Desci secretamente, rolei pela escada proibida, caí. Ao abrir os olhos, vi o Aleph.
- O Aleph? - perguntei.
- Sim, o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos.
Jorge Luis Borges, O ALEPH
1. Introdução
À época produtiva de Cantor, último quartel do século XIX, eram conhecidas diferentes tipos de infinitude: a dos números naturais, relativos, racionais, algébricos (1) e aquela que parecia ser a maior de todas - ainda que abaixo de Deus -, a dos números reais, compreendendo tanto os racionais quanto os irracionais (em termos geométricos, dir-se-ia o contínuo) e suas múltiplas dimensões (plano, espaço tridimensional etc).
A sua ordem de “magnitude” crescente presumida era esta mesma de como foram aqui citados, porém, sem que tivesse sido exibido até então um critério objetivo que sustentasse tal ordenação, muito menos as provas correspondentes. O grande matemático alemão concebeu uma teoria dos números transfinitos (2), onde, além dos acima citados, comparecia toda uma seqüência aberta de novos infinitos e se estabelecia um critério, aparentemente preciso, de atribuição de “magnitudes”, vale dizer, de cardinalidades que permitia comparações assim como a sua ordenação objetiva e unívoca.
Cantor demonstrou, com simplicidade e argúcia que os quatro primeiros infinitos citados - referentes aos números naturais, relativos e, contra a intuição corrente, também aos racionais e algébricos - possuíam a mesma cardinalidade, significando que podiam ser postos uns com os outros numa relação biunívoca, ou seja, ter todos os seus elementos postos em correspondência um a um, enfatize-se, de modo exaustivo. Este, o menor dos infinitos, foi por ele batizado como À0 (alefe zero) (3).
Os reais - em termos geométricos, a reta - e suas múltiplas dimensões - plano infinito, espaço infinito etc. - foram todos mostrados de igual cardinalidade e equivalentes a seqüências infinitas de números naturais. Entrementes, não podiam ser postos em correspondência biunívoca com os naturais, conforme mostrou com ajuda da famosa estratégia da diagonal (4). Como relativamente excessivos, teriam que ganhar uma cardinalidade superior a À0, que ele chamou À1(alefe um).
Logo surgiu-lhe a pergunta: haveria um outro infinito com cardinalidade intermediária entre aquela do infinito enumerável (naturais) e a do contínuo (reais)? Cantor formulou então a famigerada hipótese do contínuo (5), que dava a esta questão uma resposta taxativa: não, em termos de continuidade transfinita, a À0 seguia-se imediatamente À1. Ele próprio tentou de todas as maneiras comprovar a necessidade da referida hipótese, morrendo, contudo, sem consegui-lo.
Em 1938 Gödel (6) consegue dar uma meia resposta à questão acerca da hipótese do contínuo mostrando que não se pode demonstrá-la falsa. Só em 1963 o matemático americano Paul Cohen (7), da Stanford University, consegue provar a independência da hipótese do contínuo, isto é, que na teoria axiomática dos conjuntos que ele tomou por base (o sistema Zermelo-Fraenkel(8)) a questão era indecidível - não era possível provar que sim nem que não.
Estávamos, pois, livres para agregar um novo axioma à teoria de base estabelecendo pelo menos um nível de infinitude (ou de magnitude infinita) entre À0 e À1, inclusive, como desejava Cantor, nenhum. Existiriam assim pelo menos duas teorias de conjuntos do tipo Zermelo-Fraenkel, preservando todos os resultados (teoremas) até então considerados válidos, porém diferindo no número de “À fracionários” existentes entre À0 e À1 e, naturalmente, em novos teoremas que estivessem de algum modo na dependência deste novo axioma. Caso daí sobreviesse qualquer problema de consistência, obviamente, ele não seria fruto desta adjunção, mas sim herdado do sistema axiomático de Zermelo-Fraenkel.
Para a grande maioria dos matemáticos - exceção dos matemáticos finitistas - o assunto, no essencial, foi desde então dado como liquidado. Entretanto, não nos parece que devesse ser assim, pois, na própria intuição do criador da teoria dos tranfinitos, a hipótese do contínuo se afigurava como de valor crucial para assegurar a saúde da teoria e daí, ao que parece, a dele próprio.
A nosso juízo, não é difícil imaginar porque assim pensasse. Caso comprovada a existência de um grau de infinitude intermediário entre os enumeráveis (À0) e os reais (À1), a indagação talvez pudesse ser reiterada e assim indefinidamente, o que daria aos reais um caráter de “inesgotabilidade suprema ou de segunda ordem”, impedindo fosse a infinitude dos reais concebida como um infinito atual, portanto, ultrapassável. Como conseqüência final, a inconsistência que o próprio Cantor já constatara na noção de conjunto de todos os À se manifestaria num nível ainda bastante “baixo” de sua seqüência de transfinitos, podendo arruinar o restante de sua construção teórica. Tudo isto é uma pressuposição, certamente, mas que nos parece até bastante razoável.
Se tudo isto é verdadeiro, a demonstração de Cohen é apenas o começo da história; estamos convictos de este seja o caso, o que implica a necessidade de uma continuação. Pelo menos Cantor, se vivo e são, temos certeza, concordaria com isto. Vê-se, pois, que não estamos hoje sós, pelo menos espiritualmente.
Nosso objetivo aqui é tomar o feito teórico de Cohen como uma provocação e, sobretudo, uma oportunidade para que se volte a examinar a questão, revisitando inclusive a teoria cantoriana dos conjuntos transfinitos em seus fundamentos.
2. Os monóides livres e a essência do seu elemento neutro
Na matemática conjuntista (9), a noção de monóide está na essência do ser matemático, na medida em que a própria noção de conjunto a implica. Uma condição necessária para que C seja um conjunto é que exista o conjunto de todos os seus subconjunto, isto é, seu conjunto potência P(C) e que este se constitua num monóide - contenha um elemento neutro (o conjunto vazio), seja fechado e associativo para a operação de união de conjuntos.
Dentre os monóides temos a importante classe dos monóides livres, gerada por um conjunto A= {a0, a1,a2, ..., aN} e uma operação /, de sorte que os elementos do monóide são todas as combinações com repetição dos elementos de A articulados pela operação /. Para que o monóide ML(A) contenha um elemento neutro a esquerda e a direita, deve existir em A um elemento a0 tal que ai/a0 = a0/ai = ai para todo ai pertencente a A.
Um conjunto A de um só elemento a0 provoca a degenerescência do monóide livre, visto que ML(A)=A . Como teremos oportunidade de ver adiante, este monóide é o elemento nulo em geral da categoria dos monóides, ou seja o nada de monóide.
Assim, o mais simples dos monóides livres - monóide livre básico(MLB)- terá que ser gerado por um conjunto A de dois elementos e ele é formalmente único. O MLB seria constituído de um conjunto gerador A = {a0, a1} e uma operação / articulando, reiteradamente, os elementos de A:
MLB= { a0, a1, a0/a0, a0/a1, a1/a0, a1/a1, a0/a0/a0, a0/a0/a1, a0/a1/a0, a1/a0/a0, a0/a1/a1, a1/a0/a1, a1/a1/a0, a1/a1/a1, a0/a0/a0/a0, a0/a0/a0/a1, ...}
Tendo-se em conta que a1/a0 = a0/a1 = a1, tem-se então:
MLB = { a0, a1, a0, a1, a1, a1/a1, a0, a1, a1, a1,a1/a1, a1/a1, a1/a1, a1/a1/a1, a0, a1, ...}, que, suprimidas as repetições, resulta em:
MLB = { a0, a1, a1/a1, a1/a1/a1, ...},
Associando-se a1 ao número 1, a0 ao número 0 e / à noção de sucessor (+1), MLB torna-se o monóide dos números naturais. Mas esta interpretação não é única, pois podemos associar a1 ao número 2, a0 ao número 0 e a operação / à noção de sucessor (+2) e MLB torna-se o monóide dos números pares. Temos aí a mesma problemática dos axiomas de Peano, que não geram apenas os números naturais, mais uma quantidade infindável de seqüências infinitas enumeráveis.
O elemento neutro ou nulo, que habitualmente leva o índice zero - como é costume entre os matemáticos, ainda que nem sempre conscientemente -, serve para representar a negação/afirmação da essência da “classe” considerada, pois esta é precisamente a virtude fundamental do zero na seqüência dos naturais. O zero é o “nada qualificado”, o número que é nada de número, assim como o conjunto vazio é o nada de conjunto (10). Estas entidades (zeros, neutros, nulos, operador identidade, automorfismos etc.) servem para ajudar a conferir autonomia à estrutura formal a que vão pertencer. O que se quer do zero é que ele nos faça esquecer a pergunta ontológica leibinziana: a pergunta pelo ser ou pela origem dos números, vale dizer, por que há números e não, tão somente Nada. Com o zero “presente”, os números ganham uma autonomia, ainda que artificiosa; doravante, quando instalamo-nos entre os números, o fazemos milagrosamente, lá ficamos e não temos mais como sair (a não ser por um milagre reverso).
Vê-se assim que o elemento neutro ou nulo inicial de uma “seqüência substantiva” fica parcialmente definido de modo retroativo, em função justamente do seu “elemento substantivo” ou “elemento um”. Exemplificando: seja no MLB, seja no sistema axiomático de Peano, com a operação / representando a noção de sucessor; se fizermos a1=1, teremos a0=1=0, 0 significando nada de natural; se a1= 2, a0 =2= 0, porém agora 0 significando nada de par; se a1=abacaxi a0 = abacaxi=0, 0 significando nada de abacaxi.
Existe o mal habito de tentar escamotear esta problemática dando a impressão que se pode gerar conjuntos a partir do conjunto vazio, o que é um absurdo. Na seqüência Æ, {Æ}, {Æ, {Æ}}, {Æ, {Æ}, {Æ, {Æ}}} , ...o símbolo Æ não quer dizer nada, pois é um invariante de todos os elementos da seqüência; o que conta mesmo é o número de colchetes seguidos fechando a expressão, de modo que só retroativamente ficamos sabendo que em Æ a informação está em que nele falta qualquer colchete. Bem melhor seria se escrevêssemos: { }, { }, {{ }}, {{{ }}}, ...
Isto ainda não é tudo: o sentido do elemento neutro ou nulo depende também da operação de geração, o que se pode facilmente compreender mediante um exemplo bastante simples. Consideremos o MLB fazendo-se a1=1; neste caso, a0 = 1 , isto é, nada de 1. O sentido completo de a0 dependerá ainda do sentido da operação /. Se tomarmos / como sucessor de, a0 = 1 = 0, 0 será entendido como nada de número natural. Caso mantivéssemos o sentido da / e fizéssemos a1= 2, então a0 = 2 = 0, 0 sendo entendido então como nada de número par. Entretanto, ainda mantendo a0 = 2, poderíamos mudar o sentido da operação / para aquele de exponenciação, ou seja, a1/a1= a1.a1, de sorte que MLB tornar-se-ia a seqüência 2, 2, 2x2=22, 2x2x2=23, ...sendo óbvio, então, que a0 não mais terá o valor 0, mas a0= 2 =20=1, nada de exponencialidade.
3. Os números “transfinitos cantorianos”
De modo geral faz-se a apresentação construtiva dos números transfinitos a partir dos números naturais, o que nos parece um equívoco, e que se transforma na principal responsável pela problemática do contínuo.
Na construção dos transfinitos, na medida em que os queremos caracterizar como números, teremos que concebê-los também como formando um monóide livre básico. Seu conjunto gerador seria {À0, À1} onde À0 é o elemento nulo, por enquanto, concebido apenas como nada de À1. A operação T é tal que T(Ài) = Ài+1= 2Ài para todo i ³ 1. Com isso, podemos determinar o conteúdo positivo de À0: À0 deve ser tal que 2À0 = À1 ou seja, À0 =log2 À1.
Tomando-se À1 como a cardinalidade dos reais, À0 fica univocamente determinado como sendo a cardinalidade dos naturais. Ora, como tanto À0 quanto À1 são infinitos, a verdadeira natureza de À0 é, pois, ser nada de contínuo.
O conjunto dos À forma um monóide, tendo-se em conta que sobre ele podemos definir uma operação Ä, tal que:
a) Ài Ä Àj = Ài+j
b) Ài Ä (Àj Ä Àk ) = (Ài Ä Àj) Ä Àk
c) Ài Ä À0= À0 Ä Ài = Ài
4. A hipótese do contínuo
A questão da existência ou não de um cardinal transfinito intermediário entre os naturais e os reais, isto é, entre À0 e À1 só aparece como indecidível na medida em que assumimos um processo construtivo concebido a partir de À0, como acontece implícita e incorretamente nos axiomas de Peano, que partem de 0 (a priori) e não de 1. Seria uma questão de opção definir À1 de modo que T(À1) = À2 e depois identificar À2 como a cardinalidade dos reais para obter um específico sentido para À1 .
Entretanto, se começarmos a construção a partir de À1 identificado como a cardinalidade dos reais, a hipótese do contínuo passa a ser verdadeira por definição, pois À0, como deveria mesmo acontecer, só ganha o seu sentido a posteriori, não deixando qualquer possibilidade de se pensar um cardinal intermediário entre ele e À1. A questão deixa de ser de decidibilidade, para se tornar uma questão simplesmente destituída de sentido.
20 de maio de 1999
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