31.3.17

Ainda, a hipótese do contínuo

Luiz Sergio Coelho de Sampaio


Desci secretamente, rolei pela escada proibida, caí. Ao abrir os olhos, vi o Aleph.
- O Aleph? - perguntei.
- Sim, o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos.
Jorge Luis Borges, O ALEPH

1. Introdução

     À época de Cantor, meados do século XIX, início do século XX, já eram conhecidas diferentes infinitudes: a dos números naturais, relativos, racionais e aquela que parecia ser a maior de todas - ainda que abaixo de Deus -, a dos números reais, compreendendo tanto os racionais quanto os irracionais (em termos geométricos, dir-se-ia o contínuo) e suas múltiplas dimensões - plano, espaço tridimensional , etc.

      A sua ordem de “magnitude” crescente presumida era esta mesma de como foram aqui citados, porém, sem que tivesse sido exibido até então um critério objetivo que sustentasse tal ordenação, muito menos as provas correspondentes. O grande matemático alemão concebeu uma teoria dos números transfinitos (2), onde, além dos acima citados, comparecia toda uma seqüência aberta de novos infinitos e se estabelecia um critério, aparentemente preciso, de atribuição de “magnitudes”, vale dizer, de cardinalidade que permitia sua ordenação objetiva e unívoca.

     Cantor demonstrou, com uma notável artimanha organizadora (o famoso argumento da diagonal) que os três primeiros infinitos citados - referentes aos números naturais, relativos e, contra a intuição corrente, também aos racionais - possuíam a mesma cardinalidade (no sentido de que podiam ser postos uns com os outros numa relação biunívoca, ou seja, ter todos os seus elementos postos em correspondência um a um, enfatize-se, de modo exaustivo). Este, o menor dos infinitos, foi por ele batizado como À0 (alefe zero) (3).

     Os reais (reta) e suas múltiplas dimensões - plano infinito, espaço infinito etc. - foram todos mostrados de igual cardinalidade e equivalentes a seqüências infinitas de números naturais. Entrementes, não podiam ser postos em correspondência biunívoca com os naturais e, como relativamente excessivos, teriam que ganhar uma cardinalidade superior a À0, que  ele chamou de À1(alefe um).

       Logo surgiu-lhe a pergunta: haveria um outro infinito com cardinalidade intermediária entre aquela dos enumeráveis (naturais) e a do contínuo (reais)? Cantor formulou então a famigerada hipótese do contínuo(4), que dava a esta questão uma resposta taxativa: não, em termos de continuidade transfinita, a À0 seguia-se necessária e imediatamente À1. Ele próprio tentou de todas as maneiras comprovar a justeza da referida hipótese, morrendo, contudo, sem consegui-lo.

      Só em 1960 o matemático americano Paul Cohen (5), da Stanford University, conseguiu provar a independência da hipótese do contínuo, isto é, que na teoria axiomática dos conjuntos que ele tomou por base (o sistema Zermelo-Fraenkel(6)) a questão era indecidível: não era possível provar que sim nem que não.

     Estávamos, pois, livres para agregar um novo axioma à teoria de base estabelecendo quantos níveis escalonados de infinitude  (ou de magnitudes infinitas)  quiséssemos entre À0 e À1, inclusive, como desejava Cantor, nenhum. Existia assim um número infindável de teorias de conjuntos do tipo Zermelo-Fraenkel, preservando todos os resultados (teoremas) até então considerados válidos, porém diferindo no número de     “À fracionários”, entre À0  e À1, e, naturalmente, em novos teoremas que estivessem de algum modo na dependência deste novo axioma.

       No essencial o assunto foi desde então dado como liquidado pelos matemáticos. Entretanto, não nos parece que devesse ser assim, pois, na própria intuitição do criador da teoria dos tranfinitos, a hipótese do contínuo se afigurava como de valor crucial para assegurar a saúde da teoria  e daí, ao que parece, a dele próprio.
     A nosso juízo, não é difícil imaginar porque assim pensasse. Se fosse admitida uma infinidade de degraus de infinitude entre os enumeráveis (À0) e os reais (À1), a inconsistência que o próprio Cantor já constatara na noção de conjunto de todos os À se manifestaria num nível ainda bastante “baixo” de sua  seqüência de transfinitos, o que viria arruinar o restante de sua construção teórica. É uma pressuposição, certamente, mas que nos parece até bastante natural.
    Se tudo isto é verdade, a demonstração de Cohen é apenas o começo da história; estamos convictos de que ela exige continuação. Pelo menos Cantor, se vivo e são, temos certeza, concordaria com isto. Vê-se, pois, que não estamos hoje sós, pelo menos espiritualmente.
   Nosso objetivo aqui será o de tentar sacar as conseqüências que nos pareçam as mais relevantes a partir do notável feito teórico de Cohen.

2. A infelicidade significante

 

     Nada mais terrível para o futuro do pensamento do que a infelicidade significante. Ela acontece quando alguém desvela algo de suma importância, que por isto mesmo, semanticamente, perdia-se na bruma das homonímias e equivocações; não tinha ainda nome próprio e especifico. A este alguém dá-se então a excepcional oportunidade e honra da escolha de um nome de batismo. A infelicidade significante ocorre quando o nome escolhido se afigura especialmente adequado para o restrito âmbito em que o desvelamento se deu, porém, que se mostra completamente inadequado quando se procura ir um pouco além deste âmbito original. Em síntese, como todo mundo babe, um nome não é apenas para quando se nasce, mas para toda a vida.

     Um exemplo, por nós mesmos já assinalado (7), foi o de Boole, escolhendo, no sistema  algébrico que leva seu nome, os números 1 e 0 para representar os valores de verdade verdadeiro e falso. Até aqui, nenhum problema. Porém, quando saímos do âmbito da lógica clássica (da qual a álgebra de Boole intenta ser um modelo algébrico) vamos descobrir quanta dificuldade aquela simples e aparentemente natural adjudicação acabou trazendo ao desenvolvimento da lógica.

       Sabemos hoje que a cada uma das lógicas está associado um operador característico, cujos valores próprios (8) são a exata representação formal dos valores de verdade da lógica em questão. Ora, o operador que representa a lógica transcendental ou da identidade (9) é, naturalmente, o operador identidade - operador I tal que I(I(y))=I(y) ou abreviadamente I2(y))=I(y) -, que possui como valores próprios 1 (ser) e 0 (nada), justamente os valores que Boole escolheu para representar os valores de verdade da lógica clássica ou do terceiro excluído, quando o adequado (10) seria 1 e –1. Em decorrência disso, ser e nada passam ase confundir, respectivamente, com verdadeiro e falso. A trapalhada estava assim  formada e para desfazê-la seria necessário, com alguma sorte, algo assim em torno de 100 anos.

       Cantor, quando da atribuição de seus alefes (À), foi vítima de uma enorme infelicidade significante, de porte semelhante àquela que acometera a Boole. Com um agravante: sua adjudicação também atentava contra um princípio representativo tradicional na matemática. Trata-se simplesmente da questão de quem, na verdade, deveria chamar-se Ào.
    O índice zero não deve servir nunca para nomear o primeiro elemento de uma seqüência. Quando este é o caso, apenas, se deve usar o índice 1. O índice zero, ao contrário, precisa ser reservado - como é costume entre os matemáticos, ainda que nem sempre conscientemente -, para representar a negação/afirmação da essência da “classe” considerada, pois esta é precisamente a virtude fundamental do zero na seqüência dos naturais. O zero é o “nada qualificado”, o número que é nada de número, assim como o conjunto vazio (conjunto dos x tal que        x ¹ x) é o nada de conjunto. Estas entidades servem para conferir autonomia à estrutura formal a que vão pertencer. O que se quer do zero é ele faça esquecer a pergunta ontológica leibinziana: a pergunta pelo ser ou pela origem dos números, vale dizer, por que há números e não, tão somente Nada. Com o zero, instalando-nos (milagrosamente) entre os números lá ficamos e não mais temos como sair (a não ser por um outro milagre).
      Assim, ao tratar dos transfinitos, Cantor deveria ter reservado o Ào para a classe dos transfinitos que são nada de transfinito, para aquela (classe de equivalência) que fica logo “abaixo” do primeiro número essencialmente transfinito. Esta última (a cardinalidade dos enumeráveis), portanto, deveria receber a denominação À1, bem à semelhança do que representa o número 1 no conjunto dos naturais. Não fica, pois, a menor dúvida de que o significante (ou nome) Ào deveria caber à cardinalidade da classe dos conjuntos finitos, e não aos naturais. Tudo, como se pode ver, bem acaciano!
     A questão que fica é a de se saber o porquê de um matemático do porte de Cantor ter cometido (ou ter sido acometido de) um equívoco assim tão chinfrim? Seria este um problema de natureza psíquica para alguém como Nathalie CHARRAUD (3) ou - perguntaríamos a Heidegger lá  no Céu, mais vivo do que nunca -, a manifestação de algo que lhe era transcendente, a vicissitude de ter o alemão como língua mater (uma compensação, obra da justiça divina, pelo fato do alemão já se constituir na única língua realmente filosófica ?!).
      Em que pese a aparência, não estamos só brincando. Como teremos oportunidade de demonstrar um pouco mais adiante, esta infelicidade significante (e quem sabe, todas!) acabou vindo a calhar, a funcionar até hoje como um biombo para a questão da origem dos entes transfinitos, para o velamento da diferença ontológica no sentido mesmo heideggeriano - por que transfinitos e não tão somente nada?
     O que importa mesmo agora é corrigirmos a infelicidade cometida: daqui por diante Ào. passa a designar a cardinalidade de um conjunto finito (porque não a do conjunto dos algarismos, {0, 1, 2,..., 9} ?); À1 a cardinalidade dos enumeráveis (dos naturais, por exemplo), À2 a dos reais, e assim sucessivamente, se é que isto vá, doravante,  ainda fazer algum sentido. O que na nomenclatura cantoriana é Ài, na nossa é Ài+1, reservando-se, nesta última, o significante À0 para representar a cardinalidade dos conjuntos finitos em geral.
 3. Tendo a estética como guia para a verdade


   Estabeleçamos a seguinte representação simbólica:

FI     conjunto finito qualquer, de cardinalidade À0,  
NN  conjunto dos números naturais, de cardinalidade À1,

RE    conjunto dos reais, de cardinalidade À2,  

c(x)   cardinalidade do conjunto  x

S[x]   algum subconjunto próprio do conjunto x

P[x]  conjunto de todos os subconjuntos do conjunto x ou, simplesmente, conjunto potência do conjunto x.


A primeira coisa a fazer aqui é buscar escapar à poderosa mente de Cantor, comprometida em pensar o problema do infinito a partir já do próprio infinito, isto é, a partir da infinitude dos naturais. Vamos nos valer da nossa própria cabeça, isto é, pelo que se nos afigura como sendo o mais natural: começar não com os naturais, mas com os conjuntos finitos em geral (o nada de infinitude), para poder assim surpreender o processo de passagem do finito ao infinito. A partir daí, sim, iríamos incorporar os primeiros transfinitos cantorianos, o que nos levaria  ao seguinte quadro geral:
 
$ S[FI]  t. q.          c (S[FI])     <      c (FI)     <      c (P[FI])                    

$ S[NN]  t. q.         c (S[NN])    =     c (NN)    <     c (P[NN])                    

$ S[RE]  t. q.         c (S[RE])    =     c (RE)    <     c (P[RE])

     O quadro deixa bem evidente uma injustificada assimetria, seja qual for o eixo considerado (traçamos alguns sobre a tabela). Tomando-se o eixo vertical (linha cheia), constatamos que do lado direito existem três  < , enquanto que do lado esquerdo, apenas dois =, aparecendo ainda um < . Seriam muitos os modos de tentar impor a simetrização do quadro, com um mínimo de perturbação. Poderíamos, por exemplo,  pensar em trocar o único <  a esquerda por um =. Mas isso seria um atentado contra a mais sólidas das evidências: que a cardinalidade de todo subconjunto próprio de um conjunto finito - c(S(FI)) - é menor do que a cardinalidade do próprio conjunto finito - c(FI).
    Cremos que o mais didático é tomar como referência o eixo diagonal tracejado, em relação à qual, temos acima três  < , e abaixo, apenas dois = e ainda um <. Sob esta perspectiva, uma das maneiras de superar a anomalia poderia ser super a substituição de c (RE)  <  c (P[RE]) por c (RE)  =  c (P[RE]) como mostra o quadro abaixo:
             
$ S[FI]    t. q.       c (S[FI])     <      c (FI)     <     c (P[FI])                    
 
$ S[NN]  t. q.        c (S[NN])    =     c (NN)    <     c (P[NN])                    

$ S[RE]  t. q.        c (S[RE])    =      c (RE)   =     c (P[RE])  

    A enorme significação desta solução é que, além da simetrização, estaríamos ganhando também um critério estrutural objetivo para a caracterização/discriminação  das linhas, ou seja, dos conjuntos finitos (< < ), dos conjuntos infinitos enumeráveis ( =  < ) e dos conjuntos infinitos contínuos ( = = ).
   É interessante notar que a problemática estética não pode nem mesmo emergir, mantida e infelicidade  significante de  estrutural :                                         
Nível do À0                      S(x)   =      x   <    P(x)
Nível do À1                      S(x)   =      x   <    P(x)   
Nível do À2                       S(x)   =      x   <   P(x)
e assim por diante.
Entrementes, no limite, a monotona simetria teria que, necessariamente, quebrar-se:

Nível do Àlimite de n                       S(x)   =      x   =   P(x)

     Antes pois a verdade, quando for possível, então , a prova! Um apurado senso estético geralmente não falha, porém, na era do positivismo exacerbado - onde existir é ser-contábil -, quem se arriscará a sustentar apenas esteticamente a verdade ?! Nestas circunstâncias, será que é possível encontrar uma razão formal que referende nosso juízo estético.

4. Um esforço de prova

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