31.3.17

A classe média existe

5 LIÇÕES DE ECONOMIA PARA QUEM NÃO QUER SER MAIS ENGANADO POR INESCRUPULOSOS PRESIDENTES, MINISTROS, EQUIPES ECONÔMICAS, PARLAMENTARES, E COMENTARISTAS DE TV

A CLASSE MÉDIA EXISTE

                                                  Luiz Sergio Coelho de Sampaio      
                                                  Rio, 15 de outubro de 1997    


Toda a vida social hoje está reduzida e sua dimensão econômica. O discurso sócio-econômico dos que se colocam como autoridades tórica e política é um amontoado de sandices sem o menor embasamento empírico e qualquer consistência lógica. De um lado, o discurso do poder  - presidente da república, governadores, parlamentares, membros de equipe econômica - cujo único objetivo é fazer com que a nação se submeta de joelhos a interesses estrangeiros de quem ela s são sócias, em diferentes graus de evidência, De outro

O processo de acumulação autônoma de capital, em um sistema  econômico qualquer, exige uma permanente injeção de ganhos de produtividade; a propósito, uma verdade que desprezada fez ruir o socialismo real. A razão disso é relativamente simples de entender. Se fizermos uma contabilidade global, não em termos monetários, mas em termos de um equivalente em horas de trabalho social médio - assim fizeram Ricardo, Marx e, de algum modo o fazem todos que precisaram comparar atividades econômicas em  diferentes tempos ou espaços  -, teremos que concordar que o produto global crescerá, no máximo, à taxa de aumento da população ativa que, a longo prazo, é aproximadamente igual à taxa de aumento populacional (na condição de pleno emprego para o acréscimo populacional).  Esta taxa, mostra a  História, dificilmente supera a cifra de 3% ao ano. Quanto à taxa de acumulação de capital, ela só excepcionalmente poderá situar-se abaixo de 7% , o que é também muito fácil de compreender, se deixarmos de lado a hipocrisia. Quem de nós aceita de bom grado rendimentos reais de 6% ao ano? A conta  poupança que a oferece, tem que adicionar a isenção fiscal e a segurança governamental plena para que não fujamos todos dela. Como querer que  empresários corram todos os riscos para ganhar menos do que  ganhariam sem fazer nada em condições de risco zero, aplicando seu capital em uma conservadora caderneta de poupança?!

  Agora atentemos: a grosso modo, se, de um lado, o produto global cresce abaixo da taxa de 3%  e, por outro lado, a acumulação de capital se dá com taxa superior a 7%, é matemática e inexorávelmente certo que a diferença, presumivelmente destinada ao consumo, vá variar a uma taxa negativa e, conseqüentemente, o consumo per capita diminuir mais ainda. Ver figura 1.

Figura 1: Taxa de crescimento versus taxa da acumulação de capital


Assim, em essência, raciocinou corretamente Marx para provar sua tese do empobrecimento crescente do proletariado sob o regime capitalista. Acontece que toda esta nossa contabilização foi feita em termos de horas de trabalho social médio e não de quantidade física de produtos e serviços. E qual o problema? É que as duas contabilizações só coincidem no caso de constância dos níveis de produtividade de um ano para outro. Caso verifique-se algum ganho de produtividade, a oferta para consumo, medida em horas trabalhadas, irá  decrescer, porém, podendo ser compensada pelo aumento da taxa de produtividade do trabalho e, com isto,  até proporcionar um crescimento efetivo do consumo físico per capita. O aumento da taxa de produtividade do trabalho não é o simples resultado da competição - e como poderia sê-lo, se na prática, no que se refere à maior parte  do tempo e ao grosso da produção, cada vez mais dominam os oligopólios?! Na verdade, o aumento da produtividade é uma exigência matemática do próprio processo de acumulação autônoma do capital, caso contrário, a população trabalhadora seria inexoravelmente exterminada e, com ela, o próprio processo cumulativo.

A bem da verdade poder-se-ia retardar o colapso do processo de acumulação de duas maneiras. A primeira, aumentando a proporção da população ativa em relação à população global, incorporando mulheres, crianças, velhos aposentados, excepcionais etc., mas isto tem um limite. A segunda, direcionando  parcela crescente da renda apropriada pelo capital da acumulação física para a acumulação financeira, isto é, para a formação de estoque de dívidas privadas (empréstimo para compra de bens duráveis) e de governos. É obvio que também desta maneira apenas consegue-se um adiamento da crise. Até aqui, nada de “economês”, nada assaz intrincado para ser deveras entendido.

A real condição de acumulação continuada, ou seja, a permanente injeção de ganhos de produtividade, é lógico, exige alguém que a faça, conquanto de modo algum exija que se o saiba. Por isso, na análise das economias capitalistas modernas, não podemos  nos limitar a dicotomias capitalistas/trabalhadores, exploradores/explorados, elite/massa; carece-se necessariamente de um terceiro personagem, justo aquele sobre quem irá recair a responsabilidade, não só pela  conservação dos níveis de produtividade como, principalmente, pela sua permanente ampliação. Gente que não apenas trabalhe, mas o faça sobre o  trabalho  ou sobre as condições de trabalho de outrem. No Brasil é chamada classe média, nos EUA, com bem maior propriedade, colarinhos brancos, em contraste com os colarinhos azuis da gente nas fábricas. Vê-se desta maneira quanto as dicotomias do Manifesto marxista podem atrapalhar nossa compreensão da estratificação social mínima exigida pela modernidade. Como aqui entendida, a classe média apenas acidentalmente pode ser caracterizada como aquela que tem um rendimento intermediário entre empresários  e operários; de modo geral assim acontece, porém, em essência, ela deveria ser caracterizada pelo que faz e não por quanto ganha, especificamente, por sua função de preservação/ampliação dos níveis de produtividade do trabalho. Ela atua preparando para o trabalho (todos os professores, do primário ao doutorado, nas escolas ou nos departamentos de treinamento das empresas; todos os supervisores, administradores, planejadores, contabilistas etc.), transformando o modo de trabalho (todos os cientistas,  tecnólogos, etc.), também fazendo vida e trabalho suportáveis (artistas de toda espécie), como igualmente cuidando das condições vitais para o trabalho (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas etc.), e muitos e muitos mais. Pode-se estranhar uma caracterização assim tão ampla, mas a crítica teria  que se aplicar também à caracterização corrente da classe empresarial (comportando minúsculos e mega-empresários, proprietários rurais e homens de finanças e capitães de indústria etc.) como à da classe trabalhadora (comportando desde boias-frias até operários especializados da indústria mecânica de precisão, analfabetos e bem letrados etc.). Não podemos esquecer que as classes são uma instituição tipo ideal, no sentido webberiano deste termo [3].
Com estas simples considerações podemos tirar algumas conclusões da maior importância para a compreensão da dinâmica sócio-econômica da modernidade:
a)  A sociedade moderna é essencialmente triplice. A classe média tem um papal fundamental na viabilização do capitalismo. Em princípio, essencial, depois, com o tempo, também quantitativamente relevante; nas economias mais desenvolvidas de hoje este grupo social se apropria de mais do que 50% da renda nacional;
b)  Não existe a menor correlação entre taxa de mais valia (que se pode razoavelmente estimar a partir da taxa de formação bruta de capital); conseqüentemente, toda problemática de distribuição de renda se joga entre a classe média e os grupos trabalhadores diretos inclusive o extenso grupo de marginais urbanos e rurais;
c)  As guinadas ideológicas a esquerda resultam de um movimento da classe média de aliança com as bases ameaçando o empresariado; os movimentos ideológicos a direita resultam do deslocamento da classe média de aliança com o empresariado nacional contra o movimento ascendente das bases;
d)  Com o recente esgotamento das opções ideológicas,  o movimento da classe média teve que se internalizar: não mais esquerda ou direita, mas estado máximo (corporativismo)  versus estado mínimo (internacionalismo).


Isto posto, ocorre-nos naturalmente uma  hipótese alternativa quanto à natureza das nossas famigeradas rebeliões: não seriam elas fruto de um caprichoso surto  revolucionário dos grupos extremos, mas um movimento do estrato médio, como vimos, parte necessária de toda estrutura sócio-econômica moderna. Nesta hipótese, a revolução orteguiana ter-se-ia dado por três vertentes.

A primeira, tipicamente americana, em que a maioria da classe média teria buscado tirar vantagem de uma posição  de  tercius independente.

A segunda, comunista, que  resultaria de um movimento de aproximação de boa parte do estrato médios em direção à base da estrutura social, mais provável de ocorrer nas regiões em relativo atraso em seu processo de industrialização/acumulação. Isto faz bastante sentido quando se focaliza a formação, composição e comportamento da liderança bolchevique.

Por último, a fascista, que se posicionaria de modo simétrico à anterior. Quando se analisa de mais perto a formação do fascismo, constata-se que uma das suas principais fontes inspiradoras foi, sem dúvida, o movimento soreliano [4], surgido exatamente como reação a uma pressuposta apatia revolucionária ou aburguesamento do proletariado europeu ocidental no início do século XX. Isto acabou fazendo com que uma parcela significativa da intelectualidade européia - principalmente, francesa, italiana e alemã - fosse buscar uma aliança com os grupos empresariais de fortes raízes e interesse em âmbito nacional. Trocava-se aí o internacionalismo proletário por um nacional socialismo, até certo ponto paradoxal, na medida em que na aliança abria-se mão da tese da expropriação do grande capital em troca da sua simples docilidade.

É importante notar que os dois últimos movimentos se intensificam com os sofrimentos provocadas pela primeira guerra mundial e ainda mais se agravam 11 anos após com a eclosão da grande depressão. Com a crise recessiva, para que gastar na preservação/ampliação dos níveis de produtividade? E se nossa hipótese estiver correta, para que, na circunstância, uma classe média?

A crise de 29 tem como uma das principais causas o sobre-investimento que tomou caráter especulativo, em parte, como uma conseqüência da relativamente baixa disponibilidade de meios de ampliação dos ganhos de produtividade. A retomada do processo de acumulação, logicamente, teria que ser precedida da brusca desvalorização dos ativos através de uma recessão/deflação.

A superação da crise só começa a se delinear com o New Deal  apoiado nas concepções econômicas de Keynes [5]. Nestas, o estado passava a assumir duas grandes responsabilidades: a curto prazo, aquela da regulação da atividade econômica buscando a aproximação ao pleno emprego; a longo prazo, a do investimento na criação de  infraestrutura produtiva indutora de investimentos privados e  no desenvolvimento tecnológico continuado (pelo investimento direto em pesquisas universitárias ou, por vias travessas, através do financiamento da ampliação do poderio bélico). Finda a segunda guerra mundial, no Ocidente, esta receita econômica evoluiu agregando aspectos gerais de seguridade para então constituir-se em um modo de organização global, o estado de bem-estar social. Assim foi garantido, por um bom período, o enrequecimento geral e, em paralelo,  o crescimento continuado da classe que tudo viabilizava com a preservação/ampliação de ganhos de produtividade. Feitas as contas 40 ou 50 anos após, a classe média por toda parte crescera tanto que, podemos dizer com absoluta certeza, passava a deter mais do que 50% do produto líquido nas nações mais desenvolvidas. Era o suficiente para dispensar os serviços públicos de educação, saúde, transporte urbano, seguridade e, em breve, também os de segurança interna o que vinha  também significar a retirada da escada por onde ela própria subira e, deste modo, impedir novas afluências. Somos obrigados a observar que a alta burguesia sempre pode dispensar aqueles serviços, mas, fazendo-o ou não, pelo seu peso numérico, quase nada teria afetado aqueles  mercados, razão pela qual não tinha porque, por si, antes como agora, negar-lhes o sustento.  

Os traços da presente “rebelião das elites” são bem aqueles descritos por Lasch em seu último livro, mas o retrato do agente rebelado não fica ali suficientemente nítido: ora classe média alta, ora elite, ora controladores de informação, ora nova classe, ora intelectualidade, enfim, quem?! Para nós o progressivo aumento do peso do conhecimento na formação do valor agregado global da economia vem incitando a parte tecnicamente mais bem preparada do estrato social médio a vôos mais ousados. Isto  provoca uma diferenciação interna dentro deste próprio estrato médio que então se movimenta, uma parte no sentido ascendente, buscando aliança com a burguesia e outra parte, sem outra alternativa, em direção descendente buscando aliança com  o proletariado, trabalhadores agrícolas e estratos marginais. O aumento da produtividade agrícola, a robotização industrial, e mais ainda, o ressentimento, habilmente  manipulado pela propaganda eleitoral, dos estratos sociais mais baixos com relação ao fausto corporativista da classe média estatal no recente período do estado de bem-estar social vem, momentaneamente, solapando a força desta aliança que toma hoje as feições de um corporativismo decadente. Isto, entretanto, tenderá muito breve a se modificar na medida em que avancem os processos de privatização/ desnacionalização e  de destruição do estado de bem-estar social.

Estaria então para se repetir a polarização socialismo/fascismo? Não exatamente, tendo-se em conta que o movimento ascendente passou a assumir um caráter internacionalista e o movimento descendente um aspecto nacionalista, o exato inverso do que antes ocorria. Esta inversão não se deu por acaso; ela serve precisamente à neutralização da virulência destas duas posições. A internacionalização da direita mina sua força telúrica; a nacionalização da esquerda tira todo seu elan revolucionário; como resultado final, a política se transforma em mero espetáculo (Debord) e o vitalismo em consumismo. A desculpabilizacão (esvaziamento do poder da Igreja) da massa transformou a energia telúrica que poderia suportar um novo fascismo em petético consumismo, e a espetacularização da política (esvaziamento do prestígio das Forças Armadas) fez do ideal revolucionário uma inócua pantomima.
 Notas
1. Ortega y Gasset, A rebelião das massa, ed. original, 1930.
2. Christopher Lasch, A rebelião das elites, ed. original, 1995.
3.  Dicionário de Sociologia,  Rio de Janeiro, Globo,  1961.
1.  Referência ao engenheiro e matemático Georges Sorel (1847-1922). Ver Z. Sternhell, M. Sznajder e M. Ashéri, Naissance de l’idéologie fasciste, Paris, Gallimard, 1989.
John Maynard Keynes, General Employment Interest and Money, ed. original, 1936.

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