As culturas travam entre elas, e consigo mesmas, relações complexas de desejo recalcado, de fingimento e de superação
Em algum dos anos de 1990, não me lembro qual,
fui convidado pela Embratel para fazer uma conferência em rede,
sobre “Macunaíma”, para os funcionários da empresa. Era
curioso, àquela altura, que a palestra fosse acompanhada
simultaneamente nas agências espalhadas pelo país, que as pessoas
mandassem comentários e perguntas, e que esse fato duplicasse em
outro nível de tecnologia a famosa onipresença do “herói de
nossa gente”, capaz de se deslocar magicamente, em registro
folclórico e rapsódico, pelo Brasil afora e adentro. Se a
matéria-prima de “Macunaíma” são os mitos da cultural oral, e
se Mário de Andrade convertia essa tecnologia oral em tecnologia
escrita, literária, estávamos às voltas, ali, com a cultura
informática e midiática, onde o livro morreria se não ganhasse
nova vida. Minha surpresa maior foi perceber depois que a situação
tinha sido arquitetada pelo vice-presidente da empresa, Luiz Sergio
Coelho de Sampaio, com fins ao mesmo tempo gerenciais, pedagógicos,
políticos e filosóficos.
Sampaio me deu uns vídeos onde expunha uma
original e ambiciosa teoria da cultura universal. Segundo esta, todas
as culturas operam com uma espécie de chave-mestra de natureza
lógica. Essas chaves se reduzem à combinação de dois elementos
primordiais, a Identidade e a Diferença. O monoteísmo judaico
coincide com a criação de uma lógica da Identidade, enquanto o
politeísmo trágico grego, com sua conflagração de forças
cósmicas superiores e ínferas, é uma apoteose da lógica da
Diferença. A cultura cristã, que nasce de uma relação entre essas
duas, engendra uma lógica dialética em que coabitam Identidade e
Diferença, o divino e o humano, o Uno e o Trino. E a cultura
moderna, baseada na lógica clássica, aristotélica, do “terceiro
excluído”, é o império da dupla Diferença, a diferença em
estado puro, sem recurso a nenhuma Identidade transcendente: a lógica
relacional absoluta que operou a redução digital de tudo quanto
existe à diferença 0/1, vazia de conteúdos.
Mais interessante e desconcertante ainda do que
essa primeira redução de grandes parcelas da história humana a uma
espécie de caleidoscópio dançante de lógicas é a afirmação de
que as culturas travam entre elas, e consigo mesmas, relações
complexas de desejo recalcado, de fingimento e de superação. Assim,
a cultura moderna, contemporânea do capitalismo tecnológico em sua
forma plena, movido pela lógica da dupla diferença, mantém como
desejo recalcado a religião que a precedeu, desejo explorado agora
no campo da física, enquanto disfarça o fato de constituir-se ela
mesma numa religião, a do mercado universal. Seu fingimento de
superação se desenrola na forma da biopirotecnia, irradiado em
apoteose publicitária. Mas a sua real superação se dá através do
engendramento de uma nova lógica, a lógica hiperdialética. Nesta
se combina o que há de necessário na lógica da Identidade (o
recurso a um princípio unificador), da Diferença (o caráter
equívoco, deslizante, paradoxal, de tudo), da Dialética (o
questionamento das parcialidades e das totalidades) e da Dupla
Diferença (a manipulação diferencial e intensiva de todos os
fatores em jogo através da tecnociência).
O efeito imediato para quem se vê diante dessa
formulação totalizante, reduzida a esquemas simples que se dispõem
a abarcar tudo, é o de que o autor é um maluco machadiano movido
pela ideia fixa, aviando a fórmula do Emplasto Brás Cubas. No caso,
uma panaceia lógica para alívio da nossa melancólica e
enlouquecida Humanidade. Ainda bem que eu não costumo parar nessa
primeira impressão, embora confessando que, com raríssimas
exceções, não consegui ao longo desse tempo interessar meus amigos
interlocutores por essa incrível fabulação
antropológico-filosófica. No meio acadêmico, então, nem pensar.
Para complicar, Sampaio usa fórmulas matêmicas, onde as quatro
lógicas aparecem como I, D, I/D, D/D, o que dá a suas exposições
um aspecto ao mesmo tempo esotérico e paracientífico, abstrato e
delirante, que afugenta seus leitores, quando não se sentem diante
de uma espécie de “fenomenologia do espírito” de algibeira.
Para mim, trata-se de uma elucubração filosófica
que só poderia vir de um autodidata genial, livre de
constrangimentos universitários, que se arrisca, por isso mesmo, a
pensar fora dos esquadros, com resultados reveladores, estimulantes e
de grandes consequências, se desenvolvidas. Sampaio (que faleceu em
2003) acreditava que o Brasil, na impossibilidade de instaurar alguma
das quatro lógicas, tinha vocação para a lógica das lógicas, a
hiperdialética, a quinta (que dá forma, por exemplo, diria eu, à
obra de Guimarães Rosa, que por isso mesmo atrai todas as correntes
críticas e é irredutível a qualquer delas).
Acho que uma razão mais profunda para a recusa a
acompanhar o grão de loucura do pensamento de Sampaio é que cada
uma das lógicas prefere ficar fechada em si mesma do que se admitir
como parte de uma lógica maior.
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