LUIZ SERGIO COELHO DE SAMPAIO
Rio, outubro de 1995
RECONHECIMENTO
Aos amigos Aluísio Pereira de Menezes e Márcio Gonçalves que ao
proporem o terna de nossas tertúlias semanais acabaram tomando-se não só a causa
propiciatória , mas também a causa final da elaboração do presente texto.
Ao amigo Pelosi que, sabedor de nossas intenções, proporcionou-nos um
valioso apoio bibliográfico cuidadosamente pré-selecionado.
Ao amigo Francisco Rosa (Xiko Metralha) sempre presente com seu capricho
e sua arte, sem falar na sua inexcedível velocidade.
À minha esposa Lailce, que pelos seus múltiplos afazeres, não teve tempo de
ler o manuscrito e, muito menos, para datilografá-lo, mas ainda assim encontrou
urna meia hora para ouvir atenta e pacientemente urna exposição resumida do
mesmo chegando até a advertir-nos quanto à universalidade da tese que
defendíamos, qual seja, a de que a matematicidade da matemática tinha por essência
a simetrização do nulo. Exemplificou: - Não foram poucas as vezes em que ouvi
meu pai afirmar, a propósito da questão do rigor na educação das filhas, que minha
mãe não passava de um zero à esquerda. Jamais o vi referir-se, do mesmo modo à
direita, e isso, com certeza, na sua matemática, fazia diferença.
ÍNDICE
1. A estranhezaseguida da suspeita
2. Em busca do tempo (de todos nós) perdido
3. Episódios bergmanianos - jogando com a lógica da morte
3.1 Olho por olho, para surpreender o conjuntista
3.2 Crer para ver, no enfrentamento do categorista
3.3 OuJano ou Gêmeos
4. Morte e Ressurreição
* Grifos do autor.
Seo nada deve ser questionado - o nada mesmo - então deverá
ser primeiramente dado. Devemos poder encontrá-Io. *
Heidegger. Que é metafisica
Todas as coisas escorregaram para um mesmo nível, para uma
superfície que, semelhante a um espelho oxidado, já não
espelha, nada reflete. A dimensão dominante toma-se a da
extensão e do número. *
Heidegger. Introdução à metafisica
C'est pourquoi Ia symétrie y joue un grand rôIe: elles ne
décrivent qu'un monde figé dans une sorte d'étemité, ou tout
est déjà arrivé. *
G. Lochak. La géométrisation de Iaphysique.
1. A estranheza seguida da suspeita
Já é hábito entre osmatemáticos apresentarem a noção formal de grupo de
um modo construtivo. Partem de um par ordenado (C, o) onde C é um conjunto e o é
uma operação - implicitamente unívoca - atuando sobre os elementos de C. A
partir daí. introduzem. um a um. os axiomas que caracterizam o grupo, produzindo
assim uma hierarquia de estruturas algébricas no sentido do mais para o menos geral.
do menos para o mais "denso" ou complexo. A ordem de introdução dos axiomas
não seria em princípio única. mas a que é geralmente adotada. acreditamos. tem o
suporte de uma certa intuição já matematizante no sentido da neutralização da
contextualidade originária das significações. A imposição do fechamento. a nosso
ver, é "horizontalmente" descontextualizadora. tanto quanto a associatividade o é
"verticalmente". Mas isto são só pressuposições: a verdade é que o consenso dos
matemáticos acabou por consagrar a seguinte ordem de entrada em cena dos
axiomas: fechamento, associatividade, existência de um elemento neutro, e
inversibilidade. Esta lista é muitas vezes ampliada para incluir a comutatividade. o
que nos leva para além da simples noção de grupo, especificamente. aos grupos
abelianos. Teríamos, assim, o seguinte esquema hierárquico:
Existência de um
único elem. neutro:
:J um único C o E C
t.q. V c, E C tem-se
CjOC o = CoOCj = Cj
(C, o)
~
GRUPÓIDE
1
SEMIGRUPO .11II--
1
MONÓIDE
1
Associatividade:
V c., Cj' Ck E C tem-se
necessariamente
(CjOC)OCk =Cjo( CjOCk)
Fechamento:
vc., Cj E C
:J um único Ck E C
t.q. c, ° Cj = Ck
GRUPO
•
Inversibilidade:
V c, E C. :J Cj E C
t.q. CjOCj = c.,
P d fi
. - -I
or e miçao: Cj=Cj 1
Comutatividade:
"ic· c. E C tem-se
I' J
necessariamente
CjOCj = CjOCj
----+~ GRUPO ABELIANO
5
A elegância do esquema construtivo é evidente, porém, gostaríamos de
chamar a atenção para algo que se nos afigura como sumamente estranho: qual a
razão pela qual, na definição de monóide, éimposto que o elemento neutro c o ' o seja,
concomitantemente, à direita e à esquerda, isto é, que C o seja tal que c.oc, = c, e
coOCi= c, para qualquer c, pertencente a C. Assim é geralmente feito, e citaríamos
apenas, como um dos mais conspícuos exemplos, o da Algebra de MacLane e
Birkhoff (8).
Para começar gostaríamos delembrar que a neutralidade, identidade ou ação
nula apenas de um lado - esquerdo ou direito - não dissolve a característica
reflexiva ou idempotente de c o : tivesse o axioma estabelecido apenas cioco= Ci
ou, alternativamente, CoOCi = c., ter-se-ia, substituindo-se Cjpor c., em ambos casos
Cooc o = c o . Este fato, aliás, tem um sentido filosófico profundo na medida em que
viermos a atribuir uma conotação transcendental ou de "consciência" ao elemento
neutro ou identitário, pois, constrangidos pelo formalismo matemático, seremos
levados a aceitar que antes de que C o possa assumir a conotação de transcendência
pura, identidade própria ou auto-consciência, ele necessariamente terá que assumir
aquela de consciência intencional ou operatória, ou ainda, como diriam Husserl e
seus seguidores, de consciência de.
Há algo ainda de mais importante: a simetrização (à direita e à esquerda) do
elemento neutro, nulo ou identitário no nível do monóide não é absolutamente
redundante, vale dizer, não poderia resultar de um teorema, bem ao contrário do que
ocorre ao nível do grupo. Deveras, para este último, onde foi imposta a
inversibilidade geral, podemos provar, com a ajuda da propriedade da
associatividade, a simetria do elemento neutro, qualquer que tenha sido a opção
axiomática assumida, à direita ou à esquerda. Para fazê-Io, partimos, autorizados
pela associatividade, da seguinte igualdade:
(c.oc.joc, = c·o(c·oc·)·
1 J 1 1 J l'
lançando mão do axioma da inversibilidade podemos substituir o genérico Cjpelo
particular Cj-I,assegurados de que este sempre existe, e teremos então:
(c.oc,-Ijoc, = c.o(c.- I oc.);
1 1 1 1 1 1 ,
-I -I
como, ainda pelo axioma da inversibilidade, CjOCj = Cj OCj
finalmente, por substituição, à igualdade:
c, chegamos
Por que os matemáticos, profissionais da elegância e da economia conceitual,
teriam introduzido num nível inferior (o do monóide) um axioma que num nível
imediatamente superior (o do grupo) pode ser obtido como teorema de fácil
demonstração?! Em outras palavras, qual a motivação oculta que os levou a
6
introduzir o elemento neutro simétrico - à direita e à esquerda - já ao nível dos
monóides?'
Ainda que não saibamos precisar a extensão ou as conseqüências do fato
gerador de nossa estranheza, sentímo-nos plenamente justificados em suspeitar de
que algo de sério foi escamoteado à nossa atenção precisamente na passagem do
semigrupo ao monóide, e cujo traço sintomático, nos foi dado identificar: a
introdução. sem mediação, do elemento neutro, injustificadamente já simetrizado, à
direita e à esquerda.
Para aprofundarmos a busca de uma resposta teríamos. em princípio, dois
caminhos a tomar: o primeiro, seria o de reconceituar o monóide impondo-lhe a
existência de elemento neutro tão apenas de um lado - tanto faria, à direita ou à
esquerda - e depois focalizar nossa atenção na passagem destes monóides re-
conceituados aos grupos; o segundo, seria o de introduzir uma nova instância
estrutural algébrica entre os semigrupo e os atuais monóides simetrizados e. a seguir.
dirigir nossa atenção para a passagem desta nova instância a estes últimos. Embora o
primeiro destes caminhos, a princípio. se nos afigurasse como o mais elegante e
econômico. acabamos decidindo-nos pelo segundo em razão de que assim
estaríamos bulindo o menos possível na tradição imperante e. conseqüentemente.
suscitando menores resistências às nossas talvez importunas considerações.
Vamos, pois, introduzir uma instância algébrica intermediária entre
semigrupo e monóide que levará a denominação de semimonóide, aliás. com inteira
propriedade, haja visto que sua característica específica será a de possuir um
elemento semi-neutro, isto é, só atuante como tal de um dos lados, à direita ou à
esquerda. O semimonóide seria assim um par ordenado (C, o) constituindo-se num
semigrupo - vale dizer. fechado e associativo - para o qual exige-se,
suplementarmente, que contenha um elemento C o neutro à direita (como poderíamos
tê-Io escolhido à esquerda), isto é. tal que para todo c, pertencente a C tenha-se,
necessariamente CjOC o = c.,
Fazemos questão de frisar que no semimonóide assim definido o elemento
neutro preserva duas características essenciais (do ponto de vista filosófico): a
primeira. de se manter reflexivo ou indepotente (c.oc, = c.); a segunda. que isso
acontece por simples conseqüência teoremática de sua ação neutra ou nulificadora
- ainda que tão somente à direita - sobre a totalidade dos elementos de C.
Conotativamente, c, conserva-se reflexivo ou consciente na medida em que, antes,
constitui-se como consciência de.
O esquema hierárquico construtivo das instâncias algébricas anteriormente
apresentado, com a modificação aqui proposta, passaria a ser então:
GRUPÓIDE
GRUPO ~
~ SEMIGRUPO ~
GRUPO ABELIANO.
SEMIMONÓIDE MONÓIDE
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Bem. além de um ganho em plus-elegância. que de mais significativo para a
compreensão das estruturas formais poderíamos ainda daí sacar? É o que
pretendemos elucidar a seguir.
2. Em busca do tempo (de todos nós) perdido
Preliminarmente, vamos trazer à cena a noção de livre já aplicada a
monóides e outros entes matemáticos. Trata-se de substituir a noção de algo direta
ou extensivamente dado por algo mais restrito, porém, munido de regras operatórias
capazes de gerarem de forma unívoca aquele mesmo dado. É a substituição do dado
extensivo pelo dado intensivo, de alta relevância nos casos em que aquilo que
temos em mente seja de natureza ilimitada ou infinita. Para ilustrar, a formalização
das linguagens, que têm palavras, frases, parágrafos e textos de dimensões não
previamente estabelecidas, requer justamente a noção de livre, no caso, aquela de
monóide livre.
Vamos estender agora a noção de livre ao semimonóide que ficaria assim
caracterizado: é o par (C, o) em que os elementos do conjunto C são as cadeias
(strings) gerados a partir de um conjunto G = {go,g"g2, .... gn}, dito gerador de C,
através da concatenação de seus elementos pela própria operação o. Em suma. os
elementos de C são todas as combinações de elementos de G tomados um a um, dois
a dois, e assim sucessivamente.
Para que de fato (C, o) venha constituir-se num semimonóide é
imprescindível que G possua um único elemento go, neutro também à direita em
relação aos demais elementos de G; caso contrário, como poderíamos garantir a C
um elemento neutro? Naturalmente, ter-se-á c, = go' Fica também mais ou menos
óbvio que o gerador G deve conter pelo menos dois elementos. doutra forma. toda
cadeia formada reduzir-se-ia a go mesmo: googoo ... og, = go . Isto faria com que C
se identificasse com o próprio G e, conseqüentemente, que a noção de semimonóide
livre perdesse toda a sua significação distintiva em relação ao semimonóide
inqualificado. Em síntese, G seria um gerador que não gera senão ele próprio.
A mesma estrutura nocional aplica-se à definição de monóide livre exigindo-
se apenas, suplementarmente. que go - pertencente a G e ainda identificado com
c, - se comporte como elemento neutro tanto à direita quanto à esquerda em relação
a todos os demais elementos de G.
Cumpre observar que G, tanto para os semimonóides como para os monóides
livres. não se constitui, junto com o, em nenhuma das estruturas algébricas até aqui
consideradas, simplesmente porque, se assim fosse, estaríamos obrigando a que G
fosse fechado em relação a esta mesma operação. Na presente situação, deixar que G
8
G se feche é o mesmo que permitir a degenerecência de C,ouseja, que C se
identifique com G mesmo, fazendo, assim, com que a noção de livre se esvaia.
Para que possamos melhor e mais profundamente avaliar o que ocorre na
passagem do semimonóide ao monóide não precisamos aqui tomá-l os em suaplena
generalidade; basta que consideremos e comparemos o semimonóide e o monóide
livres gerados a partir de um conjunto gerador constituído de apenas dois elementos.
Isto porque, como já dito, a noção de livre dissolve-se para G contendo um só
elemento, e mais ainda, porque o semimonóide e o monóide realmente livres,
gerados por apenas dois elementos, são formalmente únicos. Aliás, o tipo de
renúncia aqui proposta não é assim tão original; já de algum tempo, assim agem os
minimalistas no terreno das artes!
Pelas características minimalistas destas entidades, receberão elas a
denominação de fundamentais: semimonóide livre fundamental e monóide livre
fundamental.
Semimonóide livre fundamental
É o par (C, I) gerado a partir de G = {I,D} por meio da própria operação I,
tomando-se I como o elemento neutro à direita, tanto de G, quanto de C.
A operação I é simplesmente a operação genérica o rebatizada. Os elementos
de C seriam em princípio:
C = {I, D, 111,IID, D/I, DID, 11111, IIIID, IIDII, DII/I, IIDID, D/IID, DIDII, DIDID,
1111111, III1IID, ...}
Estabelecendo-se, por definição, DIDIDI...ID = Dl e levando-se em conside-
n
ração a neutralidade axiomática à direita de I, teríamos:
ID 1 2
2 2 2 3
C = {I, D, I, I , D, D , I, IID, IID, D, IIDI , DI , DI , DI , I, IID, ...}
Suprimindo-se as repetições, chegaríamos, por fim, a:
C = {I, D, IID, DP' I1D/2, DP, ...}
Monóide livre fundamental
É o par (C, +) gerado a partir de G = {I,D} por meio da própria operação +
(que aqui rebatiza o) tomando-se I como o elemento neutro à direita e à esquerda em
G e, conseqüentemente, também em C.
9
Os elementos de C, em princípio, seriam:
c = {I, D, I+I, I+D, D+I, D+D, I+I+I, I+I+D, I+D+I, D+I+I, I+D+D, D+I+D,
D+D+I, D+D+D, I+I+I+I,I+I+I+D,...}
Tendo-se em conta a neutralidade de I à direita e à esquerda, teríamos:
c = {I, D, I, D, D, D+D, I,D, D, D, D+D, D+D, D+D, D+D+D, I, D, ...}
que, suprimidas as repetições, reduzir-se-ia finalmente a:
c = {I,D, D+D, D+D+D, ...}
Fazemos aqui um breve parêntese para observar que a noção de livre perde
seu sentido quando estendida aos grupos na medida em que teríamos que exigir a
prévia inversibilidade geral dos elementos de seu gerador, o que provocaria o seu
fechamento, e por fim, que G se confundisse com C. Para ilustrar isto vejamos o
caso do grupo "gerado" pelo mesmo G = {I, D} e a operação o. Para ~ue
"gerássemos" um grupo teríamos que ter necessariamente D = D- e
conseqüentemente DoD = loque faria C reduzir-se ao próprio G. A noção de
gerador de grupo é relevante, porém, num sentido bem diferente, que não permite a
sua assimilação à noção de gerador livre aqui considerada. Por exemplo, no grupo
de dois elementos (G, o) onde G = {I,D}, D constitui-se no gerador do grupo, no
preciso sentido de que ele sozinho é capaz de gerar todos os elementos do grupo,
inclusive a si mesmo: D = DoDoD e 1 = DoD.
Bem observando cada uma das estruturas formais geradas por G={I,D} e
confrontando-as, somos levados a uma série de conclusões, em quantidade e
profundidade, até de certo modo surpreendentes para o próprio autor. Eis, a nosso
juízo, as mais relevantes:
a) O semimonóide livre fundamental é perfeitamente isomórfico às lógicas,
melhor dito, aos seus significantes formais tal como por nós há muito
estabelecidos em Noções elementares de lógica (9) e no artigo por aparecer
Lacan et les logiques (10). Isto é o mesmo que dizer que a seqüência das
lógicas - 1 (transcendental ou da identidade), D (da diferença, incluindo
suas versões paracompleta e paraconsistente), I/D (dialética, seja platônica,
seja hegeliana), DP (clássica ou da dupla diferença), IIDP (qüinqüitária ou
hiper-dialética), DP etc. - constituem, formalmente, um semimonóide livre
gerado pelo conjunto das lógicas fundamentais 1e D.
b) O monóide livre fundamental é perfeitamente isomórfico ao conjunto dos
números naturais incluído aí o zero. Tomando-se por referência a axiomática
de Peano, o número zero seria representado por 1e a noção de sucessor, pela
10
expressão "+D", isto é, x+D devendo ser lido como o imediato sucessor de x.
Numa interpretação mais simples e intuitiva, I e D representam,
respectivamente, os números zero e um, a operação + tomando o seu sentido
aritmético usual de soma.
c) A operação designada pelo sinal " / " no semimonóide apresenta, sem
sombra de dúvida, um sentido conotativo manifestamente sintético ou
dialético na medida em que ela permite ao elemento I atuar e re-atuar
persistentemente em contraposição ao igualmente insistente poder
diferenciador de D. Caso atribuamos a I a conotação de Nada heideggeriano,
vemos que este, por sua própria "essência", é persistentemente nadificante
"O próprio nada nadifica" (5).
d) Em contraste, no monóide livre fundamental a operação + assume o papel
de simples soma aritmética vis-à-vis o zero e o 1. Aqui o zero não mais
indica o Nada, é apenas um nada exangue, particularizado, mais
precisamente, um nada-número que não é verdadeiramente número, mas
mero semblante.
Isto faz com que qualquer número, seqüência deles ou expressão que os
contenha ou represente deixe de se contrapor ao Nada, horizonte ontológico
inerente a todo ente e assim, subtraia-se a inesgotável problemática de sua
origem. O zero ou nada-numérico é apenas a múmia matemática do Nada,
uma cicatriz ou marca de sutura que elide a falta consubstancial a todo ente.
Mesmo como cicatriz, não o é verdadeiramente, forçada que foi a
espacializar-se - à direita e à esquerda. Em resumo, no monóide livre acha-
se já completamente velada a decisiva problemática ôntico-ontológica.
e) A comparação dos papéis exercidos pelas operações / no semimonóide e +
no monóide deixa transparecer que o esforço de descontextualização das
significações que os matemáticos buscam obsessivamente impor em seu
domínio, primeiro pelo fechamento e após pela associatividade, não
consegue realizar-se ao nível do semimonóide. É a imposição do nulo
simetrizado, à direita e à esquerda, que vai infligir o golpe fatal à
contextualidade: os números inteiros já não reverberam à distância e a
operação + fica destituída de todo vigor sintético, restringindo-se a um papel
articulador meramente externo ou combinatório.
f) "Deus fez os inteiros, todo o resto é obra do homem" era no que acreditava
Kronecker (1). Pelo que vimos, bem melhor seria atribuir-Lhe a criação das
lógicas, cabendo ao homem a matemática por inteiro, a começar pelos
próprios números naturais. E estes teriam sido criados pelo homem por força
de uma castração ou quebra de um vigor sintético. Assim, mumificou-se o
nulo ou a identidade propriamente lógica; congelou-se, por conseqüência, a
dialeticidade e, tudo isto, com um só golpe - a simetrização, ou o que é o
11
mesmo, a espacialização do Nada. O corte Criador/criatura não seria de modo
algum interno à matemática, mas situar-se-ia justo no limiar desta com a
lógica.
Podem seus teólogos (afeitos apenas à lógica aristotélica, e nada às demais
lógicas) e seus fiéis o serem: neuróticos obsessivos, como acreditava Freud;
Deus mesmo, não é certo que também o seja.
g) É costume associar a aritmética (em particular a sequencia dos
números) à temporal idade e a geometria e a álgebra à espacialidade. Assim,
já o faziam os medievais, particularmente, em seu quadrivium. Entretanto,
pelo que vimos, a seqüência dos números naturais, incluído o zero, já é algo
espacializado, pois resulta ela precisamente da simetrização, à esquerda e à
direita, do elemento nulo ou identitário. Na seqüência dos naturais tanto a
temporal idade como a conseqüente dialeticidade já foram neutralizadas ou
mumificadas; a historicidade é ali substituída pela pura acumulação. Entre
os monóides, e exemplarmente entre os números naturais, não mais existe um
"futuro criativo", mas, e tão apenas, um "futuro calculado", o que,
entrementes, já não ocorre entre os semimonóides e, correlatamente, com as
lógicas. No que tange às geometrias, a espacialização é, por essência, ainda
mais radical, na medida em que elas são correlatas dos grupos de
transformação. Não é um simples acaso que Felix Klein (6), com seu famoso
Programa de Erlangen, tenha buscado a unificação das geometrias
identificando o conhecimento de cada urna delas ao estudo das invariancias
relativamente a determinados grupos de transformações. Em suma, o
monóide constitui o primeiro passo, conquanto que decisivo, para a
espacialização do mundo, que se consuma, num golpe de misericórdia, com o
império das estruturas de grupo.
h) Num mundo completamente inversível, absoluta e exclusivamente extenso
ou espacial, ou dito em termos matemáticos, num mundo governado por
grupos, desaparecem todas as condições de historicidade, e o mais drástico, a
possibilidade de emergência da consciência - mesmo que concebida como
consciência intencional - e, conseqüentemente, do projeto e da liberdade.
Considerações antrópicas: se existo, se estou inapelavelmente condenado à
liberdade, é que o mundo é algo mais que simples res extensa geometrizada;
vivo num mundo histórico onde, portanto, vigem as pré-condições lógicas
para se pensar a criação e a escatologia.
i) A um universo lingüístico contendo pelo menos a aritmética elementar ou,
posto com maior generalidade, a um universo lingüístico onde o nada se
apresenta (ou simula sua presença) de modo simetrizado, algo
necessariamente lhe faz exceção, isto é,escapa ao seu dizer: o nada não
simetrizado. Concordamos que esta proposição pouco mais é do que um
truísmo, porém decidimos expô-Ia aqui não só porque ainda muito se resiste
12
à sua verdade. como também. porque ela encontra um equivalente no
universo matêmico lacaniano: para qualquer totalidade caracterizada por
'ljx~(x), existe obrigatoriamente algo que lhe escapa ou excede. vale dizer.
-
:Jx~ (x).
j) Ainda que inconscientemente, ainda que só culposamente. ainda que com
ponderáveis atenuantes de ordem neurótica, o fato é que com a
desconsideração da instância "algébrica" intermediária dos semimonóides -
vale dizer, pela inclusão da noção de elemento nulo já simetrizado à direita e
à esquerda quando da definição de monóide os matemáticos
escamotearam a essência da questão do fundamento, induziram a que
acreditássemos numa ilusória auto-suficiência formal - por um outro viés,
aliás, já denunciada pelos teoremas de Gõdel -, enfim. subtraíram-nos um
valioso apoio metafórico para que mais facilmente chegássemos ao
desvelamento da crucial diferença ôntico-ontológica.
I) Como resumo: a matematicidade da matemática está numa ardilosa
nadificação do Nada; sua essência é um nada simetrizado ou espacializado, à
direita e à esquerda. Na matemática não mais impera Zeus, mas Jano.
Por tudo isto a que chegamos - e se empenharmo-nos, muito mais haverá -
não cremos ter sido assim tão grande o barulho que fizemos com nossa estranheza
seguida de suspeita introdutórias!
3. Episódios bergmanianos - jogando com a lógica da morte
Em tudo que precede, particularmente no item anterior. não nos estaríamos
deixando arrastar por uma comovente circularidade? Como poderíamos afirmar que
a matematicidade da matemática começa com o monóide, se é largamente aceito por
seus mais destacados cultores - depois de Cantor e mais ainda com Bourbaki (3) -
que todo o edifício matemático assenta sobre a teoria dos conjuntos, e que nós
mesmos a pusemos, como todo mundo, no alicerce da construção da noção formal de
monóide - monóide é um par ordenado (C, o) onde C é um conjunto ...?! Ainda que
substituíssemos a noção de conjunto pela, por muitos aceita como mais primitiva,
noção de categoria, a coisa não se complicaria ainda mais na medida em que os
próprios monóides podem ser aí definidos como urna particular espécie?!
Aqui trocamos de lado, desvestímo-nos de diabo. e voltamos a brincar de
sermos nós mesmos. primeiro. havendo-nos com os conjuntistas, e a seguir, mais
perigosamente, com os categoristas.
13
3.1 Olho por olho, para surpreender o conjuntista
Vamos partir da tradicional axiomática de Zermelo-Fraenkel (4) e tomar
evidente que vítimas de circularidade somos todos nós, quem sabe, inexoravelmente.
Seja C um conjunto; pelo axioma do conjunto potência (power-set) existe,
necessariamente um conjunto designado P(C) contendo todos os subconjuntos de C,
inclusive o próprio conjunto C, dito subconjunto impróprio de C. Ademais, com o
concurso do axioma-esquemático dos subconjuntos garantimos que existe o
conjunto vazio, designado ~,e que este está necessariamente contido em P(C). Com
o axioma da união é introduzido o operador união (U) pertinente para todos os
conjuntos, em particular, para os conjuntos (subconjuntos de C) pertencentes a P(C).
Isto estabelecido, podemos afirmar com certeza que o par (P(C), U) constitui
um monóide:
P(C) é fechado, pois para todos Pi' Pj pertences a P(C) tem-se:
Pi U Pj = Pk com Pk petencente a P(C);
P(C) é associativo, pois para todos Pi,Pj e Pk pertencentes a P(C) tem-
se necessariamente (Pi U Pj) U Pk = Pi U (Pj U Pk)
P(C) contém umúnicoelementoneutro - oconjunto vazio ~ - tal que,
para todo Pi pertencente a P(C) tem-se ~ U Pi = Pi U~ = Pi , isto é, ~ é
neutro tanto à direita, quanto à esquerda.
Ficamos, pois, autorizados a tirar duas importantes conclusões:
1 3 ) Existe uma irrefutável correlação entre as noções de monóide e conjunto, a
saber: se C é um conjunto existe necessariamente a ele associado P(C) que é
pelo menos um monóide; e ainda, se C é um conjunto, ele pertence
necessariamente a pelo menos um monóide, qual seja, P(C). Para fortalecer o
seu próprio juízo, ainda que intuitivo, sobre a correlação apontada, tente o leitor
imaginar um conjunto que escape às determinações acima.
2 3 ) Caso venhamos, por meio de axiomas apropriados, a impor à noção de conjunto
a condição de que P(C) exista e se constitua apenasnum semimonóide; e mais,
retirada dos axiomas suplementares a condição de provarem que ~ seja
simétrico em relação à operação de união - mesmo que sua nulidade de um dos
lados esteja já axiomaticamente assegurada - garantimos que nem a noção de
conjunto, nem sua teoria formalizada se sustentariam. Para restabelecê-Ias, outro
remédio não haveria senão o de introduzir um axioma específico, que por si
ou associado com os demais, assegurasse a nulidade de ~, tanto à esquerda
14
como à direita. relativamente a qualquer conjunto. quando submetidos a
operação de união.
A circularidade de que nosso demônio estaria acusando-nos. estribado na
fundamentalidade da noção de conjunto e de sua teoria formalizada, pelo
demonstrado, de volta a ele também se aplicaria. A noção de conjunto. em seu cerne,
subentende a noção de monóide, sendo o inverso igualmente verdadeiro.
Se é fato que não vencemos nosso jogo bergmaniano com a lógica da morte.
pelo menos, cremos, conseguimos levá-lo para o empate.
3.2 Crer para ver, no enfrentamento do categorista
É por muitos aceito, hoje, que a teoria das categorias pode substituir, com
maior flexibilidade, a teoria dos conjuntos como alicerce da matemática.
Se assim, não temos outra alternativa senão retomar nossa discussão acerca
da matematicidade da matemática nesta nova arena - a da teoria das categorias.
A primeira vista nossa tarefa pareceria bem mais fácil do que aquela em que
nos empenhamos no sub-item anterior dada a manifesta similitude dos axiomas que
caracterizam categorias e monóides. Entretanto, como veremos a seguir. a lógica da
morte tem muitos fôlegos - tantos quanto o liberalismo - e retoma, já escolada, para
impedir que repitamos a estratégia de jogar para o empate. Agora, ou se vence, ou se
perde.
Numa primeira aproximação. ainda dependente da noção de conjunto
- embora já se saiba que ela pode disso se autonomizar - uma categoria
seria uma trinca ordenada - (A. H, o) - em que A é um conjunto de objetos
quaisquer, H um conjunto de morfismos definidos entre os objetos de A, inclusive
de tipo endomórfico, e, por fim, uma operação o de composição dos morfismos de
H, mas não necessariamente para todos. Os membros da trinca ordenada estariam
obrigatoriamente sujeitos aos seguintes três axiomas (7):
1) Para um par de elementos de H designadas h ixy (o i-gésimo morfismo com
domínio em Ax e contradomínio em Ay) e hjyz(o j-ésimo morfismo com
domínio em Ay e contradomínio em Az) onde Ax, Ay e Az pertencem ao
conjunto de objetos A, existe necessariamente o morfismo h kxz designando
o produto hixyohjyz, com h kxz pertencente a H.
Dizemos que H é parcialmente fechado em relação à operação o porque
nem todos os pares de elementos de H admitem uma articulação pela
operação o; isto só acontece se o contradomínio do primeirocoincidir com
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o dominio do segundo, o que equivale a dizer que a operação o está sujeita
à regra de contração semelhante àquela definida para ostensores:
2) Para h., hj e h k pertencentes a H, com h, articulável com hj e este com hb
tem-se necessariamente:
isto é, a operação o é associativa em H;
3) Para todo A j pertencente a A existe um morfismo (no caso, um
automorfismo) hoyy pertencente a H tal que para qualquer h jxy e h kyz
também pertencentes a H, se tem necessariamente:
vale dizer, H contém um sub-conjunto de elementos neutros ou
identitários hoyycorrespondentes a cada um dos objetos Ay pertencentes a
A.
A já aludida similitude entre categorias e monóides torna-se patente: ambos
compartem três propriedades básicas da matemática - o fechamento, a
associatividade e a existência de elemento nulo ou identitário. Entrementes, não nos
é permitido simplesmente identificá-los porque, em que pese as sirnilitudes, existem
duas discrepâncias críticas. A primeira, é que o monóide é completamente fechado e
a categoria só o é parcialmente, isto é, a tabela de multiplicação relativamente à
operação o para a categoria admite posições vagas ou não definidas, o que já não
ocorre na tabela de multiplicação do monóide; a segunda, esta bastante grave, é a
existência de uma multiplicidade de elementos neutros na categoria, enquanto que
entre os monóides ele é único.
Para tomar esta comparação ainda um pouco mais clara, vale a pena
trazermos à cena a definição mesma de monóide como uma espécie de categoria. A
definição é extremamente econômica . .. e sutil:
monóide é uma categoria com um único objeto. (11).
Veja-se: existindo somente um objeto na categoria, a multiplicidade de
elementos nulos automaticamente desaparece; concornitantemente, a categoria toma-
se completamente fechada dado que, na aludida condição, coincidem todos os
domínios e contradomínios tomando assim todos os morfismos articuláveis entre si;
vale dizer. deixam de existir posições vagas nas tabelas de multiplicação dos
morfismos.
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Pelo visto até aqui, não pode persistir qualquer dúvida quanto ao maior grau
de generalidade das categorias em relação aos monóides, e, o que é muito mais
importante, quanto ao sentido em que ela verdadeiramente se dá. E daí, por
conseqüência, da impotência, no caso da categoria, da estratégia por nós usada
quando da discussão da matematicidade da teoria dos conjuntos.
Embora conscientes da complexidade da questão da matematicidade quando
referida à categoria, mantemos nossa crença de que a chave da questão está na
natureza do elemento nulo e não na sua unicidade ou multiplicidade, e ainda menos
na questão do fechamento parcial ou total. Assim, para aprofundarmo-nos na
questão do sentido dos elementos nulos nas categorias, vamos uma vez mais apelar
para a noção de livre e depois, de livre fundamental, tal como fizemos com
monóides e semimonóides.
A noção de livre se estende à categoria de modo natural: categoria livre
seria aquela cujos elementos de H derivam de um conjunto gerador G H de
morfismos por meio da própria operação de composição o. Chamaremos de
fundamentais as categorias livres cujo gerador contenha apenas dois elementos, I e
D, I convencionado ser o elemento neutro genérico.
Em princípio, temos apenas quatro opções: a) DoD existe, não se
confundindo, entretanto, nem com I, nem com D; b) DoD = I; c) DoD = D; e, por
fim, d) DoD é uma composição interdita ou não definida. Para facilitar a escritura,
vamos daqui por diante trocar a operação o por um simples ponto.
As três primeiras opções - a, b, c - possuem tabelas de composição
fechadas, isto é, sem posições vazias, logo referem-se a um único objeto, e por isso,
constituem monóides. Senão vejamos:
a) D.D existe sendo elediferente deI e de D.
A tabela de composição já comprometida seria, pois:
I I
I D
D D.D
Havendo um único elemento nulo, ter-se-ia complementarmente:
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I D
I D
D
I
D D.D
Como D.D não é redutível nem a I nema D, ele irá constituir-se num
elemento novo de H, abrindo linha e coluna correspondentes:
D D.D I
I I D D.D
D D D.D D.D.D
D.D D.D D.D.D D.D.D.D
Por convenção façamos D.D '" D = D n • Daqui por diante, duas alterna-
n
tivas a nós se abririam: a primeira é que exista, suplementarmente, uma relação
D n = I, o que transforma a categoria no grupo cíclico n; a segunda, é que não exista
qualquer relação pesando sobre nenhuma das potências de D. Neste último caso, é
fácil reconhecer nesta categoria livre fundamental o mesmo monóide livre
representativo dos números naturais incluído o zero; I e D representariam,
respectivamente os números zero e um, e a operação ponto a soma aritmética
tradicional.
b)D.D=I
A tabela de composição, neste caso, já está completamente definida, vale
dizer, que H = G H • Seria ela:
I D
I D
D
I
D I
Temos aí um caso particular da primeira alternativa surgida na opção
anterior: trata-se simplesmente do grupo cícIico 2, expressão formal das operações
de reflexão, inversão, complementaridade, etc.
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c)D.D=D
Neste caso, também, a tabelade composição já está completamente definida,
ou seja, H = G H . Vejamos:
I I D
I D
D D D
Reconhecemos aí o monóide da projeção; um bom exemplo sena o da
projeção sobre um plano de um corpo no espaço.
Pode-se, pois, concluir que estas três primeiras opções de categorias livre
não sãoverdadeiramente fundamentais; são sim formas degeneradas; as duas
últimas, aliás, gravemente degeneradas, porque perdem mesmo sua essência de
livres. Nas três, são perdidas as características essenciais da categoricidade: a
multiplicidade de elementos nulos, o fechamento apenas parcial (tabelas de
composição com posições vagas), e até os morfismos são reduzidos a sub-espécie
dos endomorfismos. Tudo isso, veremos, que estará sendo preservado na próxima
opção.
d) D.D é composição interdita ou não definida
A partir apenas dos morfismos geradores teremos como tabela de
multiplicação ainda parcialmente definida, a seguinte:
I I
I D
D D
Ora, o fato de que D não se articula consigo mesmo diz-nos que ele se
constitui num héteromorfismo mediando, assim, dois objetos distintos e daí, a
exigir, axiomaticamente, a duplicação do nulo. Em síntese, a parte da tabela anterior
contendo apenas I, é,na verdade, uma representação ainda compactada de algo
maior. Convencionando-se que x e y designam, respectivamente, domínio e o
contradomínio de D, teríamos:
19
-71+-
Ix Iy
forrna compactada de
I I
Ix Ix
D
Iv D Iy
A tabela final para a presente categoria, sena pOIS:
Ix Iy
D
Ix Ix
O
D
Ix Iy
Iy
D
Iy
O
D
D
D
D
Fica bastante evidente que a opção d) é a únicaque guarda a "essência" da
categoricidade matemática - o fechamento apenas parcial, a associatividade e a
duplicidade de neutros. Ela, de certo modo, constitui-se como o morfismo em sua
inteireza e essencialidade, tanto que poderíamos chamá-Ia mesmo morfismo
categorial. Sua definição sumária poderia ser: a categoria irredutível. Qualquer
categoria mais simples toma-se uma categoria degenerada. De fato, mais simples
que ela só haveria a categoria de um só morfismo, que já não seria mais um
morfismo em sua generalidade, mas um mero automorfismo I; sua tabela de
composição resumir-se-ia a:
~
I I I
onde não há mais posições vazias nem a multiplicidade do nulo; enfim, a categoria
que não o é, verdadeiramente. Como tal ela se comportaria como o zero vis-à-vis a
seqüência dos números naturais submetidas à soma; ou como o conjunto vazio vis-à-
vis qualquer conjunto submetido à operação de união. Em suma, ela é a zero-
categoria, que de modo algum pode ser confundida com uma fantasmagórica
categoria sem objetos e sem morfismo, que nada mais seria que um contrasenso.
20
Bem, quanto à questão da simetrização ou espacialização do nulo na
categoria, em que ficaríamos?
Um pouco de atenção nos fornece a resposta, agora, óbvia. A simetrização
ou espacialização do nulo lá está, gritante, porém de um modo diferente daquele em
que ela se realiza nos monóides e na teoria dos conjuntos, qual seja, a de um nulo de
dupla-face, esquerda e direita. Na teoria das categorias ela se realiza, sim, mas pela
duplicação do nulo, sempre e irrevogavelmente, um à esquerda e outro à direita, seja
na categoria livre fundamental, seja na mais complexa das categorias. Alguém
poderia pretender contestar-nos dando como contra exemplo - aliás, o único - a
categoria de um só morfismo. Redarguiríamos dizendo que ela é uma categoria
degenerada, uma zero-categoria, e ainda assim, não pôr que a simetria do nulo ali
não exista, mas porque ela tão apenas regride a um modo primitivo.
Caberia indagar o porquê de dois modos de simetrização; e mais, em que
essencialmente eles se distinguiriam, já que as matemáticas derivadas de um e outro
- conjuntista e categorista - não são de mesmo nível, a última precedendo a
primeira em sua fundamentalidade?! Diríamos que a simetrização por dupla-face é a
priori e aquela pôr duplicação a posteriori da diferença; que a primeira suprime a
liberdade e a temporalidade, enquanto que a segunda congela a dialeticidade; que a
primeira sobrepõe o espaço ao tempo, a segunda, o sistema/causalidade à história;
que a primeira é preventiva a segunda repressiva. Ambas, entretanto, são
inquestionavelmente modos de velamento da dimensão trágica da existência
concreta, precisamente, aquela que se faz governar pela lógica da diferença. O
fosso profundo entre a essência da matemática (ou do calculável) e a essência do
trágico aqui aludida está presente em muitos pensadores, em especial, naqueles
correntemente denominados filósofos da vida. Para exemplificarmos, ninguém
melhor do que Pascal, pôr tê-lo tomado manifesto ainda nos alvores da
modernidade, tanto pôr sua obra, quanto pôr seu próprio modo de vida.
3.3 Ou J ano ou Gêmeos
Apresentamos a seguir um quadro geral das noções até aqui tratadas bem
9MIlO da delicada trama de suas interrelações. Nele buscamos explicitar o preciso
momento de emergência da matematicidade da matemática, qual seja, aquele da
passagem do neutro puro e simples (representação do Nada atuante) ao nada
simetrizado ou espacializado, que nada mais é senão uma lembrança de um
esquecimento, que na cultura atual (modernidade ou pós-modernidade, tanto faz), já
nem mais se quer saber qual fora.
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MATEMÁTICA
CONJUNTISTA
t
CONJUNTO
t
MONÓIDE
Â
I
._------------------,
MATEMÁTICA
CATEGORlSTA
SIMETRIZAÇÃO
MODO DUPLA-FACE
I
CATEGORIA
SIMETRIZAÇÃO
MODO DUPLICAÇÃO
SIMETRIZAÇÃO OU
ESPACIALIZAÇÃO
DO NEUTRO
SEMIMONÓIDE
LÓGICAS
t__
MATEMÁTICA
NEUTRO NÃO
SIMETRIZADO
A linha horizontal representa o limiar a partir do qual pôde emergir a
matemática. Abaixo, apenas o neutro ou o nulo não simetrizado e os semimonóides,
cuja espécime príncipe são as lógicas. Acima, de um lado, o neutro de dupla face, à
direita e à esquerda, como o rosto de Jano; de outro lado, o neutro duplicado,
também um à direita e outro a esquerda, gêmeos, como Castor e Polux.
Sob o modo da dupla face se colocam o monóide, o conjunto formalizado, e
mais acima, todo o edificio da matemática conjuntista; sob o modo da duplicação se
posta a categoria, e acima, todo o edificio da matemática categorista. A linha
pontilhada assinala o caráter mais fundamental da vertente categorista em relação à
vertente conjuntista da matemática.
Devenos reiterar - e isto fica bastante evidente na figura acima - que, ao
contrário dos monóides, os semimonóides não formam uma espécie particular de
categoria. Eles, os semimonóides, e por conseqüência as lógicas, são entes pré-
matemáticos, consideremos indiferentemente a matemática conjuntista ou a
matemática categorista.
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Ainda restaria para exame a conveniência ou não de se introduzir umanova
noção - a semicategoria - na qual estaria garantida a existênciade homomorfismo
à direita de todo morfismo, sempre que ele estivesse já garantido à esquerda, mas
não o inverso. Qual a fecundidade desta idéia? As lógicas teriam justo aí o seu
lugar? Em especial, como poderia tudo isto contribuir para a melhor compreensão
das relações das lógicas com a matemática? São todas perguntas que deixamos em
aberto pretendendo, entretanto, a elas voltar numa outra oportunidade.
4. Morte e Ressurreição
Ainda que recusando-nos a fazer coro com a sua metafisica subjetivista,
devemos reconhecer em Bergson o mérito de ter-nos enfaticamente aclarado que a
matemática e a física-matemática que lhe é associada, tinham como essência mais
profunda a espacialização do tempo. Repetiu-o à exaustão:
"Não percebiam que o tempo intelectualizado é espaço, que a
inteligência trabalha com o fantasma da duração e não com a
própria duração, que a eliminação do tempo é ato habitual, normal,
banal, de entendimento, ..." (2)
Entretanto, enfatizava tal característica fundamental da ciência com o
propósito maior de fixar a linha demarcatória entre esta última e a sua metafisica da
duração; não para diminuir uma em relação a outra, mas para eqüivalorizá-las.
Estava, talvez sem se dar conta, insistindo nomesmo projeto cartesiano fundador da
modernidade.
Na mesma época em que Bergson assim especulava, surgiam as teorias
einsteinianas que vinham dar acabamento funcional e estético ao projeto moderno
de cálculo e conseqüente dominação do mundo. A relatividade restrita não só
espacializava o tempo - o que já não seria novidade - mas vinha agora reduzí-lo a
uma simples dimensão de uma geometria tetra-dimensional; a relatividade geral ia
ainda mais longe ao geometrizar a própria materialidade - a distribuição da
densidade de matéria passava a confundir-se com a curvatura local de uma potente,
tanto quantocomplacente, geometria diferencial. Nem Deus aí acharia tempo, ao
menos, para um mero coup des dés. A geometrização do mundo, chegava assim ao
seu ápice, e Einstein pode ser, com plena justiça, considerado o mais moderno
dentre os modernos.
A matematização do mundo prenunciada pelos gregos - via aritmética pelos
pitagóricos e via geométrica por Platão - e assumida como projeto pelo
racionalismo moderno a partir de Descartes, tomava-se, desde então, em fato
consumado. Entrementes, fatoé também que é de sua essência mais profunda estar
submetida à lógica clássica, doterço excluso ou da dupla diferença que, bem
23
sabemos, é a lógica mais funesta. É ainda um fato que ela acabou, mais tarde,
encarnando, destarte, passando de cálculo a computação, e por este meio assola hoje
o mundo, globalizando-o, como tão arrogantemente ilustram as atuais peças
publicitárias da IBM. Malgrado, já se vão cerca de dois terços de século, que
Heidegger (4) pôde vislumbrar, com toda nitidez, no que estávamos metidos:
"O cálculo não admite outra coisa que o enumerável. Cada coisa é
apenas aquilo que se pode enumerar. O que a cada momento é
enumerado assegura o progresso na enumeração."
E que era da própria essência do cálculo o consumir-se; daí, estava-se
apenas a um passo do consumismo devorador, a contar de si próprio:
"Esta (a enumeração) utiliza progressivamente os números e é, em
si mesma, um contínuo consumir-se. O resultado do cálculo com o
ente vale como o enumerável e consome o enumerado para a
enumeração. Este uso consumidor do ente revela o caráter
destruidor do cálculo."
A tudo presidindo, lá estava a lógica, não a lógica em geral - apenas nisso
equivocava-se Heidegger - mas uma lógica muito específica: a lógica clássica, a
lógica mesma da morte:
"O pensamento calculador submete-se a si mesmo à ordem de tudo
dominar a partir da lógica (clássica) de seu procedimento (mortal).
Ele não é capaz de suspeitar que todo calculável do cálculo já é
(pela simetrização do neutro), antes de suas somas e produtos
calculados, num todo cuja unidade, sem dúvida, pertence ao
incalculável (o real, no jargão lacaniano) que se subtrai a si e sua
estranheza das garras do cálculo." (parênteses interpolados pelo
autor)
Tivéssemos nós um pouco mais de interesse e familiaridade com a história
da cultura, saberíamos que era inexorável que um dia isto acontecesse, tanto quanto
cremos seja inexorável, cedo ou tarde, que isto passe. E, então, que advirá?
Não temos dúvida que seja uma nova cultura, a cultura lógico qüinqüitária
ou hiper-dialética, que não será de modo algum anti-matemática ou anti-científica -
como ingenuamente crêem os "orientalistas", esotéricos e quejandas - mas que virá
para subsumi-las, uma vez para sempre.
Enfim, a simetrização do Nada (seja de que modo for), a lógica clássica, a
matemática, a cientificidade, a globalização pela computação preventiva ou
repressiva é deveras um fato, e aos fatos só nos cabe contrapor a esperança que, em
se tratando da lógica da morte, terá que ser, necessariamente, esperança na
ressurreição do mundo.
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BIBLIOGRAFIA
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2. BERGSON, Henri. O pensamento e o movente (Introdução) em Os Pensadores -
V. XXXVIII. São Paulo, Abril, 1974.
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1969.
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Springer- Verlag, 1971.
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9. SAMPAIO, L.S.C. de. Noções elementares de lógica - V I e 11. Rio de Janeiro, I.
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10. .Lacan et les logiques. Rio de Janeiro, 1992 (xerografado).
11. WALTERS, R.F.C. Categories and Computer Science. Carnbridge, Carnbridge
U.P., 1991.
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