A desfiguração do pensar e o abuso do pensamento desfigurado só poderão ser superados por um pensar autêntico e originário, e por mais nada. Uma instauração deste último exige, antes de tudo, o regresso à questão sobre a referência essencial do Pensar com o Ser.
Heidegger - Introdução à metafísica
Há uma quase unanimidade no diagnóstico: o mundo vive hoje uma fase de desencantamento e, como conseqüência, de diluição da crença em qualquer tipo de salvação, tanto além, como aquém da morte - não haverá juízo final, nem antes a revolução.
O psicanalista francês André Green, recentemente instado a justificar o seu pessimismo em relação ao mundo atual, declarou que, a seu ver, “a proposta de nossos políticos para as gerações modernas é ‘suicidem-se’.”. Esta é a cruel e cínica prescrição dos ideólogos do pensamento único para os que sofrem, menos do que vivem, as terríveis agruras da “globalização” , em que meia dúzia de senhores do mundo botam os miseráveis de todas as partes para competirem entre si, tal como galos excitados são atirados a uma rinha para se dilacerarem e do alto gozam, enquanto apostam, quem irá primeiro sucumbir.
Quanto à sintomatologia e ao diagnóstico não vemos como discordar, porém, não podemos ficar por aí; é necessário buscar a razão profunda destes acontecimentos. Acreditamos que se trata bem de uma razão, de uma lógica, de um modo particular de pensar correlato a um particular modo de ser. É nossa convicção que por traz de toda cultura está uma lógica que, sacralizada, constitui seu núcleo religioso invariante.
A modernidade não escaparia a esta determinação profunda, e sua lógica característica seria precisamente a lógica clássica ou aristotélica, ainda melhor dito, a lógica do terceiro excluído. Esta última governa a matemática e, através do processo generalizado de mensuração, também a ciência e a informatização/sistematização do mundo. O serviço se completa pelo mercado, mecanismo capaz de pôr um número (preço) em todas as coisas - trate-se da dignidade da alma inteira, de uma córnea, um rim ou qualquer outra parte do corpo -, tornando-as destarte co-mensuráveis, logo negociáveis, enfim, mercadorias.
Caso estejamos corretos, a culpa dos nossos infortúnios não caberia a políticos corruptos, empresários gananciosos, usurários insaciáveis, funcionários psicóticos comandando nossos bancos centrais, religiosos com fixações sexuais, malandros da terra ou mafiosos de importação, mas tão apenas à ciência e ao seu corpo de devotados servidores, que sói acontecer, ignoram o sentido do que de fato fazem.
A veracidade desta tese avulta a nossos olhos pela mera observação do contencioso ideológico da modernidade, onde jamais se põe em causa a ciência; esta fica sempre impensada, a salvo de qualquer suspeita. Não há quem se ponha contra a ciência, seja do alto ou de baixo, seja de centro, de direita ou de esquerda. O debate, no âmago, restringe-se apenas à precisa questão de qual deva ser o sujeito da ciência:
a) se o sujeito individualista, protestante calvinista, homem de projeto, do paradigma liberal anglo-saxônico,
b) se o sujeito coletivo, jesuítico, marxista, corporativista das variantes ideológicas de esquerda,
c) se o sujeito inconsciente cultural, romântico, telúrico, libidinal das variantes ideológicas de direita,
d) se, finalmente, na mais sonsa e reacionária das atitudes, nenhum, como fazem as cúrias, durante as épocas em que não estão sendo ameaçadas por quem de algum modo enfrenta a questão.
E, pensando bem, não há outras opções.
É verdade que sempre existem correntes filosóficas e teológicas com a pretensão de compreender a ciência. As filosofias transcendentais (Descartes, Kant/Fichte, Husserl), que vieram justamente para tanto, entrementes, se limitam à questão das condições de possibilidade da ciência, ficando incapacitadas de fazer-lhe uma crítica de conteúdo e atribuir-lhe um sentido, seja meta-físico, seja simplesmente social. As filosofias dialéticas (Hegel, Marx) pretenderam fazê-lo, mas são logicamente impotentes, na medida em que a dialética é uma lógica menor ou subsumida pela lógica que governa a ciência - a lógica clássica ou do terceiro excluído. As filosofias positivistas (Positivistas e Neopositivistas, inclusive o primeiro e segundo Wittgenstein) e pragmatistas são modos de pensar que a priori capitulam diante do pensar científico e assim o justificam. Por último, as filosofias trágicas ou poéticas (de Pascal a Deleuze, passando por Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger), lógico-diferenciais, apenas conseguem espernear ante o castrador poder científico; ao cabo, deixam a problemática humana tal qual, reduzida a uma simples confrontação entre o trágico destronado e o cínico dominante.
Quanto às teologias, sofrem todas da mesma impotência lógica de fundo. A única exceção, talvez, seja a versão escolástica da teologia católica; sua fundamentação lógico-aristotélica, pode-se dizer, foi mesmo prenunciadora da cientificidade moderna; este fato é que lhe deu condições, até hoje, de manter freqüente flerte, ainda que envergonhado, com a ciência; mas porque se vale da mesma lógica da ciência, permanece impotente para pensá-la compreensivamente.
Assim, já foi bem observado que a posição de privilégio atribuída ao homem pelo cristianismo vem sendo progressivamente erodida pelas lunetas e telescópios, pelo curso cego da seleção natural das técnicas bioquímicas e mais recentemente pelas estruturas por si agentes e falantes - Galileu, Darwin, Freud/Saussure/ Lévi-Strauss. Sobre isto podemos ser ainda mais precisos, partindo da visão de mundo medieval, que vinha sobrevivendo até o início do presente século. Lá, o homem cristão situava- se no cimo de uma hierarquia marcada por quatro degraus ou descontinuidades que só milagres pareciam poder superar: as passagens do nada à materialidade; da matéria à vida; da animalidade à humanidade; por derradeiro, do homem decaído ao homem por Cristo redimido.
Hoje, a mecânica quântica, ainda que numa articulação forçada com a relatividade geral, já se propõe a explicar a primeira passagem como resultante de um processo de flutuação quântica de um vácuo primordial excitado. O aparecimento da vida vem sendo minuciosa e convincentemente explicado pela bioquímica moderna. Os recursos teóricos da antropologia estrutural lévi-straussiana são hoje, a nosso ver, suficientes para dar conta da passagem do animal ao homem ou da natureza à cultura.
Em suma, diluídas as descontinuidades escalonadas que levavam do nada ao homem, este ver-se-ia inexoravelmente atirado à vala comum do cosmo. Em nossa opinião é precisamente por aí que vem se dando o progressivo esmaecimento das marcas de uma milagrosa intervenção de Deus na História, ou daquilo que, no começo, designamos como sendo o processo de desencantamento do mundo.
E quanto à quarta passagem? A rigor, é uma conseqüência do que vem acontecendo com as três primeiras passagens, em que pesem as aparências. A lógica do cálculo aqui também, no profundo, prevalece sobre a lógica do sentido. Contudo, em razão de um remanescente poder de controle social, encena-se, no Ocidente, a farsa geral de uma continuidade cristã - a ciência (sociologia da religião) finge que não vê, fingem que crêem as hierarquias e os “crentes” que as seguem. Na verdade, se vive o burburinho e as vicissitudes de um verdadeiro supermercado de religioso. Raros são os que hoje não tomam de cada uma um pouco e fazem o seu próprio blend.
Diante de tudo isto não pode mais restar dúvidas quanto a qual deva ser a grande tarefa de nosso tempo: a criação de uma filosofia nova potente para pensar de cima a ciência. Não para confrontá-la, para negá-la ou renegá-la, mas simplesmente para subsumi-la, pensá-la compreensivamente, dando-lhe assim um significado humano e meta-físico. Para tanto exigir-se-á, necessariamente, uma nova cultura e uma correspondente nova religiosidade, portanto, um modo de pensar inaugural e, daí, uma nova lógica. Esta não poderá ser apenas transcendental, diferencial, dialética ou clássico-aristotélica, mas terá que subsumi-las todas numalógica superior, uma lógica hiperdialética. Será uma filosofia, afinal, à altura do homem, desta sorte, capaz de restituir-lhe a esperança e o lugar pinacular na ordem da criação.
Luiz Sergio Coelho de Sampaio
Rio, 31 de outubro de 2002
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