5.4.17

O Rio de Janeiro, a universidade e a cultura

Eu faria de uma “Faculdade” de Cultura o núcleo da Universidade e de todo o ensino superior.

Ortega y Gasset

O Estado do Rio de Janeiro acaba de ver assumir a reitoria de sua principal universidade – UFRJ – o professor Carlos Lessa, democraticamente eleito, acrescente-se,  com o mais amplo respaldo da comunidade acadêmica. Muito em breve nosso Estado elegerá um novo(a) governador(a). Apesar das intervenções (melhor diríamos, inversões) espúrias bem à frente dos olhos (fechados) da “Justiça Eleitoral”, ainda assim, pelo que conhecemos da consciência política da população fluminense, é possível que se chegue a um resultado eleitoral de razoável legitimidade democrática. Lembrando que o próprio Estado também possui duas grandes universidades, não estaria próxima a bela oportunidade para que o Rio de Janeiro desse um especial exemplo ao Brasil, equacionando brava e seriamente a questão de suas universidades?

Meditemos  um pouco. Foram já várias, na Modernidade, as ondas varrendo o mundo com a pretensão de uniformizá-lo: a primeira delas aconteceu logo após ter sido conquistada a técnica da impressão mecânica totalmente indistinta fosse ela verdade ou mentira (não se diz mesmo por aí que o papel aceita tudo?!). Alardeava então o Ocidente por todos os quadrantes, assim que dava as caras e tão logo também as cartas, chegando por terra ou pelos mares, que a evangelização que junto se oferecia com adereços (as vezes, grilhões) e quinquilharias podia muito bem se harmonizar com qualquer cultura. Dos que acreditaram, nenhum restou para nos contar a história de como passou sem ver do ser ao não-ser. Zelando pela veracidade, devemos precisar que da cultura – universo das práticas, significações e valores comuns –, de fato nada sobrou. Não obstante, do pool genético dos respectivos “novos crentes”, demonstra cientificamente o discurso colonial que 25, 30 e em alguns casos até mais do que 50 % sobreviveu em indivíduos vagando por aí a fora. Sim, do ponto de vista materialista (por ironia, o que então se pregava era a salvação das almas!); na pura e simples lógica da res extensa, convenhamos, foi até bastante o quantum preservado. Pode em princípio parecer, mas não estamos aqui, por enquanto, fazendo qualquer juízo de valor.

Veio depois o colonialismo dos séculos XVIII e XIX estribado economicamente na máquina a vapor e depois na bem mais flexível eletro-técnica; militarmente, o grande “argumento” na retórica política internacional da época foi, sem nenhuma dúvida, o poderio naval. Esta onda globalizante começou rapidamente a refluir com o término da Segunda Grande Guerra.

Entrementes, com o advento da mecânica quântica desdobrada, em muitas técnicas e, especialmente, em microeletrônica pôde o Ocidente alcançar a digitalização intensiva e com isto a gigantesca ampliação das possibilidades de medida, cálculo e controle automático de todas as coisas deste e doutros mundos. E hei-nos, por conseqüência, de repente, confrontados com o refluxo intensificado do processo “civilizador” – diz-se hoje globalização – agora chegando preferencialmente pelos ares, a jato, ou surfando no largo espectro das ondas eletromagnéticas. E tudo, como fora a farsa de uma farsa, se repete... Basta ligarmos a TV e em poucos minutos iremos ver e ouvir, envolta em cores requintadas e música bem temperada, a maligna e melíflua cantilena: os produtos da ciência e da técnica modernas, oferecidos juntos com jeans, balangandãs, hambúrgers e cola-cola, garantem eles, não trazem o menor dano às cabeças assim como por dentro à cultura. E anunciam a mais não poder como microcomputadores, por exemplo, cabem como luvas na vida de todos: dos aborígenes australianos à dos esquimós nos arredores do ártico, o mesmo valendo para um grupo de freiras no pátio de um convento medieval italiano, para uma caravana de berberes tostados cruzando a camelo o Saara, para um pequeno círculo cerimonial de monges budistas tibetanos e até para o diabo na faina administrativa de sua ígnea propriedade. Asseguramos nós, bem ao contrário, que, como dantes, quem nisso acreditar, não viverá para contar como tal possa ter sucedido, embora, materialmente falando, vá com certeza so(ço)brar-lhe uns 25, 30% ou mais, outra vez. Ai, do pobre diabo, perdendo para sempre sua alma!

O preclaro estudo do canadense Bill Readings, Universidade sem cultura,  publicado pela EdUERJ, diagnostica que as atuais exigências de “excelência” universitária que acontecem por toda parte são a contrapartida inelutável do tão decantado processo de esvaziamento dos Estados Nacionais. Em razão disso, a universidade “abandona o papel de nau capitânia da cultura nacional”, embora, segundo este autor, não tenha ela ainda tomado um rumo definitivo. Entretanto, talvez por lhe ter faltado o olhar distanciado, não se pergunta: quais seriam exatamente estes estados nacionais? Não nos diz que são os dos outros, isto que no entanto é bastante evidente, pois, os que mais apregoam tais “verdades” o fazem à sombra de seu escudo de radares e foguetes, animados por hinos, bandeiras e galhardetes, e com a pronúncia sempre mais metálica arrevesada visto que se encontrarem cada dia mais e mais armados até os dentes.  

É se fingir de muito boboca, não querer perceber que ainda que tiremos nota dez nos deveres de casa que nos passam semestralmente o FMI e congêneres, continuaremos sob mira severa dos atiradores da elite consensual (de Washington) enquanto representarmos, sim, a mínima possibilidade de irrupção de uma nova cultura, porque todos no fundo sabem (ou deveriam saber), no que tange à sobrevivência a longo curso, apenas isto deveras conta.

 Aqui no Brasil, toda esta problemática cultural assume características e proporções inusitadas, pois não estaríamos lutando tão apenas na defesa de um patrimônio acumulado, mas também pela preservação do espaço onde se estaria processando já há séculos o intensamente doloroso processo de caldeamento de uma nova cultura. Quão desmesuradas foram as penas dos que cá estavam, dos que aqui aportavam e de seus descendentes mamelucos para chegarem à unidade e posse deste vasto território; também, dos trazidos a força de África e dos muitos tangidos de outras plagas que aqui vieram violentar-se, violando o leito dos rios e as entranhas da terra para forçá-los a entregar riquezas (ou confessar pobreza); dos que, depois de abrirem vielas sem número e estradas sem fim, construírem milhares de vilas e vilarejos, cidades e capitais imaginadas, vieram morrer à mingua desassistidos pelas ruas ou barrados à porta dos hospitais públicos... Apenas arrolar os nomes de tantas dores e sofrimentos nos tomaria muitas e muitas páginas. Entrementes, seria também prova de desinformação e grave falta de compreensão histórica acreditar que pudesse ser significativamente menor o preço da ousadia (ou inconseqüência) de se por a desvelar/edificar, em nome da humanidade, uma nova cultura.

    Assim, mais do que em qualquer outra parte, a universidade entre nós necessita assumir um papel de liderança na defesa do espaço cultural da nação para que toda esta ebuliente e complexa gororoba cultural, depois de tudo, de repente, não desande. É o mínimo que a nossas “elites” políticas, empresariais e, em especial, intelectuais podem fazer para limpar um pouco a própria barra, em verdade, sua face ou pelo menos maquiá-la de leve disfarçando sua já secular insensibilidade diante das causas sociais e nacionais.

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