono da expectativa da
consolidação de um proletariado revolucionário
16
internacional (I/D) - para ele já se tornara evidente o
processo de aburguesamento das massas européias logo
aos alvores da era do marketing e do consumismo. Em
conseqüência, suas esperanças revolucionárias se voltam
para a pequeno-burguesia nacional (D), que era quem
mais sofria, econômica e emocionalmente, com a
expansão do capitalismo financeiro internacionalizado. É
exatamente aí que a designação nacional socialismo ou
nazismo tem sua razão histórica.
Por fim, chamamos a atenção para o fato que ainda
na passagem para o século XX, o capitalismo sofre uma
grande mutação: a função de principal motor do sistema
passa da acumulação/produção para o marketing/
consumo. Isto implicava que a expansão capitalista,
doravante, só se faria pela prévia agressão à cultura (dos
outros). Antes, a implantação de atividades agrícolas ou
extrativo minerais na periferia do capitalismo acabava
provocando a desorganização das relações sociais em
geral e do mundo da cultura. A agressão à cultura era
então uma conseqüência do lucro desordenadamente
buscado. Com o capitalismo de marketing o processo se
inverte: doravante é a desarticulação da cultura (ou sub-
cultura) periférica e das relações sociais tradicionais que
se torna pré-condição da penetração econômica global; a
agressão cultural passou a ser condição do lucro. Nesta
nova etapa da expansão capitalista importa, antes de
mais nada, se apoderar no atacado do imaginário do
outro (15].
Por tudo isso, na Alemanha, o nazismo ganhou a
proporção que tomou, fenômeno que não pode ser de
modo algum explicado pelo ativismo de um punhado de
desatinados. O nazismo acabou sendo, sim, uma reação
antecipada ao capitalismo consumista ou de marketing
(além de representar, naturalmente, a estetização da
politica1), como o socialismo soviético foi uma reação
17
retardada aocapitalismo produtivista ou de acumulação
(além de representar a politizaçao da arte!).
É neste contexto histórico que Heidegger, o filósofo
(16), faz sua opção a que não se pode negar o caráter
ideológico: o faz pelo sujeito romântico, telúrico, pelo
povo, pelo torrão natal, pelos gregos, pela Floresta Negra,
pela poesia, pelas águas do Reno e doNeckar, pelo
trágico, em suina, pelo sujeito lógico diferencial ou
prornetéico, D. Ver figura 4.
,-- ... "
:I/D /2;
, ,
, -# ••. ,. : '
VONTADE POLÍTICA OU ' I '
, "
" VONTADE COLETIVA" " " •. ,
HISTÓRIA , , # "
.,/r).---:/ ----'.-~
•
~~~ # fi'
....,.c-.. .. \Q'
..•...••• 0., ~, •
•• <-f ""# ~~.
~ .••• ~ -Q ~v~
: ~~~..,:~c.":"'~. o >.C •~~0b..~.A.
• '. #1t~ê.~~v~~ ~"~i$';."'~1t s "'9 0
I li' ~~...• ~<:J ·~j8j.,,-;~-+,,. ~+
• #:' ~ ">J;!/i~
~ - - - ---- - - - - ~)[)
VONTADE VONTADE NACIONAL
INDIVIDUAL OU VONTADE DO POVO
CULTURA
CIÊNCIA
Figura 4. Heidegger e a questão ideológica
Heidegger [17] afirma, lá pelos meados da década de
30, que a Europa (tendo a Alemanha como centro), está
metafisicamente (logicamente, diríamos nós) entre duas
tenazes: de um lado a Rússia (tendo como sujeito da
ciência o ser coletivo IfD, acrescentaríamos nós) e de
outro a América (tendo como sujeito da ciência o
indivíduo liberal I). De quem estaria falando Heidegger,
18
senão do sujeito da ciência? Onde então poderia estar,
segundo ele, este sujeito desejado no caso da Europa, em
particular da Alemanha, que não na posição lógico-
diferencial D? Ver figura 2.
Depois disso, não pode caber a muurna dúvida
quanto ao seu profundo e prolongado comprometimento
com o nazismo. Não se precisa do livro do Victor Farias
(18] para se chegar a esta conclusão; como se pôde ver,
basta saber ler a própria lógica da situação e das
escolhas possíveis.
Sua posição não pode, entretanto, ser reduzida a
uma mera tomada de posição ideológica precisamente
em razão da crítica insistente e feroz que faz à ciência e à
técnica. Isto significa que ele vai muito além dos limites
estreitos da questão ideológica e se coloca como um
verdadeiro filósofo de sua época, um radical crítico de
sua cultura. Sob este ponto de vista, Heidegger é de uma
enorme clarividência.
A figura 4 deixa bastante claro que não se pode
logicamente contrapor povo e técnica. A técnica é algo
de natureza metafisica (no caso, além das ideologias); ela
é uma articulação entre a vontade individual
(determinação de projeto) (I)e o saber científico (D /2), sob
o poder castrador do ultimo (19]. É certo que ela não
chega a ser lógico-qüinqúitária (1/0/ 2 ), mas é bem o seu
simulacro.
Heidegger então anuncia com bastante clareza em
que direção irá se mover, deslocando-se da diagonal
machista (D/ 2 , I)para a diagonal feminina (D, 1/D) (20]:
E1 concepto no es aqui ya más 10 pensado, 10
imaginado (lógica),no lo racional enoposición a 10
irracional(porqueesta definicion se basa enlafrase:
el hombre es un animal {I} racional {D/2}. De Ia
necesidad de superar este antiguo "concepto" se
19
sigue una mayor amplituâ dei novo concepto. Estos
son los conceptos fundamentales denuestro futuro.
(colchetes nossos) (21]
De fato, a técnica é o próprio modo de ser do
homem quando concebido como apenas animal racional,
e isto vinha já de Aristóteles. Ademais, a algo de
determinado nível lógico só se pode contrapor algo deum
nívellógico igual ou superior. Assim, contra a sociedade
tecnificada (Df2 ~ I) dever-se-ia confrontar não apenas o
povo (enquanto apenas vontade, D), mas o povo e sua
vontade de tornar-se um povo histórico (D~ IfD).
Tornar-se um povo histórico não é uma
necessidade, não é algo inerente à condição de ser povo,
mas uma decisão (não necessariamente consciente), um
desdobrar-se em seu próprio ser aberto (além de D), na
direção do futuro:
- EI pueblo es hecho por Ia historia, élpasa a Ia
historia (futuro) en tanto que se sale da historia
(pasado). (22]
Cuando um pueblo pasa a lu historia ello quiere
decir: élentra alfuturo. (23]
Entrementes, a história, para o nosso filósofo, nada
tem de uma simples sucessão de acontecimentos
fortuitos destituídos de significação; o acontecer só
verdadeiramente acontece como modo próprio de ser da
tradição:
Historia y acontecer no son ya más uri continuo de
sucesos: Acontecer es tradiction .. (24) (negritos
nossos)
20
Lo que es desde lo ya sido es la tradición. Ella es
el carácter más propio del acontecer y lleva la
detenninatión propia por sobre nosotros bacia el
futuro. (25] (negritos nossos)
Aopção pelo sujeito povo (D),em Heidegger, estaria
pois essencialmente associada à problemática de sua
entrada ou saída na história (I/D). Pelo já visto,
entrementes, a história aqui se reduz ao acontecer da
própria tradição, vale dizer, é uma história sujeitada à
lógica da repetição. Embora a lógica da história seja a
dialética, síntese da identidade e da diferença (I/D), ela
aqui se mantém ainda refém de sua proveniência,
sujeitada à lógica da diferença (D).A sujeição da história
à tradição, a nosso juízo, constitui uma evidente
anomalia lógica.
Conclui-se, pois, que aquilo que vinha para se
contrapor à técnica, deveras o fazia, porém, sem
conseguir deixar de ser, tal como a técnica, apenas um
simulacro, mais um modo pseudo-lôgico-qüinqüitárío
(pseudo I/D/2). (Verfigura 2)
Em que pese a sagacidade e o poder de enxergar
para além das ideologias e mais ainda para aquém de
seu próprio tempo seguindo ao reverso as marcas
significantes deixadas meio às sendas do esquecimento
do ser, Heidegger, não consegue ir muito mais longe do
que lhe facultava sua própria cultura. Tira bom proveito
de um certo descentramento alemão em relação à
Modernidade, mas acaba sendo também vítima desta
mesma excentricidade (26]. Por tudo isso cometeu muitos
e sérios enganos que se pode assim resumir:
a) Embora tenha escapado dos estreitos limites do
reacionário plano ideológico, não consegue se assenhorar
do aberto em que se viu, que não era espaço, mas o
tempo histórico das culturas, talvez, por pressupõ-Io
21
apenas lógico-dialético trinitário (hegeliano) e não o que
verdadeiramente é, hiperdialético ou lógico-qüinqüitário.
Isto vai implicar em que sua crítica da técnica
(governada pela lógica formal D/ 2, tendo a lógica da
identidade I a seu serviço, portanto, um pseudo ser
lógico-qüinqúitário] acabe desembocando numa anti-
técnica (governada pela lógica da diferença D tendo a
lógica dialética I/D a seu serviço, também um pseudo ser
lógico-qüinqüitário]. Em suma, o que a rigor propõe é a
substituição da técnica machista (D/2 ~ I)por uma anti-
técnica feminista (D ~ I/D). Heidegger, imaginamos,
teria tido o maior horror a Lacan e seus "maternas da
sexuação" ! [27J
b) Não distingue ciência e técnica no que lhes é o
mais essencial, sua orientação diametralmente
divergente na ordem do tempo: a primeira desejosa do
que foi, a segunda fingindo ser já o que está ainda por
vir; por isso sub-avalia a força criativa da ciência e não
consegue perceber quanta oportunidade há para
denunciar a fragilidade da técnica quando em estado de
ilusionista exorbitância. Sem isto, como seria possível
escapar à impotência, ou pior, de uma praxis política
desastrada?
c) Não percebe que o problema da técnica não está
no que ela é, mas no que figura ser, vale dizer, não em
seu rosto, mas nas suas máscaras sedutoras. Havia um
precedente que lhe era bem familiar - a exorbitância
poética dos gregos -, porém, dela não se apercebeu,
talvez desencaminhado pelos hinos e encantos de
Hõlderlin; daí, não se dever estranhar, que no fim de seu
périplo filosófico,vá sugerir a volta à mesma exorbitância
poética grega!
22
3.2. A Escola de Frankfurt os meios de
reprodução e comunicação de massa
Vale a pena aqui fazer uma breve referência à
Escola de Frankfurt (sempre Frankfurt!). É bem
conhecida a sua dívida para com Marx (lfD) e Freud (D),
parece-nos, entretanto, que. ela é ainda maior para com
Heidegger. Como pretendemos mostrar, o que a Escola
acaba mesmo realizando é uma "inversão interna" no
esquema lógico heideggeriano.
É um juízo quase unânime que a Escola de
Frankfurt, em que pese o nome, não chega a se
configurar como uma verdadeira escola de pensamento:
lt may even be questioned uihether they have
anything in common beyond the programme for a
restatement of Marxisme iri the form of a (critica1
theoru of society'. (28)
Seria mesmo assim? Realmente reconhecemos uma
certa dificuldade em apresentar uma lista de concepções
comuns à Escola, entrementes, valendo-nos de uma
estratégia geral de envolvimento, podemos chegar a uma
visão relativamente coerente e precisa sobre o que de fato
pretendem os defensores da Teoria Crítica. Não importa
a ordem de apresentação nem o peso relativo de cada um
dos "lances ou movimentos" por eles realizados; importa
sim o seu conjunto que acaba se mostrando de
surpreendente harmonia, completude e eficácia teórica.
Vejamos:
a) Todos os membros reconhecidos da Escola
passam pelo marxismo, consequentemente, pela
dialética, porém, insistindo na sua desabsolutização. Isto
significa que a noção de totalidade, verdade do ser
23
dialético, perde seu peso metafisico e por conseqüência
deixa de se constituir suporte para os extremismo
totalitários. Isto é feito de diferentes maneiras, seja
dando mais peso à Fenomenologia do Espírito e menos à
Lógica hegelianas [Habermas), seja sobrevalorando o
momento negativo da dialética em detrimento do seu
momento de síntese, como é o caso, por exemplo, da
"dialética negativa" de Adorno. Deste modo, barra-se
qualquer pretensão de onipotência do conceito, como
também, de equivalência de ser e pensar, pelo menos a
nível lógico-dialético. Tanto para Horkheimer como para
Adorno, na conjunção dialética e materialismo, é o
último que torna a primeira um processo infmitamente
aberto; não importam o âmbito e as circunstância,
sempre existiria um outro. A desabsolutização da
dialética é justamente o que vai permitir a sua
articulação com outra lógica, no caso, com a lógica do
outro ou da diferença. Ver figura 5.
b) Seguindo Karl Korsch (Marxismo e Filosofia
1923), denuncia-se abertamente a aproximação do
marxismo com o positivismo cientificista, que, aliás, teria
suas raizes nas ambigüidades do próprio Marx com
respeito ao valor da ciência e da técnica.
c) Aceitação da psicanálise como um real
contrapeso a eventuais desvios conceptualistas
totalitários da dialética, porém, também taxando como
suspeita a aproximação do próprio Freud com o
positivismo; rejeita-se abertamente à psicanálise o
estatuto de cientificidade com que tanto sonhara Freud.
d) Rejeitando a prima philosophia e as filosofias
subjetivistas e, com estas, a lógica transcendental ou da
identidade que lhes dá suporte. Kant e Fichte são
aceitos, não pelo transcendentalismo, mas, obviamente,
pelo valor que dão aos imperativos da razão prática.
Adorno é o mais critico da razão identitária que a seu
ver necessariamente suprime as diferenças. Este
24
posicionamento, na verdade,e comum à toda a Escola
como assinala Kortian:
The Critical Theory of Frankfurt School simply
reproduces this metacritical paradigm iri its merciless
attacks on any rehabilitatiori of a prima philosophia.
(29)-
"ã: RESIST~NCIA À APROXIMAÇÁO DO
__ MARXISMO COM o POSITlVISMO
CIENTIFICO
/--~- ..
, . / ...~ : f: CRITICA DAS UMITA,
\ ' ; í _,_ ~_,! ÇOES DA OBJF:TTVI,
I"U:CO: ••,~..... •. -, -.- -- - - \ _{~/2 ~ DADE CIENTiFICA
:--. i DESABSOLt:TlZAÇ_~O.,,,",. \.,:=: .z.> .•••
.._. DA DIALITICA :';;;..~.:.-~ i'~:;':':"
HEGEUAKA "'''~, ê~ AT'" : rc-: RESISTÊNCIA A APROXIMA-
.....'- ~ . ~ CÃO DA PSICANAusE COM
d,G't-.,.~.1> """0 POSITMSMO CIE:-JTtFICO
,,-~---_ <, "f(} ~~i~·';
:,,~, ~ ---'~
..,':..1" .. ' \ ,'. ·.~~~l~~~~~~"'O DA
: d RECUSA DAS fILOSOFL~S.. _'o I RELEVANCIA DA ARTE
'_. DA IDENTIDADE I g , CRfTICA DA rtCNICA E
.--..~ DAS IDEOLOGIAS
ASSOCIADAS
.- ---.-----.
Figura 5. A formação lógica da Teoria Critica
e) Não é de se estranhar que a estima pela psicanálise
venha de par com a valorização da arte; Horkheimer
lamenta que a Modernidade tenha cortado do âmbito da
verdade não apenas a política e a religião, mas
principalmente a arte. Hoje a cultura teria se
transformado em mera indústria de diversão para
mistificação das massa. Para Adorno, nada melhor do
que a arte para romper, por dentro, as falsas totalidades.
f) Embora não se furtem à pesquisa empírica,
rejeitam liminarmente o método e a postura objetivista
2S
a técnica que ele critica. critica. São, os dois, modos de
pensar a meio caminho do pensar pleno lógico
qüinqüitário - como degraus ou como enormes pedras,
conforme o uso que deles se faça.
4.Critica radical da cultura
Definitivamente, a Modernidade não se reduz a um
simples modo de produção. Foi por assim acreditar que
acabamos todos caindo onde caímos, na era do
pensamento único. Não há mesmo saída à esquerda nem
à direita. Não há dúvida que faliram as ideologias, e
sabemos hoje bem o porquê: não pretenderam outra
coisa senão alcançar o capitalismo perfeito através da
simples troca do sujeito sujeitado da ciência, ficando
esta sempre impensada.
Ora, a Modernidade é antes de tudo uma cultura
em cujo âmago vive a ciência com o seu inesgotável
poder de cálculo de todas as coisas deste e doutros
mundos, levado às últimas conseqüências. Se
insistirmos em abdicar de pensá-Ia, deixando-a à
vontade para pensar-nos, como contemporaneamente
acontece por toda parte - em todas as universidades, em
todas as logias -, é porque não nos interessa mesmo a
salvação, qualquer que esta possa ser.
Vimos também que poucos conseguiram até hoje
ultrapassar os estreitos limites da critica ideológica,
excetuando-se, primeiro, Heidegger e, depois, pela via
inversa, a Escola de Frankfurt. Entretanto, não foram
eles longe o suficiente para se constituírem como
verdadeiras instâncias criticas da cultura e, por
conseqüência, também da ciência. A nosso juizo, não se
pode pretender chegar à crítica da Modernidade sem um
pensamento resoluto disposto a medir-se com a ciência,
não obviamente naquilo que respeita a seus métodos e
27
resultados, mas quanto à sua significação e, sobretudo,
às suas ardilosas promessas.
Heidegger chamou nossa atenção para o fato que os
descaminhos da filosofia já vinham de bem longe, ainda
de sua época grega: com Parmênides o logos se
degradava em lógica transcendental (I), com Platão, em
lógica dialética (I/O), com Aristóteles em lógica formal
(D/D=D/2). Tudo isto veio se repetir, tintim por tintim,
lógica por lógica, na Modernidade com as filosofias de
Kant, Hegel e Leibniz, respectivamente. Que era então o
logos heraclítico que a própria filosofia paradoxalmente
desconhecia? No referencial ali tacitamente assumido,
nada mais, nada menos do que o pensar da diferença (O)
(32). Hoje, na era da ciência e da técnica, sob o império da
lógica da dupla diferença (D/O) - que precisamente por
ser tal é lógica da diferença recalcada -, pleitear o
retorno ao logos heraclitico, ou mesmo à só palavra
poética, é se colocar à espera de um deus que se crê
infantilmente vá um dia se arrepender e voltar. É fazer
tábua rasa, igualmente, de mais do que 2000 anos de
história, não apenas da filosofia, mas da humanidade
concreta no inexorável e penoso curso de seu auto
desvelamento. No imaginário e na prática, a pior das
emendas!
O esforço heideggeriano de denúncia da essência
metafisica da técnica (da ciência, preferiríamos nós), que
acaba sendo também a denúncia dos limite da critica
ideológica da Modernidade, embora insuficiente, não será
entretanto perdido se vier contribuir para que a filosofia
reconquiste seu vigor originário grego. Isto implicaria
avançar ao invés de retroceder; implicaria hoje na
assunção, entre outras coisas, de um poderio
hiperdialético qüinqüitário que a capacite para a urgente
e imprescindível tarefa de critica radical da cultura, em
especial, da cultura Moderna.
28
E a ciência? Da ciência, não há o que se esperar.
Jamais tivemos ou poderemos ter uma critica científica
da Modernidade. Mesmo a antropologia já se declarou,
pela voz de seus maiores e com ares de sonsa gravidade,
preventivamente, como sendo o saber das culturas em
desaparecimento, vazando assim os próprios olhos para
não ver que não era o destino, mas sua própria cultura
que perpetrava tal' extermínio em escala planetária.
Como poderia estar a ciência disposta à critica profunda
da Modernidade se é ela própria o seu fundamento? Em
tal circunstância, a crítica da Modernidade se
constituiria em auto-crítica da ciência (diga-se de
passagem, incompatível com sua própria lógica, onde
vige o princípio da falsa identidade (33)). É óbvio que esta
não é sua tarefa; trata-se sobretudo de uma tarefa para o
Pensamento (tomado em sua acepção máxima mundana,
ou seja, lógico-qüinqüitária).
Não há mais qualquer outra alternativa para um
efetivo exercício crítico radical da Modernidade senão se
postar à quinta margem do rio - não falamos do rio
temperado e montanhoso de Heráclito, dialético
trinitário, mas coerentemente de um rio amazônico bem
mais caudaloso, porque hiperdialético qüinqüitário -, de
onde se pode espiar o homem cansado e sofrido mas
chegando e se achegando enfim à sua morada, à sua
própria plenitude onto-lôgica,
Notas
1, SAMPAlO, L. S. C. de. Noções de antropo-logia. Rio de Janeiro,
UAB, 1996. Alternativamente, pelo mesmo autor, o vídeo
Antropologia cultural, I, Il, me W, Rio de Janeiro, EMBRATEL/
UAB,1993.
29
2. As expressões I, D, I/D etc. são apenas uma taquigrafia, uma
simbologia mnemônica para designar as diversas lógicas da
tradição. Existiriam duas lógicas fundamentais: I (lógica
tranacendental ou da identidade) e D (lógica da diferença). As
demais lógicas seriam delas derivadas através da operação de
síntese dialética generalizada simbolizada por "j ". Teriamos,
então, IjD (lógica dialética), D/D=Df2 (lógica cláuica),
I/D/D=I/Df2 (lógica hiperdialética ou qüinqüitária) etc. Na
esfera mundana, a ultima é por nós considerada a lógica
própria e exclusiva do ser humano. Para maiores detalhes, ver
SAMPAIO, Luiz Sergio C. de, Noções de antropo-loqia: Rio de
Janeiro, UAB, 1996 (xerografado) ou BARBOSA, M. C. As
Lógicas. Rio de Janeiro, Makron Books, 1998.
É bom alertar que o presente texto foi construído para ser lido
independente destas referências taquigráficas. Elas aqui estão
porque acreditamos que alguém, desde que não as tema, possa
tê-Ias como um conveniente e simples apoio didático.
3. SAMPAIO, Noções de Antropo-Iogia e Vídeosjá citados
4. Poder-se-ia usar a expressão pré-Iógica, num sentido bem
preciso de que são culturas que operam logicamente, porém,
não se dão conta que o fazem, isto é, não conseguiram conferir
lhe uma expressão simbólica e coletiva estável. Por isso
representam e sacralizam sua relação com a Natureza,
cabendo-lhes pois a designação de culturas ecológicas.
Ademais, se usássemos a expressão pré-Iógica
desencadeariamos uma terrível tempestade por parte de
estruturalistasjrelativistas que tão logo nos acusariam de
repetir um sério pecado cometido por Lévi-Bruhl. Aliás, uma
polêmica cheia de veneno e má fé, tendo-se em conta que Lévi
BruhI usou a expressão pré-Iógico não no sentido de destituído
de lógica, mas como dotado de uma outra lógica, aquela
identificada por Ribot (de influência freudiana) como,
precisamente, Iogique du sentimento
5. Car la différrence des deux hommes en presence est que l'un,
Phomm« trinitaire, acceptait Ia mort, faisait de Ia
représentatiori de Ia mort dans Ia vie le fondement de son ordre
symbolique et du lien social, alors que l'autre, t'hamme btnaire,
veut en fin de compte l'érradicaiion de Ia morto (negritos nossos)
DUFOUR, D-R. Les musteres de Ia triniié. Paris, Gallimard, 1990.
Leia-se trinitaire como cultura lógico-dialética trinitária e
binaire como cultura lógico formal ou moderna. ° que este
autor não chega a perceber é que a erradicação da morte
30
u
justamente intitulado Jewish Economic Life and the Frankfurt
Tradition. p.123.
14.Hegel a Francfort de Bernard Bourgeois, Paris, J. Vrin, 1970.
Trata-se de um estudo acerca dos textos sobre o cristianismo e
o judaísmo elaborados por Hegel em sua estadia em Frankfurt ..
Apenas levados por este estudo. fomos aos textos de Hegel e daí
direto a procurar algum estudo sobre o que estavam fazendo os
judeus lá, para provocar tamanha ira ao nosso filósofo.
Ajudados por nosso amigo Nelson Kuperman, encontramos
diversas obras, porém a mais importante delas para o que nos
interessava foi a de Sachar, já citada na nota 46 anterior.
15. Referência a Georges Sorel. A propósito, ver Sternhell,
Sznajder, e Ashéri, Naissance de l'idéologie fasciste, Paris,
Gallimard, 1989.
16. Dentro de uns 200 anos - ou menos, se tivermos sorte -,
existirão museus de horrores onde serão exibidas as peças
promocionaís que hoje infestam os nossos "meios de
comunicação". Ninguém estará mais interessado nos
instrumentos de tortura corporal da cultura cristã medieval
(I/D), mas nos instrumentos psíquicos de apropriação do
imaginário alheio usados pelos psicovampiros da cultura da
Modernidade que havia já sido superada.
17. Ficamos simplesmente perplexos quando se levanta a questão
de uma filosofia brasileira e logo acorrem os defensores da
"filosofia perene" dizendo que isto não faz sentido, pois tal
aproximação conspurcaria a nobre filosofia. Como sustentar tal
posição diante do cortejo de filósofos alemães - Fichte,
Schelling, Hegel, Nietzsche, Heidegger e Habermas, só para ficar
com os mais importantes -, cada um deles com seu, mais ou
menos explícito, Discurso à Nação Alemã debaixo do braço?! Isso
lá acontece porque sabem que, dentre as mais relevantes tarefas
da filosofia, hoje que não somos mais gregos, é a critica da
cultura em que o próprio filósofo está imerso (Cassirer). E é
precisamente isto que faz "amarelar" os nossos.
18. Essa Europa. numa cegueira incurável sempre a ponto de
apunhalar-se a si mesma, se encontra hoje entre dois grandes
tenazes, com a Rússia de um lado e a América de outro. Rússia e
América, consideradas metafisicamenie, são ambas a mesma
coisa: a mesma fúria sem consolo da técnica desenfreada e da
organização sem fundamento do homem normal. Quando o mais
afastado rincao do globo tiver sido conquistado técnicamente e
32
explorado economicamente; quando qualquer acontecimento em
qualquer luqar e a qu.aIqu.er tempo se tiver tomado acessível com
qu.aIqu.er rapidez; quando um atentado a um Rei na França e um
concerto sinfõnico em Tókio puder ser "uiuido" simultaneamente;
quando tempo significar apenas rapidez, instantaneidade e
simultaneidade e o tempo, como História, houver desaparecido da
existência de todos os povos; quando o pugilista valer, como o
grande homem de um povo; quando as cifras em milhões dos
comícios de massa forem um triunfo, - então, justamente então
continua ainda a atravessar toda essa assombração, como um
fantasma, a pergunta: para quê? para onde? e o que agora?
Estamos entre tenazes. A Alemanha, estando no meio, suporta a
maior pressão das tenazes. É o povo que tem mais vizinhos e,
desse modo, o mais ameaçado, mas, em tudo isso é o povo
metafisico.
Isso implica e exige , que esse povo ex-ponha Historicamente a si
mesmo e a História do Ocidente, a partir do cerne de seu
acontecimento futuro, ao domínio originário das potências do Ser.
HEIDEGGER, M. Introdução à metafisica. Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro, 1966. pp. 79-80
19. FARIAS, Victor. Heidegger et le nazisme. Paris, Verdier, 1987
20. Podemos exemplificar: para que um homem consiga voar, não
lhe basta um profundo conhecimento de aerodinâmica (D/D=
D/2); lhe é necessária também a firme determinação de fazê-lo
(I). O avião, depois de pronto e voando, é de novo simples saber,
saber materializado (D/2).
21.0 ser humano é de nível lógico I/D/2, lógica que subsume,
além de si própria, as que lhe antecedem: I, D, I/D, Df2, estas
quatro por nós denominadas lógicas de base. Isto leva a que no
ser humano a "sexuação" biológica venha a ser re-definida,
deixe de ser bipolar (representável por um segmento de reta),
como nos outros animais, para tornar-se tetrapolar
(representável por um quadrado). O par diagonal {I, Df2}
designa o masculino e o par diagonal {I/D, D} o
feminino; e como (1)/(D/2) = I/D/2, tanto quanto (I/D)/(D) =
= I/Df2, conclui-se, imediatamente, que masculino e feminino
são modos onto-lógicos de realização do ser humano (I/D/2).
22. Esta e as próximas citações provém todas de HEIDEGGER, M.
Lógica - Lecciones de M. Heidegger (semestre uerano 1934) en el
legado de Helene Weiss. Barcelona, Anthropos, 1991. p. 77
23.ibid. p. 43
24.ibid. p. 43
33
25.ibid. p. 75
26.ibid. p. 73
27.Tudo isto deve se constituir numa inestimável lição para
todos nós brasileiros, que vivenciarnos uma posição excêntrica
em relação à cultura paradigmática anglo-saxônica, embora de
um outro tipo que a dos alemães de então. Isto nos dá certas
vantagens, mas também nos toma VÍtimas potenciais desta
mesma excentricidade. É uma vantagem, uma enorme
vantagem como pressente qualquer estrangeiro de sensibilidade
que aqui aporta, mas que não é, definitivamente, uma
"vantagem econômico-competitiva" como, ao terem noticia,
irão certamente acreditar nossos "sociais-democrtas".
28. ROUDINESCO, Elisabeth, Jacques Lacan - Esquisse d'une me,
histoire d'un systeme de pensée, Paris, Fayard, 1993. A autora
fornece informaçôes suficientes para que acreditemos numa
forte rejeição de Heidegger às idéias, como até mesmo à pessoa
de Lacan
29. KORTIAN, Garbis. Metacritique - The Philosophical Argument of
Jürgen Habermas. Cambridge, Cambridge UP , 1980. p. 25
30. Ibid. p. 43
31. ADORNO, T. W. Critica CUltural e Sociedade in Theodor W.
Adorno, Org, Gabriel Cohn, in S. Paulo, Ática, 1986 e entrevista
a Der Spiegel, 1968.
32. SAMPAIO, L. S. C. de, A Lógica da Diferença, Rio de Janeiro,
1999.
33. ° verdadeiro e óbvio princípio da identidade é A(A(x)=A(x), que
traduz justamente a propriedade de reflexibilidade e, em
conseqüência, a possibilidade do exercício da auto-critica. Na
lógica clássica este princípio é escamoteado e substituído por
sua ausência ou sua múmia, a identidade "estática" A(x) = A(x)
ou abreviadarnente A=A.
34
Nenhum comentário:
Postar um comentário