6.4.17

A educação depois do desvelamento da lógica da diferença



Conhece-te a ti mesmo.
Inscrição no frontispício do Templo de Delfos

Seria, sem dúvida, uma grave omissão encerrar esta nossa série de textos sobre a lógica da diferença, sem trazermos antes uma palavra sobre as repercussões que o seu desvelamento, já tardio, pode ou deveria ter sobre a nossa educação. Dado o papel que este desvelamento representa para a compreensão e reordenação geral do território lógico, fica aqui implícito que na maioria das oportunidades em que estivermos falando do ensino da lógica da diferença, estaremos também nos referindo ao ensino das lógicas em geral, salvo nos casos em que isto esteja expressamente excepcionado.

Dedicaremos um primeiro item à tarefa de sumariar o que significa, para nós, o desvelamento da lógica da diferença e os dois itens subsequentes para delinear uma orientação geral para o ensino da lógica, incluída naturalmente aí a lógica da diferença; primeiro, no sistema de educação geral (segundo grau), depois, em alguns dos principais campos de saber especializado, acadêmico ou não.

1. Significação do desvelamento da lógica da diferença

O desvelamento da lógica da diferença falamos de sua identificação, nomeação, determinação de seus principais traços operatórios, de seus valores de verdade, de suas relações com outras lógicas, de seus correlatos entes-visados, chegando-se mesmo aos procedimentos para sua axiomatização até onde seja ela possível é bem mais do que um simples episódios na história da lógica: ele é, sem dúvida, um acontecimento maior da história da cultura.

Os gregos ao se inventarem a desvelaram e fizeram pátria; e por vivê-la aos extremos puderam deixar-nos de herança um imenso território filosófico conquistado e o teatro – a comédia e a inigualável tragédia. Os romanos civilizadores a assumiram explorando-a por séculos até as suas últimas conseqüências funcionais e fundiárias. A cultura cristã medieval trinitária, para fins de sua própria ereção, de par com a lógica do Deus único, a subsumiu: assim, por um lado, necessariamente a recalcou, por outro lado fez de seu gasto ente-correlato os corpos a “matéria prima” de seu desejo de trans-formação-espiritual do mundo, como podemos ainda hoje comprovar, contemplando, em sua aterradora quietude intrínseca museologicamente amplificada, o enorme acervo de arte sacra românica ocidental e oriental bizantina (2). Entretanto, será apenas na Modernidade já deixando de ser apenas cultura para dobrar-se e desdobrar-se também em civilização planetária , no afã de compreender o seu próprio mal estar, obrigada por isso a revolver as próprias entranhas, que se irá conseguir representá-la enquanto tal, como saber do não-saber de si, com certa objetividade e mesmo com laivos de formalismo, como pede a época. Isto ocorre por tortos caminhos coetâneos à própria edificação da Modernidade, em que se envolveram, por ordem de entrada em liça, Pascal, o primeiro não(não(moderno)), seguindo-se Kierkegaard, Nietzsche, Freud e toda sua corte de êmulos maiores e menores, Heidegger, seus discípulos e cortejadores, muito especialmente o mestre Lacan e ainda Deleuze, Foucault, Derrida, Rosset e tantos outros (3). Teríamos que mencionar também aqui, mais recentes, os dissidentes da própria lógica da dupla diferença hegemônica, que formam a corporação acadêmica dos lógicos desviantes, onde se contam intuicionistas (paracompletos) e paraconsistentes (4).

Recordemos que num primeiro momento a Modernidade, para se afirmar, precisou recalcar as lógicas femininas, a dialética e a lógica da diferença – foi a época da caça às bruxas , para só num segundo e terceiro momentos reintegrá-las de cabeça para baixo, já convenientemente desnaturadas, domadas e degradadas (5).

Na primeira fase da modernidade consolidada instala-se o capitalismo de produção, a que se vem integrar a história, porém, não a história visada pela dialética, mas sim a história degenerada, pré-calculada, a que chamamos progresso, simples processo de acumulação de capital.

A partir dos primórdios do século XX entramos no período do capitalismo de consumo, a que se vem integrar já agora o desejo, porém, não o desejo visado pela lógica da diferença, mas sim o desejo também degenerado, pré-fabricado, mera demanda induzida pelo marketing. Nesta segunda fase da Modernidade, o poder econômico não se consubstancia mais no controle dos fatores de produção maquinário, matérias primas, operários e polícia política , mas sim no controle dos meios de comunicação, meios de apropriação do imaginário das grandes massas consumidoras (entra-se na era do etnocídio intencional globalizado).

Nada disso, contudo, poderia ter acontecido sem o desvelamento da lógica do inconsciente e o subsequente desenvolvimento das técnicas de sua manipulação, de que o marketing é de fato a grande industria e a psicanálise, um mercadinho paralelo e artesanal.

Não foi por acaso que nasceram quase juntas, na mesma Viena e mesma valsa, primeiro, lá pelo último quartel do século XIX, a escola neo-clássica ou marginalista de Menger e compatriotas, continuada por Walras, Jevons, Pareto e outros mais (6), que desloca o foco da teoria econômica da oferta (ou produção) para a demanda (ou consumo), e, poucas décadas depois, a psicanálise, que desloca a direção de busca pela compreensão da alma humana do consciente intencional para o inconsciente desejoso.

Talvez, seja justamente por sua condição de cultura governada pela lógica da dupla diferença que a Modernidade tenha sido capaz de se reconhecer também cultura da lógica da simples diferença recalcada. Em termos psicanalíticos, é como se apenas na era do superego imperante se se pudesse dar conta de um id de origem, sufocado (7).

O reconhecimento da lógica da diferença, em média, não significou qualquer liberação; até pelo contrário, seu reconhecimento e especialmente a compreensão de seu modus operandi foi um pré-requisito para a ainda maior repressão ao seus correlatos entes-pensados, quaisquer que fossem: a matéria desintegrada e medida, o corpo esquadrinhado e operado por todos os furos naturais ou produzidos e o inconsciente reduzido a só lugar de procedência de pesadelos e de sintomas mais e mais intensos, menos e menos livres em suas associações, pois surgem hoje já sectariamente pré-etiquetados, segundo a aguda observação de Slavoj Zizek (8).

Por que não reagimos?! Tão simplesmente porque não queremos abrir mão da Modernidade (especificamente da Ciência), pois seria isto desfazermo-nos da nossa própria essência meta-física e ao mesmo tempo renunciar à nossa crença na vida eterna, todos os dias prometida nos jornais e TVs, através da biopirotecnologia. A superação da Modernidade, entrada em fase de pouca criatividade e muita força bruta, logicamente, terá que se constituir numa revolução cultural, que só se irá consumar por força da mobilização das mais excelsas potencialidades humanas, especificamente, do nosso constitutivo acervo lógico-qüinqüitário.

É uma ilusão imaginar que algo possa ser feito mantendo-nos submersos no âmbito de uma cultura comprometida com o recalque cada vez mais asfixiante das lógicas femininas, em particular, da lógica da diferença.

Não pode haver mais, nem mesmo, a ilusão das ideologias, pois já pudemos constatar sua congênita impotência na medida que se propõem apenas à acanhada troca de sujeito, deixando intocado o poder da ciência (9). É preciso que abandonemos de vez os ideais neoliberais, sociais-democratas, vétero e neo-fascistas, das esquerdas exangues, tanto reformistas quanto revolucionárias, pois são todos, de algum modo, a mesma coisa: nada mais propõem senão a modernidade com justiça social, a acumulação de capital re-calculada, o mercado desembestado, mas sujeito a regras ou até planejado, a ciência com ética e outras variantes do círculo quadrado.

Nem é mais suficiente a crítica à metafísica se acabando em essência da técnica (Heidegger), nem a crítica da indústria da comunicação de massa (Escola de Frankfurt), que de fato vão além das ideologias, mas não o suficiente para se constituírem em instâncias de uma verdadeira crítica da cultura a nível de seus determinantes lógicos profundos. O que precisamos é justamente de uma crítica radical da cultura, potente para iluminar os verdadeiros caminhos para a cultura nova lógico-qüinqüitária. Precisamos de uma etno-logia da cultura emergente e não de uma etnologia apenas das culturas em extinção (10), diga-se de passagem, pela força civilizatória da cultura moderna que fica, a rigor, ali sempre impensada.

É precisamente a partir daí que se pode deveras avaliar que representa o desvelamento da lógica da diferença para a história da cultura e o que se deve desde já fazer em termos educacionais com ela e suas implicações para minimizar os traumas e sofrimentos desta que será a mais dramática das passagens na história da cultura, pois estará ali acontecendo a chegada do homem à altura de si mesmo e portanto ao definitivo recolhimento das próprias forças telúricas que lhe deram origem. Será o fim do penoso processo de auto-desvelamento do espírito lógico-qüinqüitário. Só não será o fim da história, mesmo que já concebida como hiperdialética qüinqüitária, porque esta, embora sendo a mais elevada das lógicas mundanas, não se pretende por isso também lógica do Absoluto, para não reincidir no erro cometido por Hegel para com sua dialética trinitária. Somos seres lógico-qüinqüitários, de fato no ápice da mundanalidade, mas carregando junto com ela seu próprio horizonte transcendente para impedir qualquer veleidade de uma soberba auto-absolutização (11).

Resumindo, diríamos que o desvelamento da lógica da diferença tem múltiplas e importantes implicações: permitiu a compreensão em profundidade dos processos inconscientes; levou à descoberta dos fundamentos e do processo de síntese dialética generalizada das lógicas; proporcionou a compreensão da estrutura e do jogo das lógicas de base que, por seu turno, permitem a real compreensão da sexualidade humana; e, sobretudo, deu condições para que se tornasse possível inferir a estrutura hiperdialética que caracteriza o ser humano em sua plenitude.

A lógica da diferença é assim a peça que sem deixar de valer enormemente por si, vale ainda muito mais pelo que contribui para a compreensão de estruturas lógicas majorantes diversas, muito especialmente, para o desvelamento da lógica hiperdialética qüinqüitária. Através disso pode-se desde já antever os caminhos que levarão à uma nova cultura, pela primeira vez na História, uma cultura à altura do próprio homem. Aproximamo-nos assim do velho preceito grego conhece-te a ti mesmo. E é preciso que, pela educação, o mais depressa possível, todos venham saber disso.

  1. O ensino da lógica da diferença na educação do cidadão comum

Por tudo que ficou dito até aqui, não pode permanecer qualquer dúvida quanto a importância do conhecimento das lógicas aí necessariamente incluída a lógica da diferença , na formação do cidadão comum, muito especialmente na atualidade brasileira. Em conseqüência, torna-se urgente a sua integração ao naipe das matérias obrigatórias do segundo grau.

O ensino da lógica da diferença deverá estar imerso num curso de lógica em geral, portanto, ao lado do ensino das demais lógicas mundanas. A nosso juízo, por uma questão de economia pedagógica, este próprio curso de lógica geral deveria estar compreendido num curso ainda mais amplo de Introdução à Filosofia, distribuído pelos quatro últimos semestres do segundo grau (12), da seguinte maneira:

No primeiro semestre do 2o ano: Filosofia I Noções de lógica clássica. Começaria com a apresentação e discussão dos tradicionais três princípios da lógica clássica (identidade, não contradição e terceiro excluído) para que, no semestre seguinte, através de sua problematização, se pudesse mais facilmente introduzir as demais lógicas. Constaria ainda de noções de lógica proposicional (trato dos conectivos lógicos e suas tabelas de verdade) e de lógica de predicados (trato com os quantificadores lógicos). Dever-se-ia promover a aquisição de um mínimo de destreza operatória, por via de procedimentos algorítmicos, na solução de problemas de lógica proposicional, o que irá servir também de base teórica para que o educando melhor se haja na cadeira de Introdução à Informática, a ser ministrada a partir do 2o semestre do 2o ano do segundo grau;

No segundo semestre do 2o ano: Filosofia II Noções sobre as lógicas. Aqui se confrontaria o pensamento lógico-formal com outros modos de pensar, que parece-nos a maneira mais eficiente de relativizar o poder do primeiro. Fazê-lo de modo organizado e exaustivo também se nos afigura ser o menor dos caminho para proporcionar ao educando uma visão mais completa e harmônica da essência do ser humano, da complexidade do mundo que o cerca e de seu horizonte transcendente. Ter-se-ia assim como objetivo maior levar o educando a reconhecer e valorizar os modos alternativos, ainda assim rigorosos, de pensar que se contrapõem ao pensar lógico formal, suporte do cientificismo moderno. Seriam então apresentadas, lado a lado, as lógicas fundamentais, da identidade (transcendental) e da diferença e, a seguir, o processo geral de síntese, tanto da dialética como também da lógica clássica, estas que, junto com suas lógicas geradoras, formam o conjunto das quatro lógicas de base. A todas colmatando e subsumindo, estaria então a hiperdialética qüinqüitária. Também seriam aqui apresentados os princípios, operadores e correlatos valores próprios (valores de verdade) para cada uma das lógicas mencionadas, ditas lógicas mundanas; deveria ser também proporcionado algum conhecimento sobre as relações entre as lógicas. Não se deixaria passar a oportunidade para identificar a lógica qüinqüitária como sendo a teoria do pensar humano em sua plenitude. Por fim, seria apresentada uma boa amostra das incontáveis representações simbólicas das lógicas, com o que se estaria flagrando a sua presença arquetípica em todas as culturas históricas.

No primeiro semestre do 3o ano: Filosofia III Noções de História da Filosofia. Não existe dúvida de que a cultura grega e a cultura judaica constituem as fontes originárias do Ocidente, a última emblematicamente representada pela fé ardente e pétrea moralidade de seus profetas, a primeira, pela potência prometéica e soberba razão dos seus filósofos. Não se pode, pois, penetrar fundo na compreensão da alma ocidental sem, entre outras coisas, um mínimo de familiaridade com as grandes figuras e idéias dos helenos. E é por isso que não pode faltar no currículo de segundo grau um espaço, ainda que exíguo, para um primeiro contato com a História da Filosofia, não só de suas origens gregas como também de seus desdobramentos mais significativos na cultura cristã medieval e na Modernidade. Para a apresentação da filosofia grega pré-aristotélica, seria suficiente que se tomasse como referência a estrutura das lógicas objetivas identidade (I), diferença (D) e dialética (I/D) e, para Aristóteles e toda a filosofia moderna, a estrutura das lógicas subjetivas as mesmas três lógicas objetivas acrescidas da lógica clássica (D/D=D/2) e hiperdialética qüinqüitária (I/D/D=I/D/2).

No segundo semestre do 3o ano: Filosofia IV Introdução às Problemáticas Filosóficas. A visão histórica proporcionada no semestre anterior teria tido como fio condutor o que consideramos a temática fundamental da filosofia – a questão onto-lógica, vale dizer, da correspondência entre ser e pensar. Entretanto, este passeio histórico a autores e idéias teria feito freqüentes referências a outras temáticas que não a onto-lógica, sobre as quais o educando não teria tido ainda a oportunidade de uma compreensão estruturada. Seria agora a ocasião de corrigir aquela circularidade inevitável, substituindo o fio histórico ou diacrônico pelo plano estrutural ou sincrônico, e então procedendo ao inventário dos grandes temas filosóficos e explicitando suas articulações. Começar-se-ia naturalmente pela problemática onto-lógica, passando-se à temática epistemo-lógica e, depois, à práxio-lógica. Dever-se-ia ainda fazer uma menção, breve que fosse, às problemáticas estética (que se põe entre o ser e o parecer) e ética (que se põe entre o ser e o poder-fazer). Tudo isto estaria referido naturalmente às lógicas, conforme ilustra a figura 1.

Problemática Problemática Problemática
onto-lógica epistemo-lógica práxio-lógica
Lógica da Lógica da Lógica
Identidade - I diferença - D dialética I/D

Problemática Problemática
estética ética
Lógica I e D Lógica I e I/D
Figura 1
Sem necessidade de que se venha ferir susceptibilidades confessionais, seria ainda conveniente apresentar, em seus traços mais gerais, a problemática do Absoluto (13) referida ao eixo ascendente das lógicas, como ilustra a figura 2.
Problemática
Ser do Absoluto
Ser subjetivo
Ser objetivo Lógica
fenomênico Lógica qüinqüitária
Lógica da dialética I/D/D=I/D/2 identidade I/D
I

Figura 2

  1. O ensino da lógica da diferença na educação especializada

A lógica da diferença, como parte fundamental da lógica em geral, a nosso juízo, deveria ser ensinada, sem implicar isto a sua exclusão de outros, nos seguintes cursos de graduação:

Antropologia
A velha teologia se perguntava se os primitivos tinham alma. A antropologia moderna, com Lévy-Bruhl, passou a perguntar se eles tinham lógica (clássica), o que, não importam as respostas já dadas, representa um enorme avanço, que não se pode mais perder. Assim, a lógica, muito especialmente a lógica hiperdialética qüinqüitária, viria se constituir aqui no principal pré-requisito para a antropologia filosófica. Esta, por seu turno, serviria de fundamento para todas as demais sub-especialidades, como a história da cultura, a antropologia cultural, a antropologia econômica etc.
A lógica da diferença gozaria aqui de um estatuto especial na medida em que ela é a própria lógica da hermenêutica cultural (arqueologia das mentalidades), um dos mais importantes instrumentos para a delimitação/imersão simpática/compreensão de fases ou de culturas e sub-espécies culturais.

Filosofia
A lógica teria aqui um papel crucial na proporção que permitiria promover, de saída, a reestruturação do curso de graduação, conseguindo destarte o que a princípio poderia parecer paradoxal: maior abrangência e, ao mesmo tempo, maior profundidade, que seriam obtidas através de uma bem maior organicidade temática e elevada economia pedagógica. O próprio curso de lógica, após a reestruturação aqui imaginada passaria a se constituir na espinha dorsal da graduação tomada em seu conjunto. Uma boa idéia de como isto possa ser realmente efetuado está até certo ponto já posta no item 2 anterior, que trata do ensino da filosofia e da lógica no âmbito do ensino de segundo grau.

Física,
A lógica aqui constituir-se-ia em pré-requisito para a cadeira de filosofia da física, no último ano da graduação, em especial, para alicerçar a discussão acerca dos conceitos fundamentais de tempo, espaço e matéria, das enigmáticas relações entre a física e a matemática, da história da física (em contraponto à concepção, em voga, da história como processo das mutações/seleção de paradigmas), de suas perspectivas evolutivas e, finalmente, para ajudar na compreensão do papel social da ciência e da técnica na Modernidade (14).

Linguística
A lógica aqui se constituiria em pré-requisito para a compreensão dos aspectos antropológicos e estruturais da linguagem. Nesta altura, não se precisa mais enfatizar que a lógica qüinqüitária, que caracteriza o homem em sua essencialidade, é a mesma lógica que caracteriza a linguagem natural, também considerada em sua máxima generalidade:

  1. A auto-referencialidade, ou seja, constituir-se metalinguagem de si mesma, capacidade governada pela lógica transcendental I;
  2. a hetero-referencialidade ou semanticidade, ou seja, valer na medida em que remete a outro, capacidade governada naturalmente pela lógica da diferença D;
  3. a historicidade, capacidade de seguir o devir não importa como, governada pela lógica dialética I/D;
  4. a capacidade demonstrativa ou de inferência formal, governada pela lógica clássica ou da dupla diferença D/D= D/2 ;
  5. por fim, a ilimitada complacência metafórica, que permite a pesar de Wittgenstein e tal como dão prova a toda hora os poetas , que ela fale acerca mesmo do que deveria calar, governada pela lógica hiperdialética qüinqüitária I/D/D= I/D/2.

A propósito, tão só as lógicas de base são o bastante para que bem se compreenda o adágio lacaniano que concebe o inconsciente estruturado como linguagem: em I, o sujeito da enunciação; em D, o inter-dito; em I/D, o que ficou por ser dito; e, por fim, em D/D=D/2, o dito (15). Apenas faltou a Lacan acrescentar a posição I/D/D=I/D/2, da lógica qüinqüitária, a partir da qual se poderia subsumir tudo isto, vale dizer, o poder discursivo em sua globalidade.

Matemática,
Não é necessário enfatizar o papel da lógica (formal) na garantia das demonstrações matemáticas. Destacaríamos aqui apenas o papel que as lógicas, em especial o jogo das lógicas da diferença (D) e da dupla diferença (D/D), podem ter para a mais profunda compreensão da questão dos fundamentos da matemática, em torno da qual há muito se confrontam logicistas, formalistas e intuicionistas (16).

Psicologia
A lógica se constituiria aqui pré-requisito para a compreensão da própria estrutura mental do homem, também das etapas do seu desenvolvimento intelectual e afetivo, como igualmente para a compreensão da problemática das perturbações mentais e das estratégias para seu mais eficiente enfrentamento (17).

Teologia
Atendo-nos ao âmbito do cristianismo católico, observamos que quanto mais contra-reformista, mais a formação teológica se vê comprometida com a lógica aristotélica. Só por isso pode-se avaliar o quão benéfico pode ser o estudo das lógicas, não apenas para teólogos profissionais, mas também para sacerdotes preparados para os novos tempos. Muito especialmente, as lógicas permitiriam renovar radicalmente a problemática do Absoluto (18), agora em termos mais coerentes, não aquém, mas para além da potência lógica de quem por Ele pergunta.

Em duas especialidades, além do curso geral de lógica, haveria lugar para um curso específico sobre a lógica da diferença. Uma, naturalmente, seria a própria graduação em Lógica (ou Filosofia orientada para a Lógica) e o segundo, em Psicologia. Se nesta última estiver compreendida uma cadeira dedicada à Psicanálise, então a lógica da diferença torna-se simplesmente indispensável, dado seu poder explicativo na compreensão dos chamados processos primários do inconsciente. Nesta última graduação, o próprio curso deveria prever uma reserva de tempo para a revisão de noções de matemática de segundo grau (operador, valor próprio de operador, raízes do número um, etc.) costumeiramente descuradas pelos que optam pelas chamadas ciências humanas. Em ambos os casos, graduação em Lógica ou Psicologia, pensamos em cursos com duração de um semestre.
Na formação de psicanalistas, dentro ou fora das fronteiras universitárias, a lógica da diferença, por se constituir na lógica mesma dos processos inconscientes, assumirá um papel central, devendo por isso se erigir, ao lado da lógica em geral, em matéria autônoma.


Notas

1. Oitavo e último de uma série de artigos sobre Lógica da Diferença para a Revista Brasileira de Filosofia. Os artigos anteriores foram publicados em RBF, fasc. ... , São Paulo, 1999 e 2000
2. Todos os historiadores da arte sem dúvida reconheceriam o gótico e barroco como estilos essencialmente vinculados ao cristianismo. Entretanto, barroco e gótico já são estilos referidos à lógica da ciência. O gótico é afim à escolástica, com a qual ainda se buscava impedir o advento da ciência, enquanto que o barroco é jesuítico, já pertencente à era da ciência estabelecida. Ver para detalhes SAMPAIO, L. S. C. de, Desejo, fingimento e superação na história da cultura, Rio, 1999.
3. SAMPAIO, L. S. C. de A lógica da diferença e a tradição filosófica in RBF, fasc. ...
  1. SAMPAIO, L. S. C. de Sistemas axiomáticos da lógica da diferença in RBF, fasc....
  2. SAMPAIO, L. S. C. de. Noções de antropo-logia. Rio de Janeiro, UAB, 1996. Alternativamente, pelo mesmo autor, o vídeo Antropologia cultural, I, II, III e IV, Rio de Janeiro, EMBRATEL/ UAB, 1993.
  3. SAMPAIO, L. S. C. de Lógica e economia, Rio de Janeiro, I C-N, 1988 (xerografado), cap. 1.7, pp. 57-63
  4. A capacidade lógica X está geneticamente presente em todo ser humano; em certo momento histórico ela é objetivada ou simbolicamente representada/absolutizada no que decidimos denominar cultura nodal X; mas ela pode ainda ser re-desvelada por uma cultura que sucede à cultura X, e que de algum modo a estará recalcando. É este último o caso da lógica D na Modernidade D/D. Foram observações de nosso amigo Jorge Panazio sobre o presente texto que acabaram provocando este esclarecimento.
  5. Hoje as formações do inconsciente (desde sonhos até sintomas histéricos) perderam sua inocência; as “livres associações” feitas pelo típico paciente instruído consistem, em sua maioria, em tentativas de oferecer uma explicação psicanalítica de suas próprias perturbações.//Assim, temos não apenas interpretações annafreudianas, junguianas, kleinianas e lacanianas dos sintomas, mas sintomas que são em si mesmos annafreudianos, junguianos, kleinianos ou lacanianos ... ZIZEK, Slavoj, O superego pós-moderno, para The London Review of Books, traduzido e publicado no caderno mais! da Folha de S. Paulo em 23-5-99
  6. SAMPAIO, L. S. C. de Reflexões, moderadamente otimistas, acerca do advento de uma cultura nova lógico-qüinqüitária, in ........ Rio de Janeiro, , 1997
  7. Grandes antropólogos, entre eles Morgan, Tylor, Frazer e Lévi-Strauss viram sua ciência em crise tão logo constituída, em função do processo de desaparecimento de seus primeiros e mais caros objetos. Ver GOLDMAN, Marcio. Razão e Diferença, Rio de Janeiro, UFRJ/Gripho, 1994 , p. 16
11.SAMPAIO, L. S. C. de Noções de teo-logia. Rio de Janeiro, UAB, 1997. (xerografado)
12.SAMPAIO, L. S. C. de Noções elementares de lógica – tomo I - compacto, Rio de Janeiro, I C-N,1991, opúsculo elaborado para servir de suporte à conferência Nova Visão da Lógica Moderna no Curso de Reciclagem do Departamento de Filosofia do Colégio Pedro II –1991 em que traçamos uma estratégia para reformulação e/ou introdução do estudo de filosofia no segundo grau a partir de uma nova visão da lógica. Estas idéias foram um pouco mais desenvolvidas sob a orientação do autor em Projeto Reforço e Suplementação de Segundo Grau, EMBRATEL, DDH, maio de 1994.
13. SAMPAIO, L. S. C. de Noções de teo-logia. Rio de Janeiro, UAB, 1997. (xerografado)
14.SAMPAIO, L. S. C. de, Apontamentos para uma história da física moderna. Rio de Janeiro, UAB, 1993/1997. (xerografado) e Octeto dos entes físicos – vácuo, a classe dos fermions e os mediadoires das seis forças da natureza, Rio de Janeiro, 1998 (xerografado)
15. SAMPAIO, L. S. C. de, Lacan e as Lógicas. Rio de Janeiro, 1992, Alternativamente, ver artigo A lógica da diferença e a psicanálise em RBF, fasc....
16. SAMPAIO, L. S. C. de, A matematicidade da matemática surpreendida em sua própria casa, nua na passagem dos semigrupos aos monóides. Rio de Janeiro, 1995 (xerografado) e, ainda mais especialmente, Outra vez, a matematicidade da matemática. Rio de Janeiro, UAB, 1997 (xerografado)
17. SAMPAIO, L. S. C. de, Lógica e Psicanálise - nove ensaios. Rio de Janeiro, I. C-N, 1990 (xerografado)
18. Um dos principais problemas a se enfrentar é a superação da desastrosa e tão espalhada metáfora do infinito, situação agravada com a descoberta dos transfinitos de Cantor. Ver ainda o item 2 anterior, tratando da problemáticas filosóficas no ensino de segundo grau.

Nenhum comentário:

Postar um comentário